Se a reconfiguração tecnológica no setor financeiro está a fazer emergir novos prestadores de serviços alternativos à Banca, a revolução da robotização pode deixar-nos literalmente a falar com o algoritmo. Robert Wardrop, cofundador do Cambridge Centre for Alternative Finance, esteve em Carcavelos a falar de “mudanças radicais” no relacionamento com os bancos e disse que a maior ameaça ao modelo bancário tradicional é a entrada de operadores móveis e de comércio digital nos serviços financeiros. O investigador da Judge Business School, que esteve na conferência Fintech e Desenvolvimento de Mercado, promovida pela CMVM na Nova SBE, alertou ainda para o risco de surgimento de “icebergues sistémicos dissimulados” em algumas geografias.
Veio a Carcavelos debater as fintech num contexto de inovação financeira. Que tendências marcam esta indústria e o que podemos esperar?
O financiamento online de empréstimos é um dos serviços mais implantados pelas fintech e está para ficar, e os bancos incumbentes usam estas inovações para aumentarem a própria eficiência. Há ainda fintech com escala a transferirem-se para dentro do sistema, trazendo a operação e os seus processos digitais para um banco regulado, que pode receber depósitos e aceder a capital a custo mais baixo. A primeira plataforma de empréstimos peer-to-peer do mundo, a Zopa, pediu recentemente uma licença bancária. Será uma ameaça muito interessante a incumbentes que não estão a fazer a transformação digital no crédito. E grandes players tecnológicos, como a Amazon, aproximam-se do negócio financeiro. Não tentam ser bancos, procuram usar o efeito poderoso de rede para oferecer serviços inovadores.
As fintech são terreno fértil para fusões e aquisições da Banca?
A resposta imediata seria sim. Muitas chegaram ao mercado pensando que, se inovassem e se ameaçassem os bancos, acabariam por ser compradas. No entanto, sobrestimaram grosseiramente essa possibilidade. Os bancos estão interessados, primeiro, em colaborar e em aprender e só depois em decidir se desenvolvem sozinhos a atividade ou se compram as fintech. E elas subestimaram as opções de inovação dos bancos. Por isso, plataformas como a Zopa ou a Funding Circle – que entrou recentemente em bolsa – seguiram os próprios caminhos. Se se tornarem suficientemente grandes, talvez passem a ser alvos de aquisição.
E entre as fintech? Ganhar escala com compras e fusões traria vantagens?
Algumas delas estão subdimensionadas, há uma quantidade enorme de inovação dispersa devido ao muito capital disponível. Se um sobressalto na economia reduzir essa disponibilidade, haverá uma erosão na avaliação das fintech. Mercados como o Reino Unido incentivaram o investimento em fases iniciais de negócio, com benefícios fiscais tremendos para business angels. A disponibilidade de capital pode ter inflacionado as avaliações de early stage.
Vê um risco de bolha?
Imagine que estávamos aqui sentados no final de 1999 e, de repente, o Nasdaq [índice bolsista tecnológico] começa a cair. Discutiríamos se isto é uma bolha e diríamos: “Sim, parece.” Seis meses depois estaríamos certos. No entanto, considerar que todas essas empresas estavam sobrevalorizadas seria subestimá-las. Hoje diríamos: “Devíamos ter comprado a Amazon” que também estava nesse pacote. Entre as fintech inovadoras, há empresas potencialmente muito grandes que sairão vencedoras.
“As fintech subestimaram as opções de que os bancos dispunham para inovar”
Na sua apresentação referiu uma plataforma de pagamentos com um peso muito importante numa economia africana. O setor das fintech está a caminhar para também ter entidades “too big to fail”?
A M-pesa trouxe benefícios substanciais ao Quénia, mas introduziu alguns riscos, incluindo esse. E se a plataforma deixar de funcionar e se as pessoas não conseguirem mexer no seu dinheiro? Sendo considerada um operador móvel, qual é a supervisão que se aplica? Tem uma importância sistémica no sistema financeiro. E é por isso que sugiro que existem riscos de “icebergues” sistémicos dissimulados.
Há o risco de alguns bancos, emprestando através destas plataformas, contornarem as boas práticas de financiamento a que estão normalmente vinculados?
No Reino Unido e nos EUA, os bancos veem as fintech apenas como canais para gerar empréstimos. Quando há excesso de depósitos e não é possível criar internamente volume suficiente de bons créditos, [os bancos] estão abertos a avaliar empréstimos [através das plataformas] e a investir. Muitos investidores institucionais têm capacidade de analisar empréstimos e transferem esses parâmetros para as plataformas, trabalhando de perto nos processos e critérios de atribuição, para determinar se é ou não um bom investimento. O quadro regulatório está a mudar para deixar de ser dirigido a entidades e passar a ser concentrado na atividade.
E as ICO (oferta inicial de moeda digital)? Têm futuro como forma de financiamento e serão fiáveis?
Uma vez mais, é como em 1999. Passámos por uma bolha de ICO, o valor de emissões caiu dramaticamente, mas há o perigo de se confundir a árvore com a floresta. Tem havido alguma fraude, questões de transparência. Ainda não tivemos experiência suficiente para saber se é um caminho para a criação de valor – o que foi criado até agora adveio da especulação. Como instrumento de financiamento para empresas nativas digitais, são uma linha de tendência importante. Apesar de alguns problemas profundos, não acredito que as ICO desapareçam como mecanismo de financiamento.
O que podemos esperar mais da integração da Inteligência Artificial nos serviços financeiros?
Os bancos estão a implementar rapidamente processos de robotização, para lidar operacionalmente com a criação e monitorização de créditos e com a relação com os clientes. Os dias em que [no banco] interagimos com um humano, mesmo ao telefone, estão a desaparecer muito rapidamente. Interajo, sim, com tecnologia. Os robots que têm contacto direto com o consumidor são uma extensão dos processos de automatização em curso no banco. São mudanças bastante radicais.
“As maiores ameaças para os bancos são players como os operadores móveis e de comércio digital a entrarem na Banca e nos serviços financeiros”
Isto será a tal ponto que seja indiferente investir ou gerir o meu dinheiro através de uma fintech ou do meu banco tradicional?
Bill Gates disse há muitos anos: precisamos de serviços bancários, não necessariamente de bancos. A Amazon já está no negócio do crédito, mas ninguém a consideraria um player de serviços financeiros. Nós mudamos a nossa conceptualização para consumir os meus serviços financeiros numa plataforma com a qual já temos uma relação e que me presta serviços, alguns dos quais são financeiros. A diferença é a resposta, o serviço, a interface, muitas coisas em que os bancos francamente são muito bons.
Mas se o meu banco for à falência, eu sei a que porta irei bater. Nestes casos…
O que está a dizer é que tem de ir bater à porta do Governo – é o seu recuo. Entre os consumidores, qual acha que é o nível de confiança nas empresas tecnológicas em comparação com a dos bancos?
Confiam mais nas tecnológicas?…
Sim. Confiam
Notícia publicada originalmente na edição de dezembro de 2018 da EXAME