Uma recente empresa tecnológica com 130 milhões de utilizadores, vendas de quase 6 mil milhões de dólares estimadas para este ano e receitas líquidas de 1,2 mil milhões, com projeções de duplicação de ambas em 2022 e aberta a aceitar novos investidores. São números com que muitas startups só conseguem sonhar e, em condições normais, motivo para investidores estarem a fazer fila para ficar com uma fatia. Na verdade, esta empresa não só tem dificuldades em encontrar investidores, como foi obrigada a colocar em causa o seu modelo de negócio devido a pressões do setor financeiro. A empresa é o OnlyFans, um portal que permite que fãs ou seguidores tenham acesso direto a produtores de vários tipos de conteúdos, mas que ficou conhecido essencialmente pelo crescimento do seu segmento de pornografia.
Há cerca de uma semana, o OnlyFans anunciou que iria banir o porn da sua plataforma para, dias depois, recuar perante a pressão da sua comunidade. O que explica as dificuldades de uma empresa aparentemente tão bem sucedida?
Criado há cinco anos, o OnlyFans permite a inscrição de todo o tipo de produtores de conteúdos. Neste momento existem três milhões na plataforma. Estes criadores cobram aos seus seguidores – normalmente cinco a 20 dólares por mês, mas o valor pode chegar a $100 com gorjetas – para lhes darem acesso a conteúdos exclusivos. Embora o destaque normalmente vá para a pornografia, há canais de receitas de cozinha, dicas de maquilhagem, treino desportivo, música ou videojogos. A plataforma fica com 20% das receitas. A empresa acelerou o crescimento nos últimos dois anos, mas disparou durante a pandemia, com muitos criadores a virarem-se para ela para encontrarem novas fontes de receita sem saírem de casa, e uma nova vaga de utilizadores, que saltaram de 20 para mais de 120 milhões.
Para quem trabalha na indústria pornográfica foi uma mudança radical. Os anos 90 trouxeram muito dinheiro para esta área e ajudaram a criar o mito da estrela porn bem-sucedida, com contratos generosos com os gigantes do setor. Facilmente se ganhava mais de dez mil dólares por semana. No entanto, tudo isso mudaria com as ascensão dos sites de pornografia gratuita – como o Pornhub – que aplicaram a lógica YouTube a estes filmes, ganhando dinheiro com a publicidade. Isso significou uma mudança no modelo de negócio, desvalorizando o papel dos profissionais, baixando cada vez mais os seus salários e reservando-lhes uma percentagem cada vez mais pequena das receitas.
Não é muito diferente daquilo que aconteceu com a indústria musical ou que está a acontecer ao jornalismo, mas com muito menos poder de resistência. Com o tempo, o sucesso dessas plataformas permitiu-lhes comprar (com desconto) os velhos estúdios em decadência. É como se o Spotify detivesse também as grandes editoras. Neste domínio, a empresa mais conhecida é a MindGeek, dona três dos sites porn mais visitados do mundo, o que tem suscitado acusações de monopólio.
Um caso representativo das mudanças no setor é o de Mia Khalifa, pornstar por poucos meses, mas que se tornou na número 1 do ranking do Pornhub. Entretanto, ela saiu da indústria, mas revelou ter recebido apenas 12 mil dólares, enquanto participou nela, mil euros por cada cena que filmou. A pornstar mais pesquisada do mundo ganhou menos do que o salário médio em Portugal.
O surgimento do Snapchat foi uma primeira oportunidade para escapar a esta compressão salarial, representando uma oportunidade para estabelecer uma ligação direta entre atrizes pornográficas e fãs e clientes. Algo que o OnlyFans veio profissionalizar, criando um canal de pagamento oficial.
Em vez de receberem como alguém de classe média baixa, a internet encheu-se de depoimentos de mulheres que faziam dezenas de milhares de dólares em poucos meses. “Eles fazem tanto dinheiro… Eles fingem que não ganham por causa da pirataria. [Mas] agora que faço as minhas merdas, [percebo] que eles estão a fazer dinheiro e a mentir quando dizem que só te podem pagar mil dólares por mês”, criticava a atriz Lana Rhoades (e esse era apenas um dos muitos problemas de uma indústria que a traumatizou).
O OnlyFans trouxe de volta o “premium” a esta área, com possibilidade de personalização. Se um fã for cliente regular, é normal que a criadora saiba em que dia faz anos e até o nome dos seus animais de estimação. É o caminho oposto da indústria, em muitos casos com uma dimensão menos explícita e agressiva.
“É essa sensação de proximidade, de verdade, de pessoa real, é isso que conta no OnlyFans”, conta Raquel, nesta reportagem da Notícias Magazine, com várias entrevistas.
DanniiHarwood fatura mais de 50 mil dólares por mês e conta ao “New York Times” que o seu sucesso não vem diretamente do sexo. “Consegue encontrar porn grátis. Os gajos não querem pagar por isso. Eles querem pagar pela oportunidade de conhecer alguém que viram numa revista ou numa rede social. Sou como a namorada online deles.”
Limitações financeiras
Por tudo isto, foi um choque para estas mulheres e homens o anúncio do OnlyFans de que deixaria de autorizar “conteúdo para adultos” no seu site. Nudez talvez ainda fosse permitida, mas imagens e vídeos mais explícitos não.
A decisão provocou imediatos flashbacks ao caminho percorrido pelo Tumblr, que tomou a mesma decisão em 2018, tendo sofrido uma quebra de 30% no número de visitantes. A Yahoo tinha comprado o Tumblr por 1,1 mil milhões de dólares em 2013 e vendeu-o por 3 milhões em 2019.
Scarlett Woodford, analista da Juniper Research, diz à EXAME que a decisão do OnlyFans foi arriscada, tendo em conta “a dimensão da receita gerada pelos criadores de conteúdo para adultos no site”. “O OnlyFans mostrou que os consumidores estão cada vez mais dispostos a pagar por conteúdos premium via pay-per-view, pagamentos privados por mensagem direta, subscrições e gorjetas”, acrescenta. “Com os criadores de conteúdos a poderem cobrar até 50 dólares por conteúdo exclusivo e aceitar até 100 dólares de gorjetas individuais, a decisão de banir conteúdos para adultos teria provavelmente consequências financeiras sérias para o OnlyFans.”
Mais interessante do que a decisão foi aquilo que a motivou. Segundo a empresa, a mudança foi decidida “para cumprir as exigências dos parceiros bancários e dos processadores de pagamentos”. Em entrevista ao Financial Times, o CEO do OnlyFans referiu uma instituição em específico, o Bank of New York Mellon, acusando-a de ter bloqueado pagamentos aos seus criadores de conteúdos, deixando ainda outras críticas ao JP Morgan, como sendo “particularmente agressivo no encerramento de contas de trabalhadores da indústria do sexo… ou de qualquer negócio que os suporte”, acusou.
Parte da análise concentrou-se na pressão que empresas como a Visa e a Mastercard terão feito, devido ao seu medo de que possam ser responsabilizadas por conteúdos ilegais que sejam colocados no site e cujo pagamento acabem por processar, seja ele abuso sexual ou tráfico de seres humanos. Mesmo que a ilegalidade lhes seja alheia, isso abre a porta a que, pelo menos, sejam investigadas pelas autoridades.
“As empresas de cartões de crédito e instituições financeiras consideram o entretenimento para adultos como um setor de alto-risco, devido ao número muito elevado de transações contestadas em comparação com outras indústrias que usam transações por cartão sem presença física”, explica Woodford à EXAME. “Uma transação contestada ocorre quando um cliente questiona a validade de uma transação feita por cartão de débito ou de crédito, o que resulta em mais custos para a instituição financeira.”
Em dezembro, a Visa e a MasterCard suspenderam os pagamentos ao Pornhub, devido a investigações que apontavam para a existência de vídeos de abuso sexual de menores no seu site, o que obrigou a plataforma a excluir todos os vídeos que não fossem carregados por contas verificadas. Já este ano, a Mastercard passou a exigir que os bancos se certifiquem de que os conteúdos ilegais podem ser bloqueados e apagados, o que implica conhecer a identidade dos criadores de conteúdos e quem aparece nos vídeos (o OnlyFans diz que já cumpre estas regras).
Em ambos os casos, estas medidas respondem também a pressões de grupos conservadores, que têm tentado levar estas empresas a agir neste espaço. Nalguns casos, esta pressão tem seguido caminhos preocupantes, ligados à extrema-direita.
Alguém quer investir?
No entanto, esta não é a primeira dificuldade que o OnlyFans enfrentou no campo financeiro. O Axios teve acesso a informação interna da empresa que mostrava que ela registou vendas de 2,2 mil milhões de dólares no ano passado, que deverão saltar para 5,9 mil milhões este ano, com projeção de 12,5 mil milhões em 2022. As suas receitas líquidas deverão aumentar de 375 para 1200 milhões de dólares entre 2020 e 2021 e também duplicar no próximo ano.
“Qualquer outra empresa com um crescimento como o OnlyFans seria capaz de angariar muito dinheiro em poucos minutos”, escreve o Axios. Mas as últimas tentativas do grupo não têm sido bem sucedidas. Não parece haver interessados em ganhar dinheiro com a OnlyFans. “Sexo vende, como mostram os dados financeiros obtidos pelo Axios, mas também assusta investidores de capital de risco.”
Alguns destes fundos estão proibidos de investir em empresas com ligações à pornografia, outros têm medo que a empresa não seja capaz de garantir a legalidade de todos os conteúdos ou que simplesmente isso seja uma limitação para arranjar ligações com marcas ou parceiros mais mainstream.
Alguns viram a decisão do OnlyFans precisamente como uma oportunidade de legitimação do negócio. O porn tornou-o popular, mas para passar nadar na piscina dos tubarões tinha de o deixar para trás. Alguns analistas especulavam sobre o que significaria encher o site de celebridades. Um consultor de marketing fazia algumas contas no “Financial Times”, estimando que bastaria que 1% dos seguidores do Cristiano Ronaldo pagassem 10 dólares por mês para ter acesso aos bastidores do seu treino ou dieta para que isso rendesse 8 milhões de dólares por mês à empresa. A Cardi-B já está na plataforma.
Ainda assim, a reação foi esmagadoramente negativa, com muitos criadores a queixarem-se de serem apanhados na curva quando já tinham assumido compromissos financeiros. Desde que foi criado, o site já permitiu aos seus 3 milhões de criadores receberem 3,2 mil milhões de dólares. Desses, 300 ganham mais de um milhão por ano e 16 mil ganham pelo menos 50 mil dólares. Muitos começaram a abandonar a plataforma, inscrevendo-se noutros portais, como o Justfor.fans.
O OnlyFans acabaria por recuar. Num tweet de 25 de agosto, agradece a todos os que “se fizeram ouvir” e anunciou que estava “suspensa” a decisão de mudar a política da empresa em relação à pornografia. Não ficou claro se é uma opção final ou simplesmente um adiamento.
Este episódio deixará marcas? Woodford sublinha que a capacidade do OnlyFans para monetizar os seus conteúdos através de canais de pagamento tradicionais dependerá do posicionamento destas empresas – Discover, Mastercard, Visa – face à pornografia. “Para diminuir a influência de instituições financeiras mainstream no futuro, o OnlyFans terá de seguir o exemplo de outros distribuidores de pornografia e introduzir a opção de pagamento por criptomoeda”, antecipa à EXAME.
Isso tornará o negócio mais blindado, mas também mais opaco, podendo motivar maior desconfiança.
Ativismo empresarial
Este caso também suscita alguma reflexão sobre o potencial e limites de um setor empresarial mais ativo na definição daquilo que é aceitável em sociedade. Agora é o posicionamento da banca em relação à pornografia, mas não é difícil imaginar algo semelhante aplicado à indústria da canábis ou outro setor “indesejável”.
Ao FT, Katrin Tiidenberg, socióloga da Universidade de Tallinn, acusa os bancos de tirar a plataforma aos trabalhadores sexuais. “Não queremos que as empresas financeiras se tornem os juízes de [cultura e sexualidade], que é aquilo que eles estão a fazer, ao dizer-nos como devemos gastar o nosso dinheiro.”
Porém, esta mesma lógica tem sido utilizada para defender certas políticas progressistas, pedindo às empresas que sejam mais ativas em questões relacionadas, por exemplo, com alterações climáticas. Num editorial, o mesmo FT fazia esse aviso:
“Se um banco tem de prestar atenção às suas responsabilidades sociais para lá do lucro, não há garantia de que ele partilhe a sua visão acerca de quais são essas responsabilidades. Muitos ativistas liberais apreciaram a adoção pelos bancos de uma agenda ambiental, social e de governance. Mas uma postura agressiva em relação à pornografia e trabalhadores sexuais motivou preocupações acerca do papel dos bancos e de empresas de gestão de pagamentos enquanto censores e guardiões da moral.”
Motivos reais de preocupação
E talvez haja motivos para esta desconfiança do mundo financeiro em relação à indústria pornográfica. Uma investigação recente da BBC sobre o OnlyFans concluía que a empresa era pouco agressiva na sua política de fiscalização, com os seus moderadores a poderem emitir vários avisos antes de fecharem uma conta. A empresa pedia também tolerância na supervisão de contas com muitos seguidores.
Documentos internos a que a BBC acedeu mostram que o OnlyFans não estava a ser capaz de impedir menores de 18 de usarem a plataforma e que alguns vídeos acabavam por violar outras regras da empresa, de serviços de prostituição a bestialidade.
Um contra-argumento do OnlyFans é apontar a existência de casos semelhantes noutras redes sociais mainstream, como o Facebook e o WhatsApp, mas a linha de defesa “os outros também têm estes problemas” não é muito eficaz.
O problema é generalizado. O já foi referido o Pornhub teve os holofotes sobre si no final do ano passado, quando um artigo demolidor do NYT expôs a escala da pornografia de vingança, violações, vídeos de menores e violência existente no site.
“O Pornhub é como o YouTube no sentido em que permite que o público carregue os seus próprios vídeos. A grande maioria dos 6,8 milhões de novos vídeos colocados no site todos os anos provavelmente envolvem adultos e consentimento, mas muitos têm abuso de crianças e violência não consentida”, lia-se no texto. Como é possível fazer download de vídeos, mesmo que eles depois sejam apagados, a partir do momento em que começam a circular num site com mais visitas do que a Netflix, eles vivem para sempre online.
A pressão pública gerada acabou por obrigar o Pornhub a introduzir uma série de mudanças (uploads apenas por contas com identidade verificada, mais recursos para a moderação e impedir downloads dos vídeos). Mas, não só será necessário avaliar se elas são cumpridas, como o Pornhub é o site com mais visibilidade, nos outros “tubes” do porn estas regras nem sequer existem.
“Para uma empresa como OnlyFans, a solução óbvia é deixar de ser uma plataforma e começar a ser um verdadeiro negócio integrado”, escreve Noah Smith, colunista da Bloomberg, no seu substack. Isso implica ser muito mais exigente na capacidade de fiscalizar a moderar, o que terá obviamente mais custos. “A responsabilidade legal é mais uma razão para que o negócio de criar uma plataforma barata e deixar que terceiros atuem sem limites é um modelo inerentemente limitado.”
Uma operação menos ágil tornará a empresa financeiramente menos interessante no curto prazo, mas talvez seja o único plano sustentável. Isso pode aplicar-se a outros exemplos de grupos que operam neste espaço da “gig economy”. Noah acha que há aqui lições para a Uber e outras aplicações do género. Ao contrário do OnlyFans, a Uber não permite que os seus motoristas escolham aquilo que cobram pelas viagens (um dos motivos para a argumentação acerca da natureza do seu vínculo laboral ser tão frágil), mas tem outras semelhanças. “As plataformas [da gig economy] cortaram definitivamente os custos de transação, mas, em muitos casos, talvez não o suficiente para justificar a gigantescas avaliações e booms massivos de investimento.”
Criadores online
O OnlyFans é apenas uma das faces de um possível momento de viragem na remuneração no universo online. A massificação da internet e a popularidade das redes sociais tiraram o poder dos criadores e colocaram-no nas mãos de mega-distribuidores, como o Facebook ou o Twitter. Algumas das pessoas mais engraçadas e interessantes estão nestas redes e recebem zero pelo contributo que dão para atrair utilizadores para estas redes que, diretamente e indiretamente, lucram com isso.
Mas os últimos anos trouxeram novidades nesta área e plataformas como o Substack e o Twitch ajudaram a furar esse modelo de negócio. Elas permitem eliminar intermediários e deixar que os criadores fiquem com uma percentagem maior dos seus ganhos. Ao contrário do YouTube ou Spotify, onde apenas uma pequena minoria de artistas consegue receber quantias relevantes, algumas destas plataformas ajudam a gerar uma espécie de classe média de criadores. Mantém-se a assimetria – a maior parte dos seguidores concentram-se nos nomes mais conhecidos e há milhares de contas quase sem ninguém -, mas torna mais possível a exploração de nichos.
“Algo neste modelo está a mudar. Embora haja mais conteúdo do que alguma vez houve, as plataformas estão a competir cada vez mais por ele […] À medida que lutam pelo conteúdo mais popular, o poder negocial vai sendo transferido para as pessoas que o produzem”, escreve a Economist.
O OnlyFans também faz parte dessa onda. Mas, como vemos, ela tem as suas limitações.