Fatores como a diversificação de mercados e de produtos e a solidez da estrutura financeira contribuíram para que algumas empresas conseguissem manobrar após a deflagração da atual crise pandémica. Mas será a capacidade de aproveitar este tempo de incerteza e de pausa para repensar processos internos e propósitos que mais vai condicionar o seu futuro num próximo normal.
“Trinta por cento do meu tempo anual, que era passado a viajar, dediquei-o ao chão de fábrica, aos processos, a reestruturar. A ir, como se costuma dizer, ao ginásio na economia,” recorda António Rios Amorim, sobre os meses em que a pandemia o impediu de fazer viagens internacionais e contactar fisicamente com as mais de 50 empresas que tem no estrangeiro. Mas, reconhece o presidente da Corticeira Amorim, este tempo que passou a dedicar à transformação e reorientação “vai ter um efeito positivo no day after” da empresa.
Também na Dielmar, que de um dia para o outro se viu a braços com a incerteza criada por confinamentos e desconfinamentos intermitentes nos 21 mercados onde está presente, os momentos em que a empresa de confeções ficou sem trabalhar foram utilizados para fazer formação interna, reestruturar projetos e começar a “pensar e planear o futuro.” “De repente, deixámos de ser capazes de planear algum trabalho que ainda tínhamos, porque o mundo mudou de forma surreal. As rotinas desapareceram repentinamente”, nota a CEO, Ana Paula Rafael.
Reflexões deixadas esta terça-feira, 24 de novembro, no painel “Olhar em Frente”, o terceiro realizado no âmbito da conferência anual “Portugal em EXAME” e que desta vez trouxe a visão e a experiência dos empresários portugueses perante os desafios criados pela pandemia. Um painel também marcado por um entendimento positivo das lições que se podem tirar agora e também da recuperação económica e das portas que se deverão abrir no pós-Covid-19. “É uma altura de oportunidades. Estou muito surpreendida com os projetos que tenho, que foram muito abaixo no início da pandemia e estão agora numa trajetória oposta,” considera Maria Cunha.
A empresária, que esteve ligada à criação da marca de calçado Josefinas e aposta em negócios na área da joalharia e também com presença online, acredita que esta é a altura para sobressaírem os valores das empresas: “Os clientes têm de se sentir ligados, questões como a sustentabilidade são extremamente importantes. As crises são ótimas para refocar, repensar e tornar a empresa mais sustentável,” disse também durante a Portugal em EXAME, conferência que decorre até ao final da semana e é este ano transmitida integralmente online.
Sem cerimónias
Em comum, estes três negócios viram-se afetados pelas medidas do confinamento e pelos receios gerados pela doença do novo coronavírus, que resultaram no cancelamento ou adiamento de cerimónias e celebrações e no fecho de estabelecimentos comerciais. Na Corticeira Amorim, onde 70% do negócio provém da produção de rolhas, pesou a queda das vendas dos clientes, com menos vinhos e champanhe escoados no canal HORECA (hotelaria, restauração e cafés) e em festas. Na empresa de Maria Cunha, a redução de movimento nos hotéis por causa da queda do turismo teve impacto na venda de joalharia. Com mais pessoas a trabalhar a partir de casa e menos casamentos ou batizados, a Dielmar sentiu o impacto da queda da venda de vestuário mais formal ou corporativo, agravado pelos confinamentos intermitentes, que deixaram produto em armazém por escoar.
“Nós só temos o ‘champanhe’, não temos armas para reequilibrar com outro tipo de produtos,” lamenta Ana Paula Rafael, numa referência à área do vestuário em que trabalha. “Sem socialização formal no trabalho e casamentos deixámos de contar com isso, e foi como termos de mudar de galáxia, mudarmo-nos para Marte onde não há piscinas para tomar banho e vamos para a praia,” ilustrou. Já à Corticeira Amorim valeu o melhor comportamento de mercados como os conhaques e bourbons nos EUA (no caso das rolhas) e a maior procura por pavimentos, com mais gente fechada em quatro paredes e mais tendente a gastos para a renovação da casa.
Estratégias de saída
Essa diversificação de mercados e produtos que permite a difusão do risco, a necessidade de garantir o fornecimento aos mais de 30 mil clientes no mundo e a estrutura financeira (incluindo um buffer e a resposta da banca a nível nacional e internacional) foram cruciais para a empresa liderada por António Rios Amorim atravessar os últimos meses. Também a Dielmar se “agarrou” à cadeia de clientes que contavam com o fornecimento da empresa de Alcains: “Tínhamos clientes que estavam a contar connosco. Se desaparecêssemos…,” observa Ana Paula Rafael, que, além disso salienta também que a “paixão” dos colaboradores permitiu superar os receios iniciais face a uma doença desconhecida.
Já para Maria Cunha, o facto de ter sempre previsto uma componente online nos seus projetos empresariais foi o que deu “capacidade de respirar” – embora, nota, estes investimentos no digital tenham de ser feitos de forma tão ponderada como a abertura de uma loja física. Esta empresária antecipa que a crise de saúde pública vai deixar marcas no comportamento humano, pondo-nos a pensar mais naquilo que se compra.” O dinheiro existe, vai ser aplicado em poupanças ou em gastos, mas vai ser mais pensado. Se calhar vou comprar num pequeno negócio ou num que contribua para um mundo mais sustentável ou se preocupe com a ética,” refere Maria Cunha.
Também na expetativa de consumidores com milhões de euros poupados neste período e muito dinheiro nos bolsos para gastar no “day after”, António Rios Amorim está otimista com o crescimento da economia no ano que vem e sobretudo com o apoio da “bazuca” financeira que chegará de Bruxelas: “Há de ter um efeito qualquer no debelar económico desta crise,” confia.
Já Ana Paula Rafael diz-se mais preocupada com a preparação da mudança, para evitar os “efeitos perniciosos” dessa ausência de planeamento. “Não estou a ver como se podem reciclar milhares de atividades, todas estas pequenas empresas que dão emprego a milhares de pessoas. Se não for planeado, os setores de atividade deixariam de estar confinados para desaparecerem. E teria de haver outra ‘bazuca’ a seguir aquela que vamos colocar na economia,” alerta.