De que forma as empresas conversam com a Ciência, em Portugal? O que falta para trabalharem mais em conjunto, para traçarem e atingirem objetivos comuns, usando toda a capacidade e talento que temos à disposição, em uníssono, e sem que cada um tente “puxar a brasa à sua sardinha”, para usar um ditado o mais português possível? Foi numa manhã partilhada apenas virtualmente, mas com o Martinhal Chiado, parceiro da EXAME na Girl Talk, como pano de fundo, que a diretora do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), Maria Manuel Mota, e a Iberian Region Business Controller Cereal Partners Worldwide da Nestlé, Patrícia Relvas, pediram que se trabalhe uma linguagem comum que permita fazer pontes. E esperam que este espírito de colaboração e entreajuda que a pandemia potenciou em todo o mundo tenha vindo para ficar, embora admitam que aos governantes continua a fazer falta pensar mais a prazo, em prol de um bem comum que, muitas vezes, não se comove com o “concurso de popularidade” que teimam em tentar ganhar.
“Eu acho que [as empresas e a investigação] conversam cada vez mais, mas muito pouco para o que devíamos conversar”, começa por dizer Maria Manuel Mota. “A principal razão, a meu ver, tem que ver com linguagem. Temos linguagens diferentes, e é difícil quebrar o gelo, pensar como fazer para começar a conversar com outros que pensam diferente de nós. Isto é sempre assim. Quando vamos a uma festa, a um jantar a convite de alguém, é mais fácil conversar com alguém que faz o que nós fazemos, que já conhecemos ou com quem sabemos como conversar, do que começar a conversar com alguém que é muito diferente de nós”, exemplifica. Mas a investigadora admite que tem havido, ao longo dos tempos, uma “certa snobeira, enfim…”. “Por várias razões, às tantas, não víamos as vantagens de conversarmos uns com os outros. Fazendo novamente um paralelo com ir a casa de alguém, eu faço um esforço se achar que tenho algo a ganhar com isso, que a noite será interessante se conversar com aquela pessoa. Mas se não vir qualquer interesse, não vou fazer qualquer esforço. E penso que esse segundo aspeto até é o mais óbvio do que tem acontecido” nesta falha de comunicação entre investigação e indústria.
A bióloga acredita que, nesta altura, as empresas já perceberam que os ganhos que podem ter com a Ciência são significativos e que os investigadores também já estão mais conscientes de que a indústria tem um papel relevante na prossecução de objetivos comuns. “Mas penso que só vai melhorar quando começarmos mesmo a conversar, a usar as mesmas palavras, a mesma forma de estar. Isso demora tempo, e não só no nosso país. Noutras sociedades, já está a acontecer, porque começaram há mais tempo. Já houve mais festas [risos] e, portanto, temos de criar mais oportunidades para que possa acontecer por cá também.”
Interesses económicos para desenvolvimento da vacina são claros: “os do planeta inteiro, que está parado”
“Sabemos que, na prática, as empresas estão cada vez mais conscientes de que precisam de mais investigação para dar suporte aos seus projetos, e empresas de maiores dimensões, como a Nestlé, têm até os seus próprios centros de investigação”, começa por afirmar Patrícia Relvas. “E é preciso reconhecer que a própria investigação está mais consciente de que tem de ter alguém que, depois, ponha em prática as suas descobertas”, assume. “Claro que isto não é fácil, porque há várias diferenças, por exemplo, ao nível do ritmo e da pressão dos resultados. Na Ciência, os resultados são para amanhã e, nas empresas, os resultados são para hoje, ou para ontem. Tem de haver a habilidade de conciliar estes ritmos e consciência de que a pressão dos resultados é diferente”, defende. Que é como quem diz, a pressão do lucro é a que mais conta, do lado da indústria.
Maria Mota, por seu lado, considera que isso é natural. Mas acredita que é possível encontrar um ponto a meio do caminho onde ambos os lados entendem as vantagens do esforço comum. “Costumo dar sempre o exemplo que acho o melhor da Humanidade, que é o da descoberta do fogo”, diz, com um sorriso. “Nenhum homem ou mulher, quando viu o fogo pela primeira vez – e temos de assumir que ele foi descoberto em vários lugares, em tempos diferentes – pensou: ‘Uau, vamos fazer algo que dá para produzir comida, não ter tantas doenças infecciosas, porque nos vai permitir esterilizar…’ Nada disso foi pensado dessa forma. Simplesmente aconteceu! E a Ciência tem essa parte maravilhosa, que é: a descoberta acontece e a aplicação vem depois”, nota. “Claro que, para as empresas, isto não é possível, porque não podem investir em coisas que não sabem quando e se vão ter aplicação! Ou seja, não teremos a Ciência toda a fazer a descoberta pela descoberta, mas também não podemos fazê-la apenas com propósitos concretos. Tudo tem de ser com peso e medida, e a sociedade tem de estar muito envolvida neste diálogo, porque é o dinheiro dos contribuintes, ou dos filantropos, que nos permite continuar.”
Patrícia Relvas concorda, sublinhando que, “de um ponto de vista teórico, a investigação pode não chegar a um resultado, e ter de refazer o caminho, o que leva mais tempo e mais custos… No fundo, não tem uma pressão de resultados imperiosos – só que, sem resultados, as empresas não sobrevivem”, observa. Contudo, recorda Maria, foi precisamente o trabalho de milhares de investigadores, durante as últimas décadas, que se dedicaram a descobrir e a desenvolver tecnologias que nem sabiam bem para que serviriam ou se, um dia, serviriam para algo que permitiu encontrar uma vacina contra a Covid-19 em tempo recorde. “Nem nós, cientistas, pensámos que podia haver vacinas em tão pouco tempo. Mas a verdade é que, quando pusemos todos os esforços ali, conseguimos. E porquê? Porque a Ciência já tinha desenvolvido a tecnologia, que não estava a pensar nesta pandemia, naturalmente. Há 15 ou 20 anos que temos cientistas pelo mundo inteiro a desenvolver tecnologia que agora foi possível usar”, salienta, lembrando que o que aconteceu foi que se evitou, com a Covid-19, que a investigação feita anteriormente caísse naquilo que os economistas apelidaram de “Vale da Morte”, há umas décadas. “É quando a Ciência produz patentes ou ideias que ainda não estão desenvolvidas ao ponto de atrair a indústria. Não havendo investimento, elas caem no ‘Vale da Morte’. Ora, precisamos de construir pontes para que isto não aconteça. E muitos centros de investigação já estão a fazê-lo, através da criação de gabinetes, que se chamam Gabinetes de Transferência de Tecnologia, onde se olha para as patentes e para as ideias que temos e vemos a que tipo de empresas se podem aplicar, ou se se consegue arranjar investidores para coisas que ainda estão em desenvolvimento”, explica. “Por exemplo, a Nestlé há de ter centros de investigação que permitem que alguns cereais sejam mais ou menos crocantes, mas mais saudáveis, e tem de perceber que, para esse processo, usa imenso conhecimento que a academia lhe providencia.”
Maria Mota aproveita para explicar que foi precisamente a construção dessas pontes que fez com que as vacinas contra a Covid-19 fossem possíveis em tão pouco tempo, e garantindo que todas as que foram aprovadas pela Agência Europeia de Medicamentos são seguras. “É normal as pessoas terem ficado com dúvidas, mas é importante percebermos que, se pusermos todo o esforço num determinado problema, encontramos soluções”, começa por dizer. “E é claro que há, aqui, interesses económicos. O do planeta inteiro, que está parado [risos]! E como houve interesse, todo o financiamento foi ali injetado, e sem qualquer problema”, admite. Quanto às aprovações, o que sucedeu é que, no mesmo dia em que a documentação era submetida para aprovação, começava a ser analisada – geralmente, esse processo demora meses. “Não há razão nenhuma para as pessoas acharem que o processo foi atabalhoado. No fundo, não houve atalhos; o que houve foi uma sucessão de semáforos verdes! E por isso é que foi rápido”, resume. Patrícia Relvas sublinha a importância de tornar a sociedade consciente de todos estes processos, realçando que isso terá um impacto em toda a linha, seja na investigação ou na indústria. “Se o consumidor valorizar estas questões, vai perceber a investigação e as suas mais-valias, e estará disponível para pagar o preço. Em resumo, só falta encontrar o denominador comum no ritmo e nos resultados” entre as duas áreas. “As empresas vão continuar a fazer o seu papel, tal como a Ciência e cada membro da sociedade. Mas, naqueles jantares à sexta-feira, cada um tem de falar mais com os outros, com uma linguagem comum. E temos de aprender a juntar-nos por rotina”, resume Maria.
Para que isso seja possível, pedem as executivas, era importante que os governantes se apressassem a dar o exemplo. “Estamos a ver um atraso no que diz respeito à evolução de Portugal. Temos menos produtividade, a economia mais degradada, e este contexto da pandemia não veio ajudar. O que eu gostaria de ver agora, nesta realidade política, era um maior entendimento, uma maior defesa de soluções a prazo – um pouco como isto de que estivemos a falar: menos soluções imediatas para justificar votos e permanência no poder e, em vez disso, encontrar um entendimento partidário”, apela Patrícia. Já a diretora do iMM pede aos políticos mais capacidade para sonhar. E cita a economista Mariana Mazzucato – que recorda a importância de John Kennedy ter traçado o objetivo de colocar o homem na Lua no desenvolvimento da economia norte-americana da época. “Acho mesmo que os nossos governantes têm de aprender a sonhar e deixar de pensar que andam num constante concurso de popularidade. A verdade é que a democracia está sempre em jogo. […] Precisamos de uma Europa que seja sonhadora outra vez e que deixe de andar com as burocracias e entendimentos todos”, atira, em jeito de pedido. E de conclusão.
Artigo publicado inicialmente na edição n.º 444 , de abril de 2021, da revista EXAME