Dentro de dois anos, qualquer empresa de telecomunicações poderá vir a operar em Portugal sem ter de registar uma licença junto das autoridades reguladoras nacionais. Pelo menos, é essa a esperança da Comissão Europeia que apresentou hoje a estratégia para a criação do Mercado Único Digital, que está assente em16 medidas que deverão estar prontas a adotar pelos 28 estados membros até 2017.
Andrus Ansip, vice-presidente da Comissão Europeia e o novo rosto da estratégia para a economia digital em Bruxelas, apontou hoje a receita com que pretende transformar um conjunto de 28 estados membros num único mercado que tira partido do total de 500 milhões de habitantes. Na algibeira, o vice-presidente da Comissão Europeia trazia mais um número: o mercado único digital pode contribuir com 450 mil milhões de euros anuais para a economia europeia.
Nas 16 medidas, há duas que se destacam: a Comissão Europeia quer eliminar as barreiras para o desenvolvimento de serviços de TV e Internet transnacionais e ainda o desenvolvimento de um quadro regulatório comum (ou pelo menos concertado) para a gestão e licenciamento de frequências hertzianas para as telecomunicações. «Provavelmente, no futuro vamos assistir à harmonização de leilões de espetro e ao aparecimento de operadores transnacionais», prevê Henrique Burnay, um dos sócios da consultora Eupportunity, sedeada em Bruxelas.
O consultor refere ainda uma terceira medida prevista para o mercado único digital pode transformar a forma como funciona a distribuição de conteúdos no “velho continente”: «Há uma clara intenção de acabar com o bloqueio geográfico que, por exemplo, impede que os portugueses acedam ao Netflix… sendo que eu e todas as pessoas que vivem aqui na Bélgica, temos acesso a esse serviço».
Pedro Veiga, pioneiro da Internet em Portugal e presidente delegação portuguesa da Internet Society, encara a tentativa de harmonização de serviços eletrónicos e telecomunicações com bons olhos: «Hoje, a Europa tem vários operadores móveis confinados aos mercados nacionais. Nos EUA, há muito menos, mas os que existem são muito maiores. O mercado único digital pode ajudar a acabar com monopólios e negócios que eram um exclusivo de empresas incumbentes e operadores históricos».
A Comissão Europeia também está apostada em diminuir o efeito das fronteiras no que toca ao IVA cobrado no comércio eletrónico de bens materiais (nos conteúdos e software passou a vigorar recentemente o IVA do país do consumidor). «Eventualmente, será criado um único regime de IVA para o comércio eletrónico da UE… pelo menos para garantir o fim de algumas complicações relacionadas com a cobrança de IVA entre diferentes países e disponibilizar às pequenas e médias empresas um regime do comércio eletrónico mais favorável».
Também na migração de dados – em especial no cloud computing – se adivinham alterações de vulto. «Por vezes, o lançamento de novos serviços é travado por restrições relacionadas com a localização dos dados ou dos acessos a esses dados – restrições que, muitas vezes, não têm nada a ver com a proteção de dados pessoais. Esta nova iniciativa tentará derrubar essas barreiras», refere o comunicado da Comissão Europeia reiterando a intenção de eliminar as leis nacionais que proíbem o envio para o estrangeiro de dados de saúde ou considerados estratégicos para as autoridades nacionais.
A Comissão Europeia não perde de vista o mercado de trabalho proporcionado pelas tecnologias – e a par de medidas relacionadas com a formação de pessoas que permitirão inverter a escassez de profissionais, está prevista a criação de um sistema de e-government unificado que permitirá combinar diferentes registos comerciais ou mercados que hoje se encontram dispersos.
A ANETIE, associação que representa as empresas de tecnologias em Portugal, recorda um estudo recente que aponta para a criação 800 mil novos empregos na UE durante 2015. A perspetiva é auspiciosa para quem procura emprego, mas pode ser também um entrave para a estratégia da Comissão Europeia: «Acreditando desde já no impacto dos demais pilares de atuação da estratégia agora lançada, a escassez de profissionais especializados em Tecnologias e Telecomunicações poderá agudizar-se mais ainda. Esperamos, pois, que a Europa perceba, a tempo, a importância desta área, trabalhando no sentido de ajustar o ensino superior às necessidades da economia digital, mas também promovendo a reconversão de outros profissionais, em particular dos desempregados jovens», explicam Tiago Valente e Vítor Rodrigues, membros da direção da ANETIE num e-mail enviado para a Exame Informática.
O próprio Andrus Ansip admitiu, na apresentação da estratégia do mercado único digital que se realizou esta manhã, que haverá medidas mais difíceis de implementar que outras – sendo que algumas delas acabarão mesmo por cair.
Henrique Burnay admite que pode ser apenas uma questão de dar tempo ao tempo: «Como dizia um diplomata português, quando uma bola começa a rodar em Bruxelas, já não ninguém a para – pode é mudar de direção».
Por Hugo Séneca