Uma das bicicletas mais caras do mundo não é bem uma bicicleta, é uma peça de arte. A “Butterfly”, utilizada por Lance Armstrong na Volta a França de 2009 e reinventada pelo artista Damien Hirst, foi vendida por meio milhão de dólares num leilão da Sotheby’s para apoiar a luta contra o cancro, um valor difícil de superar. Mas têm também surgido pelo mundo bicicletas com cristais Swarovski, banhadas a ouro, com dezenas de sensores pelo corpo de carbono, ou personalizadas.
Estes são, no entanto, segmentos minoritários. A outra forma que a indústria encontrou de acrescentar valor ao meio de transporte mais simples do mundo foi eletrificá-lo. Se as vendas da indústria global das bicicletas e componentes passar dos 21,1 mil milhões de dólares, em 2018, para quase o dobro – 38,6 mil milhões de dólares – em 2024, como previsto num relatório da consultora Mordor Intelligence, é porque conseguiu fazer subir, sobretudo, o preço unitário de cada veículo. Marcas como a BMW, a Maserati, a Volkswagen ou a Tesla já perceberam isso e começam a lançar os seus modelos sofisticados, tanto no desenho, como no peso ou na tecnologia.
“O crescimento tem sido muito grande. Na Alemanha, mais de 25% das bicicletas que circulam são elétricas, tendo-se vendido em 2019 mais de um milhão de unidades. Na Holanda, quase 50% das bicicletas já são elétricas. Na Europa mais ocidental, os números ainda são contidos, mas não tenho dúvidas de que nos próximos anos vamos assistir a um crescimento significativo. É impossível ficar indiferente”, afirma Bruno Salgado, diretor executivo da RTE, uma das maiores fábricas especializadas em montagem de bicicletas da Europa, a funcionar há mais de 30 anos em Vila Nova de Gaia. Ao interesse do consumidor juntam-se os investimentos públicos em infraestruturas cicláveis e os incentivos governamentais à aquisição, Portugal incluído. A 10 de março, o despacho n.º 3169/2020 fixou o valor de 350 euros de apoio na compra de uma bicicleta elétrica citadina ou de uma cargo-bike, um aumento de 100 euros face ao ano passado.
Desde 2017 que Portugal é o segundo maior exportador de bicicletas da Europa (perdeu, nesse ano, o primeiro lugar para a Holanda) e não está desatento ao fenómeno. São várias as fábricas em solo português a introduzir o elétrico na sua produção (ou seja, montagem), com vista a abastecer a Europa. “Na área dos componentes, temos a maior fábrica de rodas da Europa [Rodi]; uma das mais importantes e inovadoras fábricas do mundo de rodas pedaleiras e cranques [a Miranda]; a mais moderna fábrica do mundo de soldadura de quadros em alumínio para bicicletas e bicicletas elétricas [a Triangles, que resulta de uma fusão entre a Rodi, a Miranda e da Ciclo Fapril, e foi a primeira do mundo a produzir quadros de alumínio de forma robotizada]; e também a maior fábrica da Europa de montagem de bicicletas [a RTE]”, todas de capital português, enumera Gil Nadais. Em Vouzela, está ainda em construção (com capitais portugueses e estrangeiros) a Team Carbon, uma fábrica de quadros, rodas e aros em carbono; e a InCycles, que produz as bicicletas elétricas da Uber (as Jump, que começaram a circular em Lisboa mas já estão em cidades como Berlim, Roterdão, Madrid, Londres ou Roma), prepara a sua mudança para instalações maiores em plena pandemia.
Por outro lado, empresas estrangeiras – como a gigante de Taiwan, Fritz Jou Manufacturing, que se instalou em 2017 em Águeda; a Unibike; a Inter Bike; a Sangal; a Luso Orbea; a Alubike; e a Swift Carbon – estão a investir no País como plataforma de salto para a Europa. Existem ainda as parcerias, em que se produz material no estrangeiro para depois ser montado e finalizado em solo português.
Segundo o diretor da RTE, que fornece a francesa Decathlon, o terceiro eixo é fundamental. Para se manterem no topo, as empresas portuguesas “têm necessariamente de conseguir estabelecer parcerias com grandes marcas que queiram produzir na Europa”. “Cada vez mais elas procuram produzir próximo do local de venda, seja por agilidade da cadeia de abastecimento, seja por taxas à importação de produtos vindos de fora da União Europeia, seja ainda por questões relacionadas com a sustentabilidade ambiental”, afirma Bruno Salgado. Ou seja, as bicicletas podem sair de Portugal sem nome, mas são elas que estão a alimentar o Velho Continente em grande escala.
Por outro lado, é também a eletricidade que permite incluir no plano de viagem sistemas de aplicações integrados na nossa rede tecnológica diária, em que o cadeado se transforma num código eletrónico e os sistemas antirroubo e de localização são praticamente infalíveis. A Universidade do Minho e a Bosch, que desenvolvem há anos soluções deste género para a indústria automóvel, estão também a trabalhar em aplicações de entretenimento e segurança para bicicletas, avançou a empresa de origem alemã.
Repensar a cadeia produtiva
No ano passado, as exportações subiram 20%, perfazendo um total de 400 milhões de euros. Na base deste número já está a bicicleta elétrica, garante Gil Nadais, presidente da Abimota – Associação Nacional das Indústrias de Duas Rodas, Ferragens, Mobiliário e Afins, e secretário-geral do projeto de valorização e atração de investimento Portugal Bike Value. O dirigente concretiza: “Talvez não seja possível um aumento de 400%, mas acredito que, em 2020, ultrapassaremos largamente os 60 milhões de euros de bicicletas elétricas que Portugal exportou [em 2019]. A incógnita, neste momento, chama-se coronavírus.” Ainda assim, a pandemia poderá ser precisamente o mote para repensar a atual cadeia produtiva. “Em vários setores, há indústrias paradas pela falta de matérias-primas ou componentes, que não chegam do Oriente devido ao facto de uma parte significativa do tecido produtivo e dos transportes estarem parados. O momento que atravessamos poderá criar uma nova forma de encarar a produção”, afirma o dirigente.
Apesar das incertezas, tudo indica que, nos próximos anos, caberá à bicicleta elétrica “tornar o mundo mais plano”, permitir percorrer “maiores distâncias com mais facilidade, não ficar retido nas filas de trânsito, não ir ‘enlatado’ no transporte público e fazer exercício enquanto se poupa dinheiro”. Uma tendência reforçada pelo novo imperativo da distância social e pela visão da bicicleta como um escape ao sedentarismo imposto pelo confinamento. A 22 de abril, o jornal The Guardian publicava um artigo intitulado “As bicicletas são o novo papel higiénico”, referindo-se à procura massiva e abrupta destes veículos na Austrália. Em França, no âmbito do pós-confinamento, o Governo decidiu desbloquear 20 milhões de euros para um plano favorável às bicicletas: dará cheques de 50 euros para a reparação de veículos, financiará formação e ajudará empresas (com pacotes até 400 euros) a apoiar os funcionários que se desloquem de bicicleta – que surge como alternativa perante a forte possibilidade de os transportes públicos não responderem de forma eficaz no regresso à vida laboral. “As próximas semanas representam uma oportunidade para muitos franceses, já ciclistas ou não, escolherem andar de bicicleta”, declarou a ministra da Transição Ecológica e Inclusiva, Élisabeth Borne, a 30 de abril.
Produzir cá dentro, pedalar lá fora
Não indiferente à pedalada elétrica, a RTE, que exporta mais de 90% dos cerca de 1,2 milhões de bicicletas (de montanha, estrada ou urbanas) produzidas por ano, espera que o segmento elétrico – hoje residual – represente 50% do volume de produção nos próximos anos. Para isso, irão também lançar uma marca própria, a BEEQ, com o objetivo de apresentar ao consumidor “uma relação qualidade/preço que não exista” no mercado. “Sei que parece um cliché, mas os clientes são cada vez mais exigentes, sabem exatamente que alternativas têm e onde encontrá-las. Isso obriga-nos a entender muito bem qual deverá ser o nosso foco. Fazemos um esforço constante por procurar novas tecnologias, novas ferramentas que permitam melhorar os nossos processos e que tragam vantagens competitivas quer ao nível do próprio processo, quer da qualidade do produto”, explica Bruno Salgado.
Em Vila Nova de Gaia, o fabrico de quadros de aço é automatizado e a soldadura, robotizada. “Para já, não encontra igual no mundo”, garante o diretor. Outro elemento distintivo é “a pintura com tintas em pó e líquido, que trabalha com as várias técnicas de decoração disponíveis no mercado, aplicadas aos produtos quadro e forqueta, ao nível do que de melhor existe”.
No eclodir do estado de emergência, a RTE fechou portas e sobre o futuro próximo pouco se sabe. No entanto, dos planos de longo prazo não escapa a ideia de crescimento. Não chega serem os maiores da Europa, como se intitulam. “Queremos assumir-nos como um dos maiores produtores mundiais. Vamos, por isso, abrir uma unidade de produção na Polónia em 2022”, para conseguir chegar mais rápido e com menos custos a outros mercados, como a Alemanha, o principal consumidor europeu.
Paulo Lemos, administrador da Esmaltina – produtora das saudosas BMX e que continua a ter nas bicicletas de montanha o seu principal produto –, também não tem dúvidas de que, hoje, quem manda é o cliente. Se em 1970, quando foi criada, a marca produzia e o mercado comprava, hoje é o cliente que surge com o pedido específico e a fábrica tem de se adaptar. Foi por isso que, há seis anos, a empresa investiu para reformular a estrutura e os processos de produção e, há três, introduziu “novos sistemas informáticos para satisfazer as crescentes complexidades de variedade de materiais utilizados no processo de montagem”, enquadra Paulo Lemos.
Foi também este upgrade que permitiu juntar quadros a baterias na linha de produção – a montagem de uma bicicleta pode incluir mais de 100 peças – para chegar às bicicletas elétricas, que são, “sem dúvida, o futuro”. “Este ano, esperamos chegar às 15 mil, mas o objetivo é atingir as 50 a 60 mil [no total, a Esmaltina fabrica 150 mil bicicletas por ano, mas tem uma capacidade instalada para 400 mil]”, todas através de parcerias com empresas no exterior, já que em Portugal é maior o interesse em produzir do que em consumir. “Ter poder de compra para um valor médio de 2 mil euros por unidade é difícil” e, “aqui, a mentalidade é outra”, nota Paulo Lemos. Ao segundo grande exportador de bicicletas da Europa falta crescer no hábito de pedalar.
Artigo publicado originalmente na edição 434, de junho, da revista EXAME