Vicente precisa de um empréstimo. Vai ao banco no qual abriu conta há mais de 20 anos, tira a senha C e espera 41 minutos até ser atendido. Cópia do documento de identificação, definição da quantia a pedir e uma folha A4 em que constam os documentos que terá de entregar – entre os quais a prova de rendimentos e a declaração de IRS – numa próxima visita à agência. Deverá, para isso, faltar mais uma manhã ao trabalho. Embora algumas empresas financeiras estejam já a dar importantes passos na modernização tecnológica, no sentido de agilizar os processos e a submissão digital de documentos para pedidos de crédito, o Portugal bancário do século XXI, no geral, ainda é assim: cara a cara, de papel em papel, de espera em espera. Um estudo realizado pela consultora IDC para a empresa Axesor, divulgado em fevereiro, concluiu que um terço das empresas portuguesas ainda faz uma “gestão artesanal” da concessão de empréstimos, recorrendo a clássicos como ficheiros Excel. Apenas 15% das empresas inquiridas utilizavam programas automáticos de análise para a gestão de créditos.
Também a forma de avaliar a capacidade de pagamento de um cliente continua a obedecer a modelos e a indicadores tradicionais. No entanto, no Reino Unido ou na Alemanha, já há quem possa juntar ao contrato de trabalho e à folha de rendimentos informações como a regularidade com que paga a renda da casa, as contas da água e das telecomunicações, o histórico de localizações registado pelo telefone, os amigos que tem no Facebook ou as compras através do Airbnb. E em África, América do Sul, e Sudeste Asiático, onde uma parte significativa da população não possui registos bancários e, por isso, é automaticamente excluída da hipótese de contrair um crédito, não para de crescer o número de fintechs que analisam dados comportamentais para traçar a potencial capacidade de pagamento (de pequenas e médias quantias) de um cliente.
Assim, nas Filipinas ou no Equador, usar com frequência uma aplicação de transporte privado pode pertencer ao perfil do “bom pagador”, enquanto tempo a mais num website de apostas representa um “sinal amarelo”. É um pouco como no setor dos seguros, em que um fumador ou um condutor de um motociclo está sujeito a uma pontuação menor (e, por isso, condições menos vantajosas) para contratar um produto. A mudança é alavancada por soluções de Inteligência Artificial (IA) – segundo um relatório divulgado em março pela consultora IDC, até 2022 os gastos com IA deverão crescer em média 38% ao ano, sendo a Banca um dos setores que mais vão investir neste plano, sobretudo no âmbito da deteção de fraudes –, que passa a incluir indicadores psicométricos no mundo do crédito com o objetivo de ampliar a igualdade de oportunidades para migrantes e cidadãos fora do sistema bancário, como advogam muitas fintechs a operar neste segmento.
Testes psicológicos que avaliam o caráter, a consistência e o grau de comprometimento [de um indivíduo] são comummente usados
Michael Turner
“Testes psicológicos que avaliam o caráter, a consistência e o grau de comprometimento [de um indivíduo] são comummente usados. São métodos que têm benefícios mas também trazem riscos”, declarou Michael Turner, da PERC, um think thank norte-americano focado na inclusão financeira, à revista The Economist no mês de julho. E isto também acontece porque, segundo o especialista, nos Estados Unidos da América, com um sistema de avaliação de crédito baseado em 26 indicadores, “não é possível distinguir o sinal do ruído”, ou seja, calcular o risco com precisão. Por outro lado, na era da partilha deliberada de dados, faz sentido o setor financeiro continuar a basear-se exclusivamente nos “velhos” indicadores para tentar prever o pagamento de um empréstimo? Um mundo de startups concorda com a premissa de que quantos mais dados, melhor.
Crédito e credibilidade
A californiana Tala, por exemplo, que opera em países como a Índia ou as Filipinas, diz utilizar mais de 10 mil dados do telefone de um potencial cliente (com o seu consentimento). Por onde navegou, o que fez, que fotografias publicou e que amigos tem nas redes sociais passam a ser dados relevantes. Na China, uma subsidiária do gigante Alibaba – a Ant Financial – construiu um sistema extensivo de avaliação que cruza informações obtidas através da sua aplicação de pagamento Alipay (uma espécie de MB Way chinês), oferecendo taxas melhores aos utilizadores (leia-se “compradores”) mais frequentes.
Mas o interesse pelo método de “pontuação” – que faz lembrar o sistema de crédito social em desenvolvimento no país de Xi Jinping – já chegou às malhas do Estado. Escreve a Economist que o banco nacional chinês (que no início de 2018 proibiu empresas privadas de continuarem a fazer avaliações de crédito baseadas neste tipo de sistema) está a desenhar uma estrutura que alargará a possibilidade de avaliação de crédito a todos os cidadãos. Alguns críticos questionam a capacidade de o Credit Sesame (assim se chama o sistema de scoring) “triturar” milhares de dados transformando-os num status que vai do bom ao mau devedor, alertando para a necessidade de haver uma forte correlação entre centenas de comportamentos diferentes para que a métrica seja minimamente rigorosa, aponta um artigo do Financial Times, publicado em dezembro.
Se, além da questão do rigor, lhe cheira a riscos de privacidade e a um aumento da subjetividade nos processos de avaliação, está com o olfato apurado. Embora seja o cliente a permitir o acesso aos seus dados para que lhe seja desenhado um perfil de crédito, e ainda que as informações tenham por base um tratamento estatístico, medir a frequência com que se joga online ou verificar se o cliente tem amigos virtuais que tenham falhado créditos pode equiparar-se a uma vigilância de preconceito e, ao mesmo tempo, minar políticas de privacidade.
O cinto europeu
Mas esta nova versão de credibilidade financeira restringe-se apenas a estes mercados? Simplificando, a resposta é não. No entanto, há mais para dizer. “A Europa é um mercado muito regulado, ao contrário da América do Sul ou de uma parte da Ásia e até mesmo dos Estados Unidos da América, onde há mais liberdade e, por isso, é onde se vê mais inovação”, analisa Gabriel Coimbra, country manager da IDC em Portugal.
Ainda assim, algumas fintechs vão aparecendo e tentando furar o contexto europeu com novas fórmulas de avaliação de crédito e elevadas taxas de juro, como é o caso da alemã Kreditech, uma empresa privada – a operar em Portugal, entre outros países – que concede créditos com base numa fórmula própria de credibilidade em que escrever letra a letra o nome do site ou registá-lo através de copy paste é um primeiro sinal para o retrato. Mas, em solo nacional, prossegue Gabriel Coimbra, “a abertura por parte da Banca ao ecossistema de startups tem sido muito lenta”. “Onde vemos maior inovação é no acesso mobile aos serviços e na automação de processos, e há uma preocupação maior na área de customer experience”, resume o responsável. As prioridades, para já, são outras. “Ainda há demasiadas coisas para fazer, em termos do que é básico, como o customer experience, compliance e segurança da informação, e não há recursos suficientes para tratar de todas necessidades”, explica Gabriel Coimbra.
Rastos cibernéticos e redes sociais não serão os critérios utilizados, uma vez que as restrições impostas pelas leis de privacidade e utilização de dados são claras e há um rigoroso escrutínio na sua aplicação .
Luís Pedro duarte
Também o vice-presidente e responsável pela área de serviços financeiros da Accenture, Luís Pedro Duarte, mostra-se cético quanto a grandes revoluções na avaliação de créditos. “Rastos cibernéticos e redes sociais não serão os critérios utilizados, uma vez que as restrições impostas pelas leis de privacidade e utilização de dados são claras e há um rigoroso escrutínio na sua aplicação. De qualquer forma, a quantidade de informação que cada um já fornece de forma consciente e informada ao banco é suficiente para que, com a utilização da tecnologia apropriada, seja possível trabalhar com maior rigor a personalização do que é dado ao cliente – adequação do preço, menorização do risco, diversificação e adequação de outras ofertas, etc.”
As transformações mais frequentes centram-se nos “exemplos de utilização de RPA [robotic process automation] – e não propriamente de IA – para processos de crédito”, diz Gabriel Coimbra. No Santander, por exemplo, entre os 30 processos automatizados atuais, um robot “prepara todo o processo de venda de carteiras de crédito, desde o apuramento dos valores ao registo das operações”, de acordo com a instituição, que adianta que o investimento em tecnologia será seguramente alargado nos próximos tempos.
No entanto, um passo mais à frente, o banco digital BNI Europa está a estudar a introdução de novos indicadores no sistema de avaliação de crédito, e a sua implementação é apenas uma questão de tempo, informa Nuno Martins, administrador-executivo e responsável pela área de risco de crédito na instituição.“Há indicadores que faz sentido introduzir no modelo de decisão. Por exemplo, o facto de o telemóvel a partir do qual alguém faz uma simulação não ter qualquer registo de atividade nas redes sociais pode ser um sinal de risco. Uma pessoa que esteja envolvida numa situação de fraude não utiliza o seu telemóvel pessoal, mas outro, para fazer a operação”, explica o também membro da Associação de Instituições de Crédito Especializado. Outra possibilidade: “Imagine que verificamos que pessoas sem Instagram estão associadas a um maior risco de crédito. Aí incluo esse novo indicador.”
O sistema ainda está a ser estudado, “mas a possibilidade de vir a introduzi-lo é grande, sobretudo no crédito ao consumo”. Para já, o que está em vigor é um produto de crédito pessoal em que todo o processo decorre online, desde o envio de uma cópia do cartão do cidadão pelo telefone até à consulta do estado das prestações a pagar. A plataforma foi desenvolvida em parceria com a portuguesa ITSCredit – que tem também como clientes, para diferentes produtos de software, o Montepio, o Crédito Agrícola e a CEMAH (Caixa Económica da Misericórdia de Angra do Heroísmo), que acredita ser importante que a área do crédito tenha uma forte componente digital, até porque “o online torna o processo menos pessoal” eliminando o “medo de rejeição”, nota João Lima Pinto, cofundador da empresa. Por outro lado, permite que “o cliente esteja sempre a par do que vai acontecendo”.
Jogar em campo aberto
Tanto pela atividade e pelo crescimento do universo fintech como pela presença de um consumidor cada vez mais exigente, a Banca é forçada a modernizar-se se não quer perder terreno e clientes. E a entrada em vigor, prevista para 14 de setembro, da nova diretiva europeia de pagamentos, a PSD2 – que conduz ao conceito de open banking, ou seja, à partilha de informação financeira dos bancos com outras instituições e, também, a que muitas empresas passem a poder operar em áreas até então vedadas aos bancos –, só vem reforçar a necessidade de mudança. “O que irá acontecer é que as pessoas já não vão ter contas durante 26 anos no mesmo banco. Simplesmente vão procurar a melhor experiência para elas, seja onde for”, antevê Pete Atkinson, responsável pelo mercado internacional da fintech portuguesa ebankIT.
O que irá acontecer é que as pessoas já não vão ter contas durante 26 anos no mesmo banco. Simplesmente vão procurar a melhor experiência para elas, seja onde for
Pete Atkinson
Também no âmbito do crédito, analisa João Freire de Andrade, presidente da associação Portugal Fintech, “a grande questão é o serviço entrar agora num contexto alargado, fora dos bancos”. Aumentará o leque de escolha através de inovações como o Parcela Já (com o seu cartão de crédito, o cliente pode decidir em quantas parcelas quer pagar a sua compra, sem custos adicionais), o Doutor Finanças ou o Compara Já (permitem comparar condições de empréstimo entre diferentes instituições financeiras), permitindo mais poder ao consumidor. Como afirma Freire de Andrade, “já não é só ir ao IKEA e aparece tudo no mesmo pacote; agora pode ir-se a diferentes lojas de bairro, para os diferentes serviços”, ilustra o responsável. Mas isto é já o presente.
Quanto ao futuro e à criação de novos modelos de pontuação com vista a detetar bons e maus pagadores, o responsável acredita que a inovação chegará mais depressa do que o esperado. “Os bancos estão a seguir todos estes processos [explorados pelas fintechs] e, se calhar, daqui a 15 anos estas mudanças já vão ser uma realidade em Portugal”.
Serviços online, cartões de crédito pessoal ou sites que dão formação. Quem inova por cá?
> Criptomoeda como garantia
A portuguesa Hold, com sede no Porto, criou uma plataforma de empréstimo entre pares que coloca em contacto potenciais credores e devedores. Quem pede emprestado joga com a criptomoeda, mas exige dinheiro para compras na vida real. Os seus ativos são usados como garantia para adiantamentos de dinheiro, em diferentes partes do mundo.
> Comparar para escolher
Serviços como o Doutor Finanças ou o Compara Já permitem confrontar condições de crédito ao consumo (e outros produtos) de diferentes empresas do setor financeiro, aumentando o poder de escolha do consumidor.
> Prestações sem juros
Através do cartão de crédito pessoal, o Parcela Já dá a possibilidade de adquirir um produto às prestações (entre duas e 12) sem custos adicionais para o comprador e o vendedor.
> 100% online
Lançado pelo BNI Europa há dois anos, o Puzzle é um crédito totalmente online. Sob o teto de 3 mil euros, leva alguns minutos a pedir e, uma vez aprovado, o dinheiro demora menos de 24 horas a chegar à conta bancária. Para decidir o crédito, é utilizado um mecanismo de análise de algoritmos que cobre públicos nem sempre consensuais, como trabalhadores freelance.
Artigo publicado originalmente em setembro, na edição n,º 425 da EXAME