Edward Snowden não esteve em São Paulo para participar no fórum NetMundial, mas, entre os participantes, assistência e bastidores, por várias vezes, o nome do ex-operacional que denunciou os programas de ciberespionagem dos EUA foi referido na hora de debater o documento que agrega os princípios do futuro modelo de governo da Internet. Apesar dos apelos e críticas, o “draft” do documento que deverá guiar o modelo de gestão da Net, prefere realçar a defesa da privacidade em detrimento da proibição da ciberespionagem.
O documento, que está a ser elaborado com 188 contributos de especialistas e representantes de vários países e ainda os comentários de mais de 1300 participantes pretende reforçar o direito à privacidade dos internautas e equipara-a aos direitos que os cidadãos já têm no “mundo offline”: «Privacidade: Os mesmos direitos que as pessoas têm offline têm de ser garantidos igualmente online, inclusive o direito à privacidade, e evitando a vigilância e a recolha arbitrária e ilegal de dados pessoais, e ainda o direito à proteção legal contra este tipo de interferência».
O artigo em causa dá largas ao debate e às interpretações: entre os participantes que repudiam os programas de ciberespionagem (entre eles, a presidente brasileira Dilma Rousseff), a defesa da privacidade não será suficiente para impedir programas como o da Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) e de outras agências de espionagem; mas os defensores desta primeira versão de “constituição da Internet” poderão sempre argumentar que a defesa da privacidade já garante a proteção contra a ciberespionagem, uma vez que consagra o direito dos internauta a não ser vigiado de forma arbitrária.
O debate deverá estender-se durante o dia de hoje – e por isso o documento que se encontra atualmente na Internet deverá ser tomado como uma versão provisória que ainda poderá sofrer alterações até chegar a uma versão definitiva e ser posto em prática.
Há um dados mais ou menos adquirido: o debate dificilmente se esgotará nos dois dias de fórum mundial que junta representantes de governos e reguladores da maioria dos países existentes do mundo.
Na versão que está atualmente em debate, há várias referências a uma gestão participada por vários representantes de vários setores de atividade e países, cujas decisões devem ser transparentes e alvo de responsabilização. Os princípios são genéricos e não evitaram críticas e contrapropostas de alguns dos participantes.
Para os EUA, o evento pode comparar-se a um jogo de futebol fora de casa (são várias as metáforas que relacionam a conferência NetMundial e o Mundial de Futebol que se realiza este verão no Brasil): o Governo norte-americano anunciou que vai ceder o papel de supervisão da IANA (a Autoridade para Atribuição de Números da Internet, que funciona como um departamento da ICANN – Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números), mas ainda não é bem claro o que vai acontecer no futuro – e é altamente improvável que seja num evento onde as desavenças e diferendos entre os países se sobrepõem à concórdia que esta questão mais sensível seja resolvida.
O discurso da presidente Rousseff, que logo foi secundado pela vice-presidente da Comissão Europeia Neelie Kroes («Estamos aqui para fazer mudanças»), é revelador do desconforto em que os representantes dos EUA se encontram atualmente (houve mesmo quem aventasse que o governo que criou e supervisiona a Internet estaria ausente da conferência).
Às vozes de Kroes e Rousseff juntam-se as declarações dos representantes indianos que, segundo o Economic Times, exigem que o modelo de governo da Internet respeite os critérios de representatividade e democracia.
Segundo a versão brasileira da IDG, os EUA estariam dispostos a atribuir a gestão da Internet a um órgão que represente vários setores da comunidade mundial, mas estão relutantes a passar o testemunho a uma entidade política, que agrupa representantes dos vários governos (as pretensões da Organização Internacional das Telecomunicações, que pertence à ONU, parecem ainda não se ter dissipado).
Hoje, ao final da tarde no Brasil – e início da noite na Europa – já deverá haver um documento teoricamente definitivo quanto ao modelo de governação da Internet que vai ser adotado. Só nos meses seguintes se verá se vai produzir efeito, ou tudo não passou de uma grande manobra diplomática.