Os seis pontos da nova diretiva dos pagamentos que deve conhecer
Quantas vezes encontrou aquele telemóvel que queria mesmo comprar a um preço fantástico num site de eletrónica, ou quis aproveitar as promoções numa loja online ou, ainda, licitar no Ebay uma peça de coleção que há tanto procurava? Escolheu o artigo, carregou no botão para efetuar a compra e surgiram-lhe várias opções. Através de cartão de crédito, mas, para isso, tem de inserir o número de cartão num site que não conhece – o receio de fraude é um dos principais entraves às compras online. Opta pela opção de uma empresa de serviços de pagamento, como a PayPal, mas terá de se registar naquele site e voltar a colocar o número do cartão de crédito. Poderá ainda fazer a compra através de transferência bancária. Tem de sair da página onde está, ir ao seu homebanking e inserir os dados do fornecedor ou, por último, deslocar-se a uma caixa multibanco e fazer o pagamento. O processo não é fácil e acaba por ser inibidor para algumas pessoas. Desde 13 de janeiro, este cenário mudou.
A segunda diretiva europeia dos serviços de pagamentos, a PSD2, do inglês Payment Service Directive, permite que os pagamentos online passem a ser mais fáceis e imediatos. Basta dar a ordem com a introdução de um código pessoal ou colocar a sua impressão digital no telemóvel.
Esta diretiva permite que os clientes dos bancos, quer sejam consumidores ou empresas, usem terceiros para fazerem a gestão da sua conta bancária. Num futuro próximo pode ser a Amazon, o Google ou outra qualquer empresa de tecnologia financeira (as chamadas Fintech) a fazer a gestão dos nossos pagamentos. Podem fazer transferências e gerir as despesas enquanto o dinheiro se mantém guardado na conta bancária. Segundo a nova diretiva, os bancos são obrigados a dar acesso às contas dos clientes a estas novas empresas. Mas com uma condição: apenas se o cliente der autorização para tal.
Parece estranho, mas a diretiva permite que os clientes dos bancos deem autorização para que um terceiro possa aceder à sua conta. A informação da sua conta passa a pertencer a si e não ao banco. E, se a quiser dar a uma empresa certificada para fazer pagamentos, pode fazê-lo. O banco deixa de ter interferência na transação de uma qualquer compra feita por si. Parece confuso, mas não é.
A gestão das contas será feita através de interfaces de programação de aplicações, as denominadas API, do inglês Application Program Interface (ver infografia O que são as API). Com este sistema, as tecnológicas financeiras poderão criar serviços financeiros por cima da informação e das infraestruturas dos bancos. E, com a sua criatividade, no futuro irão oferecer-lhe serviços muito mais apelativos.
Um novo mercado
Quando pensamos em serviços financeiros, a primeira coisa que nos vem à ideia são os bancos como principais fornecedores deste tipo de serviço. A razão é simples: até agora, eles tinham praticamente o monopólio deste tipo de atividade. Com a entrada em vigor da PSD2, o cenário vai mudar. Será muito mais fácil sociedades não financeiras poderem substituir os bancos em determinados serviços que apenas estes prestavam. A diretiva permite que novas empresas entrem no mercado sem que tenham de suportar estruturas pesadas (pessoal, balcões, etc.) como têm os bancos.
Estes deixam de competir apenas entre si e passam a disputar o mercado com todos aqueles que ofereçam estes serviços financeiros. Com esta diretiva, a União Europeia pretende incentivar a inovação, aumentar a concorrência e reforçar a proteção dos consumidores nos pagamentos feitos através da internet. Estes novos agentes poderão trazer ideias novas, que irão transformar o mercado financeiro. Um estudo mostra que 37% dos clientes europeus admitem sair do seu banco caso este não lhe ofereça tecnologia de ponta para efetuar as suas operações. Para lá da nova concorrência, os bancos terão ainda de arcar com novos custos de implementação de novas tecnologias para os apertados requisitos de segurança impostos pela União Europeia.
Um estudo internacional prevê que, até 2020, 9% das receitas de pagamentos passem para as novas empresas financeiras. A consultora Roland Berger foi mais longe e estimou que os bancos poderão perder entre 25% a 40% deste negócio.
Vêm aí as Fintech
Fintech é um palavrão usado para definir a nova tecnologia financeira e a conjugação das palavras inglesas Finance e Technology. São empresas que usam as novas tecnologias para disponibilizar serviços financeiros avançados, mais fáceis de usar pelos consumidores. A maioria atua na área dos pagamentos e da transferência de dinheiro entre duas partes. A PayPal, por exemplo, é talvez a mais conhecida internacionalmente. Em Portugal será a MBWay, da SIBS, mas muitas outras disponibilizam inúmeros serviços que por vezes usa sem se aperceber, como é o caso da Feedzai, uma empresa nacional que atua na prevenção de fraude financeira e que tem escritórios em Londres, Reino Unido, Silicon Valley e Nova Iorque, nos EUA. Há ainda outras áreas onde estas startups financeiras estão cada vez mais presentes, como a gestão de ativos e a resolução de problemas com créditos malparados.
Com a nova diretiva, o mercado prevê que comecem a surgir cada vez mais empresas deste tipo para concorrer com os bancos, sobretudo na área dos pagamentos. Não é por isso de admirar que, até à primeira semana de janeiro deste ano, o Banco de Portugal tenha autorizado 13 novas empresas financeiras a entrar neste setor.
Com os consumidores a tornarem-se cada vez mais digitais no seu contacto com as compras, procuram serviços financeiros mais rápidos, mais personalizados, baratos e de fácil acesso. Até agora, as Fintech mostram-se mais competentes a preencher estes requisitos de uma forma inovadora e centrada na pessoa. E os consumidores estão, lentamente, a habituar-se a estes novos serviços. A Tink, a PayPal a Billy conseguiram já conquistar a confiança dos seus utilizadores e, com isso,ganhar quota de mercado no setor dos pagamentos de serviços. E quase metade dos consumidores europeus admite estar disposto a usar serviços financeiros de gigantes tecnológicos como a Google e o Facebook.
Mudanças e mais mudanças
Mas não é só a PSD2 que irá mudar a banca em 2018. A 1 de janeiro entrou em vigor a diretiva dos mercados financeiros, a DMIF II, que obrigou cerca de 23 mil bancários a fazer um exame para obterem uma certificação que lhes permite vender ou prestar informação sobre produtos financeiros.
A formação tinha um número mínimo de 80 horas, para aqueles que apenas prestam informação sobre produtos financeiros, e de 130 horas, para os que fazem consultoria de investimento, o que se traduziu num total de mais de 2,5 milhões de horas de formação de quadros, apenas para este fim.
Uma das grandes novidades é que as conversas telefónicas entre os gestores de conta e os clientes passarão a ficar gravadas e os registos terão de ficar guardados. No caso da negociação ser presencial, estas devem ser passadas a escrito e assinadas pelas duas partes.
Na altura da crise financeira surgiram várias questões relacionadas com a comercialização deste tipo de produtos. Muitos clientes afirmaram que estavam a subscrever um depósito à ordem quando, na verdade lhes estava a ser vendido um produto financeiro estruturado. Com um elevado risco associado.
Esta diretiva foi desenhada a fim de uma maior proteção dos clientes bancários, para devolver a confiança perdida pelos investidores após a crise de 2008 e tornar os produtos financeiros mais transparentes. A lei levou mais de sete anos a ser produzida e incorpora cerca de 1,4 mil parágrafos que cobrem praticamente todas as vertentes de comercialização de ativos na União Europeia.
Além da PSD2 e da DMIF II, os bancos vão ter de incorporar outras diretivas e novos regulamentos ao longo de 2018: como a PAD (Payments Account Directive), o regulamento da proteção de dados, a AML, sobre lavagem de dinheiro, o IMFS9, uma nova norma contabilística, e ainda as diretivas do crédito hipotecário que entraram em vigor no passado dia 1.
Novas regras na habitação
Quem compre casa, passará a ter informação mais detalhada sobre o contrato de crédito. Existirá um período de reflexão de 30 dias, durante o qual o cliente não perde o direito ao contrato. Desta forma, poderá ter tempo para analisar propostas concorrenciais.
Em caso da venda executiva ou dação em pagamento por incumprimento do contrato, o cliente fica sem qualquer encargo futuro com o imóvel, qualquer que tenha sido o valor da venda executiva. Ou seja, caso o imóvel seja vendido em hasta pública, e o dinheiro não cubra a dívida em falta, o cliente não terá mais encargos por isso, ao contrário do que acontecia até agora.
A nova legislação prevê ainda que o funcionário do banco não possa ser remunerado por ter conseguido melhores condições para o banco no contrato de crédito hipotecário “nomeadamente estabelecendo que a remuneração, incluindo eventuais comissões, não depende, direta ou indiretamente, de qualquer aspeto relacionado com os pedidos de crédito aprovados ou contratos de crédito celebrados, designadamente do seu número ou percentagem mensal ou anual por trabalhador, montantes, tipo, taxa aplicável”, refere o documento.
A avaliação do imóvel passará a ser feita por um perito independente e não por funcionários do próprio banco. Estes avaliadores independentes terão de estar registados na CMVM. A informação sobre contratos de crédito hipotecário passará a ser harmonizada em toda a União Europeia.
Ainda não se sabe os custos totais que a implementação de tudo isto irá trazer às instituições financeiras. O banco espanhol Cecabank fez as contas e garante que, só a implementação da DMIF II, poderá custar cerca de 2,5 mil milhões de euros para todo o sistema bancário da União Europeia.
Comissões ao fundo?
Com todos estes custos acrescidos, numa altura em que enfrentam sérias dificuldades para equilibrar as contas, os bancos tentam ir buscar o dinheiro a algum lado. E, nesta equação, o elo mais fraco é o consumidor. Ao longo dos últimos 10 anos, as comissões bancárias subiram de forma acentuada em mais de 45 por cento. Os bancos encontraram nesta via uma forma de mitigar os elevados prejuízos acumulados desde a crise financeira de 2008.
Em 2016, a banca cobrou mais de 1,9 mil milhões de euros de comissões aos seus clientes, o que dá uma média de 5,3 milhões de euros por dia. Ainda não há números finais de 2017, mas sabe-se que, nos primeiros nove meses, a cobrança de comissões aumentou 90 milhões em relação a igual período do ano anterior. A situação é tão grave que a DECO conseguiu juntar mais de 13 mil assinaturas para que o assunto fosse discutido na Assembleia da República. A petição continua em aberto até ao final de janeiro e o objetivo final é atingir as 90 mil assinaturas.
A lei obriga a que a comissão bancária seja cobrada por um determinado serviço prestado pelo banco, mas não explica quais os serviços e qual o seu custo. Um exemplo dado são as comissões de manutenção de conta que, para as instituições de defesa dos consumidores, não são um serviço prestado.
O assunto tem estado parado até porque a comissão parlamentar que analisa este tipo de casos está inativa há mais de um ano e só irá recomeçar os trabalhos nas próximas semanas. Para se protegerem desta pressão, os bancos começaram a criar contas em pacote, as quais, devido à sua complexidade, tornam difíceis de comparar preços e custos. As contas têm vários serviços e produtos agregados e é cobrado ao cliente um valor global, denominado custo de gestão, em vez da comissão de manutenção. Aliás, foi esta fórmula que as operadoras de telecomunicações móveis usaram há cerca de 15 anos para que os serviços oferecidos não pudessem ser diretamente comparados.
Alguns analistas defendem que não será necessário obrigar os bancos a baixar comissões, pois estes terão de o fazer para conseguir concorrer num mercado aberto às novas empresas financeiras tecnológicas. Caso contrário, começam a perder clientes.
Com tantas mudanças neste ano, uma coisa é certa: este será o princípio do fim da banca, tal como a conhecemos.
(Artigo publicado na VISÃO 1197 de 11 de janeiro)