Christine Lagarde disse no Parlamento Europeu que na liderança do BCE não quer ser forçada a repetir o discurso de Mario Draghi em 2012, quando o ainda líder do banco central afirmou que iria fazer tudo o que fosse preciso para salvar o euro. A crise e as dúvidas existenciais sobre o futuro da moeda única parecem estar mais distantes que há sete anos. Mas Draghi foi forçado a anunciar esta quinta-feira, na sua penúltima reunião de política monetária, mais uma ronda agressiva de medidas de estímulo para tentar animar a economia da zona euro e, de certa forma, prevenir que a sua sucessora tenha de se socorrer da retórica forte para acalmar cidadãos e investidores.
Apesar de todos os estímulos dados pelo banco central nos últimos anos, a economia do euro não dá sinais de vigor. Além disso, a incerteza sobre os impactos da guerra comercial e do Brexit pesam na confiança e impedem que as expectativas para a inflação se aproximem da meta do banco central, para um valor próximo mas abaixo de 2%. Este cenário levou a que a última grande decisão de Draghi no BCE (o mandato termina no final de outubro) seja quase um bater em retirada na estratégia de aos poucos ir tirando as medidas extraordinárias usadas para estancar a crise de dívida e espicaçar o crescimento.
Na prática, torna a vida mais fácil para quem necessita de crédito e mais complicada para quem quer meter as poupanças a render.
Juros ainda mais baixos
O BCE decidiu na reunião que terminou esta quinta-feira um corte de juros para valores ainda mais negativos, vai retomar as compras líquidas de ativos. O juro dos depósitos que os bancos fazem junto do BCE foram cortados para valores ainda mais negativos. Baixaram de -0,40% para -0,50%. Isso desincentiva as instituições financeiras a guardar dinheiro em excesso e pretende que coloquem essa liquidez a circular na economia. Esta taxa nunca esteve tão baixa. Na prática, se os bancos depositarem junto no BCE, perdem dinheiro.
Esta política de juros negativos penaliza a rentabilidade dos bancos, que têm apostado na subida de comissões para suster o impacto. Para tentar mitigar essa consequência, o BCE vai colocar em prática um modelo de escalonamento em que isenta desse custo parte das reservas de liquidez dos bancos.
Já a taxa de referência a que o BCE empresta dinheiro aos bancos permanece em 0%. No comunicado das decisões de política monetária, o banco central já não indica um prazo específico para começar a subir juros. E até admite que podem descer mais. “O Conselho de Governadores espera que as taxas de juro permaneçam nos níveis atuais ou mais baixos até ser visto que a perspetiva para a inflação converge de forma robusta para um nível suficientemente próximo, mas abaixo, de 2%”.
Essa indicação sugere que o BCE não tem segurança de quanto tempo demorará até que a inflação vá para os níveis pretendidos o que garante um período mais longo de juros baixo. Em teoria, esta decisão terá reflexo nas taxas Euribor, que deverão continuar em níveis negativos durante mais tempo, o que ajuda a quem tenha crédito à habitação a taxa variável e acaba por ser uma dor de cabeça para a banca.
Mais compras de ativos
Não durou um ano a ausência de compras líquidas do BCE no mercado de dívida. O banco central vai retomar o programa de compra de ativos (APP, na sigla em inglês e que inclui dívida pública, obrigações hipotecárias, dívida titularizada e obrigações de empresas). “As compras líquidas serão retomadas sob o APP a um ritmo mensal de 20 mil milhões de euros a partir de 1 de novembro”, indica a instituição liderada por Mario Draghi.
E, mais uma vez, o Conselho de Governadores não se compromete para uma data para parar a máquina de injetar dinheiro no sistema financeiro. “Espera-se que dure o tempo que for necessário para reforçar o impacto acomodatício da política de taxas e para acabar pouco tempo antes de se começar a subir as taxas de juro de referência”.
Depois de ter terminado com as compras líquidas, no final do ano passado, o BCE apenas reinvestia o dinheiro de títulos de dívida que atingiram a maturidade. Agora, vai ter novamente um papel ativo no mercado. Foi a expectativa deste regresso às compras que acelerou a queda dos juros da dívida soberana da zona euro, incluindo a portuguesa.
A taxa que os investidores exigem para financiarem Portugal a dez anos desce de 1,70% para 0,18% desde o início do ano. O BCE compra também dívida de empresas. A EDP e a REN são algumas das cotadas nacionais que entram no radar do banco central e poderão ter as suas condições de financiamento no mercado ainda mais favorecidas.
O último confronto de Draghi
No entanto, as medidas anunciadas pelo BCE não foram consensuais. O governador do banco central da Holanda disse antes da reunião que a economia da zona euro não estava num tal estado de fraqueza que justificasse mais compras. E, segundo a Bloomberg, a primeira reunião do Conselho de Governadores, na quarta-feira durou bastante mais tempo que o previsto, um sinal de que poderá ter existido divergências sobre o caminho a seguir.
Depois de ter ajudado a impedir o colapso da zona euro com o discurso de 2012, Mario Draghi ganhou um estatuto de quase super-herói para os economistas. Mas que se foi dissipando nos últimos meses, devido à necessidade de recorrer novamente a medidas não-convencionais e à maior convicção de que o BCE gastou as armas todas e que as suas políticas já não são tão eficazes para assegurar a sustentabilidade da economia da zona euro.
Numa nota a investidores no início da semana, os economistas do ING compararam Draghi a um super-herói envelhecido que tinha uma última oportunidade para ganhar o confronto. “O guião foi escrito muitas vezes e em todo o tipo de versões: o super-herói envelhecido ou reformado enfrenta desafios aparentemente intransponível, foi descartado ou ultrapassado pelos concorrentes. Depois chega o desafio final em que o super-herói envelhecido triunfa”.
Para já, Draghi aparenta ter triunfado sobre o grupo de banqueiros centrais mais ortodoxo, que teme as consequências negativas de mais medidas deste tipo. Apesar da decisão desta quinta-feira facilitar ainda mais as condições monetárias e financeiras no euro, ajudando a que estados, empresas e particulares tenham acesso a crédito mais fácil e barato, torna ainda mais difícil a tarefa de quem quer poupar.
Com juros negativos ou próximos de 0% em aplicações mais conservadoras, estas medidas podem ser um incentivo para que investidores e aforradores arrisquem mais para ter algum retorno, o que torna mais provável que apareçam bolhas especulativas. No caso de Portugal e de outros países da zona euro, esta política ultraexpansionista do BCE é apontada como uma das causas para a valorização acentuada dos preços do imobiliário, por exemplo.
Na última batalha em Frankfurt, Draghi sobrepôs-se aos opositores no Conselho de Governadores. Mas, se há algo que os últimos anos provaram, é que a política monetária está longe de ter super-poderes para resolver os problemas estruturais da economia. E o presidente do BCE, quase como um super-herói desgastado, reconheceu recentemente que “nos últimos dez anos, o fardo do ajustamento macroeconómico recaiu de forma desproporcional na política monetária. Vimos mesmo casos em que a política orçamental tem sido pró-cíclica e contrariou o estímulo monetário”.
Andrew Kenningham, economista-chefe da Capital Economics, até reconhece que o pacote de medidas anunciado por Draghi vai além do que o mercado esperava. Mas afirma, numa nota a investidores que, ainda assim, “continua a ser duvidoso que isto seja suficiente para fazer com que a economia da zona euro atinja a meta de inflação de próximo de 2%”. Também os economistas do ING foram rápidos a reagir às medidas. Afirmam que “apesar de toda a excitação do mercado, permanece a questão sobre se isto será suficiente para trazer o crescimento e a inflação de volta”. E concluem: “É evidente que sem estímulos orçamentais, esta última façanha de Draghi não levará necessariamente a um final feliz”.