Um ano depois de assumir a presidência da Unicer, João Abecasis, 42 anos, sente orgulho dos resultados alcançados, mas o otimismo está ensombrado pelo receio da deflação. “A deflação é uma ameaça real em Portugal”, adverte o gestor, que reconhece que as exportações para Angola não voltarão a brilhar como dantes. Apesar disso, as vendas e os lucros da Unicer, em 2014, irão crescer ligeiramente face ao exercício anterior. João trocara, em 2011, Londres pelo Porto e uma auspiciosa carreira numa multinacional (Unilever) 100 vezes maior do que a Unicer pela utopia e a vontade de deixar de trabalhar para acionistas invisíveis.
Após um ano de mandato, que marca já deixou o novo presidente da Unicer?
Numa empresa com a dimensão da Unicer, não se deixa uma marca ao fim de um ano. Um destes dias, um meu antecessor no cargo (não o que eu substituí) telefonou-me para me dar os parabéns pelos resultados, dizendo que era um sinal de que os anteriores presidentes tinham feito um bom trabalho. Estou plenamente de acordo com ele. Os louros terão sempre de ser partilhados por todos. A verdade é que recebi uma casa muito bem arrumada.
Mas o momento mais feliz, a decisão que considera mais virtuosa, qual é?
Fiquei feliz com a confiança que os acionistas depositaram em mim. Ao longo deste primeiro ano, o que me deu mais conforto foi o apoio genuíno de todos os trabalhadores. O ano de 2013 foi muito desafiante, por operarmos num ambiente económico difícil, gerindo um programa de modernização fabril. Além da crise profunda no primeiro semestre no mercado português, enfrentámos os problemas administrativos nas exportações para Angola. Alcançámos todos os objetivos, reforçámos a participação de mercado sem parar os investimento definidos, cumprindo prazos e orçamento, e redesenhámos a organização da Unicer.
Que principal medida destacaria?
A principal medida reside na nova organização da empresa, delineada para enfrentar novos desafios. Digerido o investimento industrial, que torna a organização mais eficiente e competitiva, é hora de assumir o desafio do crescimento. Estamos a organizar a empresa para ir atrás das oportunidades.
A inauguração da nova sede, a 16 de setembro, será a sua primeira coroa de glória como presidente?
Não vejo isso assim. A inauguração de uma nova sede é uma coroa de glória de todos os colaboradores da Unicer, minha e dos meus antecessores. Neste últimos três anos, temos outras coroas de glória. A que me deu particular orgulho resultou do desempenho alcançado em 2013, numa fase de transição de presidentes.
Sente-se poderoso por dirigir uma grande empresa industrial, sentado em cima de vendas de 500 milhões?
Não. Sinto-me, sim, com responsabilidades, mas não poderoso.
E o que mudou na sua rotina diária desde que é líder?
Passo agora mais tempo na sede, no Porto. Como administrador com o pelouro comercial, viajava mais pelo país, visitando clientes e distribuidores. Fazia 60 mil quilómetros por ano. O acumulado agora será igual, mas com mais ligações Lisboa-Porto. Passo menos tempo nas estradas e mais em aviões, acumulando milhas.
Luanda é o seu destino mais frequente?
Sim, por causa da operação comercial e da joint venture na Única, a nossa empresa local. Estou absolutamente convencido de que a construção da fábrica arrancará antes do final do ano e a produção durante 2016.
Põe a cabeça no cepo por essa datas?
Só ponho a cabeça no cepo pela minha família.
Em 2014, conta recuperar os 33 milhões de euros que perderam de vendas em angola?
Neste momento, a exportação para Angola está a crescer, mas o negócio nunca voltará ao que era. Não recuperámos totalmente. As taxas aduaneiras aumentaram, a concorrência local é grande. A oportunidade de crescimento está na produção local.
Quando entrou, a Unicer contava com uma linha de crédito de 300 milhões de euros para acomodar a base em angola e o investimento em curso neste centro fabril. Como tem evoluído essa linha?
No final de 2010, a dívida bancária da Unicer estava em 210 milhões de euros, mas reduções sucessivas levou-a a 165 milhões de euros no final de 2013. Isto é, para além de termos já pago a maior parte do investimento de 100 milhões de euros, reduzimos a dívida em 45 milhões de euros sem tocar na remuneração de acionistas nem nos compromissos com fornecedores ou Estado. Só uma notável capacidade de geração de caixa e rigor financeiro permitem estes resultados.
Dispensaram a linha de crédito?
Continuamos a ter acesso às mesmas linhas, mas recorremos menos a elas porque não temos precisado. Os fundos são gerados pela atividade corrente. Isso conduz a Unicer a uma situação muito vantajosa e pouco usual. No final de 2014, o rácio entre a dívida e o EBITDA (resultado de exploração antes de amortizações e juros) será de dois. A generalidade das empresas tem rácios muito superiores. Este conforto permite-nos olhar para outras oportunidades, encarar novos investimentos.
Neste quadro, o colapso do BES ou a instabilidade do sistema bancário é indiferente à Unicer?
Não somos indiferentes. Apetece-me citar o senhor Soares dos Santos, que classificou o caso BES de brutal. É verdade que na atividade diária a Unicer não sente qualquer efeito. Mas a questão pode colocarse no futuro. Teremos de verificar até que ponto a credibilidade das instituições bancárias portuguesas terá sido tocada. Se for afetada, pode comprometer o acesso ao crédito nas melhores condições.
A Unicer está imune à banca portuguesa?
A Unicer não está imune, de forma nenhuma, nem à banca nem à economia portuguesa. Uma coisa é revelar, em 2011, capacidade para aceder a linhas de financiamento, nomeadamente do BEI, quando o crédito em Portugal era escasso. Essa capacidade de nos financiarmos no exterior permanece. Mas o principal mercado é Portugal e no corpo acionista da Unicer está um banco, o BPI. Portanto, imune nunca estará. E os nossos principais parceiros de financiamento são portugueses. O BES, por sinal, não faz parte desse grupo.
Com o verão perto do fim, qual o desempenho que antecipa para este exercício?
Conservo um otimismo prudente, antecipando um crescimento de 3% nas vendas e 5% nos resultados. No final do primeiro semestre, o crescimento estava alicerçado nos mercados internacionais, mas beneficiava de um forte contributo do mercado doméstico. Agora, a tendência de crescimento mantém-se mais à custa do exterior do que do mercado interno.
Este ainda não será o ano em que o negócio internacional supera o mercado português?
Não, ainda não. O exterior representa 40% das vendas de cerveja e um terço do negócio global do grupo. No futuro, mais de metade do negócio será gerado fora de Portugal. A operação da Super Bock no Brasil é feita com produção local. Quando arrancar a base da Única, uma parte da produção será feita em Angola. A marca Super Bock continuará a ser fabricada no centro de Leça do Balio e exportada.
Neste momento, que ameaças enfrenta a Unicer?
Há dois riscos que me preocupam. O crescimento sustentado da economia e o risco de deflação. Depois de dois semestres de recuperação, verifica-se que está a custar à economia crescer sustentadamente, apesar de boas notícias pontuais, como é o caso do turismo.
E a deflação?
O fenómeno da deflação é um risco na Zona Euro e neste momento uma realidade em Portugal. E se o país entra em deflação sistemática, o consumo sofre e retrai-se e torna-se mais difícil remunerar adequadamente todos os elos da cadeia de valor. E a ameaça deflacionária não ajuda ao crescimento da economia.
Na restauração, o efeito do turismo puxa pela recuperação?
Não noto uma recuperação sustentada. No primeiro semestre deste ano o consumo melhorou, o turismo reflete-se no Porto, em Lisboa e no Algarve. Mas depois do verão o sentimento não será o mesmo. Seria vital repor o IVA a 13%.
Já perdeu a esperança do IVa a 13%?
Quanto mais tempo passa, menos esperança tenho. Esse seria o estímulo de que a restauração precisava. Espanha aprendeu à nossa custa. Usou o exemplo português para não subir o IVA na restauração.
Os incobráveis têm subido?
Não, têm descido. Mas não por causa da saúde do setor da restauração. É um sinal da política de rigor e gestão exigente da Unicer.
Herdou um programa de investimento do seu antecessor. Subscreve-o integralmente ou faria adaptações?
Já fazia parte da comissão executiva que defendeu este programa. Não faria nada de diferente. É um investimento de pura racionalidade económica. A fase inicial foi centrada na eficiência fabril e logística. Mas há uma vertente que não era tão evidente e agora adquire uma nova dimensão: a vertente cultural. Passados 50 anos da inauguração do centro fabril, as equipas espalharam-se por quatro edifícios, o que tornava mais difícil partilhar uma só cultura, um espírito empresarial único. Finalmente, um só edifício, todas as equipas juntas.
Tem falado com o seu antecessor, por sinal ministro da Economia?
Um ministro deste governo deve trabalhar, pelo menos, 26 horas por dia. Não sei como eles conseguem! Falei pontualmente com o António Pires de Lima. Conversas da esfera pessoal, nada de negócios, Unicer ou economia.
E já o convidou para a inauguração da nova sede, a 16 de setembro?
Já o convidei, sim. Mas não lhe digo se aceitou ou não. Quero deixar margem para surpresas.
No Brasil, o Mundial de Futebol ajudou a cumprir a meta de dois milhões de litros de Super Bock em 2014?
Não sei se o Mundial ajudou. A operação arrancou bem, estamos focados no Rio de Janeiro e em S. Paulo, mas registamos dois sentimentos contraditórios. A surpresa agradável foi a apetência do consumidor pela marca Super Bock. O ponto negativo reside na dificuldade de construirmos uma rede eficiente de distribuição num país dominado por um player tão forte como a Ambev.
Em Moçambique, a Unicer pode evoluir da lógica comercial para bases fabris?
É fundamental não ter os ovos todos na mesma cesta. Brasil, Moçambique e Arábia Saudita (cerveja sem álcool) são as principais frentes. Moçambique é um mercado promissor, mas a Arábia Saudita também. O que temos verificado quando apostamos num novo mercado é que demora sempre mais tempo a consolidar o negócio do que imaginávamos. Veja-se o caso de Angola. A Super Bock e a Cristal precisaram de 10 anos para se imporem.
Tem referido a possibilidade de aquisições ou novas bases fabris. Mas, sem identificar alvos, o discurso não fica reduzido a uma manobra de ilusão?
O que nos guia é a ambição. A ambição de duplicarmos a dimensão é exatamente isso ambição. É uma ambição, partilhada pela gestão, corpo acionista e colaboradores, que tem sido revisitada ao longo dos anos.
Mas que mercados estão sob escrutínio?
Não temos identificados alvos. Não podemos pôr o carro à frente dos bois. A nova atitude é que passamos a estar com os olhos e os ouvidos mais abertos e atentos, adotando uma procura proativa de oportunidades. Mas não iremos investir ou comprar por um exercício de soberba ou vaidade. Se em 2020 não tivermos mil milhões de faturação, não há drama nenhum.
A cerveja é um dos produtos em permanente promoção nos hipermercados. Isso resulta de operarem com margens exageradas que acomodam tais reduções de preços?
Não, o retalho em Portugal está muito alicerçado nas promoções. O que conta é o preço final que o consumidor paga. Esta realidade relaciona-se com a ameaça, que já referi, da deflação. É importante que todos os agentes pensem de forma abrangente em torno de um modelo que fomente o crescimento sustentado do país.
Há fornecedores que se sentem “escravos” das grandes superfícies. a Unicer sente-se escravizada?
Não. Parceiros, sim, escravos, não. São parcerias duras, cada parte defende os seus interesses. As negociações são duras e as relações cordiais.
A guerra de quotas nas cervejas saiu mesmo de cena. A rentabilidade é quem mais ordena?
Na Unicer, em primeiro lugar está a sustentabilidade dos resultados e da empresa. Fazer vendas sem ganhar dinheiro ou sem cobrar está fora da nossa agenda. Agora, para uma empresa vingar tem de crescer e conseguir que as suas marcas sejam as preferidas. Nessa medida, a liderança é estimulante. Mas guerras de quotas não reduzem a dívida, não pagam dividendos nem fábricas novas.
Convive bem com o facto de a Super Bock não ser líder em Portugal?
Estou muito feliz com a evolução da quota de mercado da Unicer e da Super Bock. Como lhe disse, o tempo das guerras de quotas já lá vai.
Nos negócios exteriores à cerveja (águas, vinhos, refrigerantes), que pesam 20% nas vendas, há alguma novidade?
A principal novidade é o sucesso da Somersby (cidra). Uma surpresa muito agradável num tempo de crise, em que os consumidores estão menos recetivos a produtos diferenciadores e mais caros. Superou as melhores expectativas em 2013, forçando a rever em alta os objetivos para este ano.
E como vai a Pedras na exportação?
A expansão corre bem. Sem perder o entusiasmo pelas metrópoles das Américas, como o Rio de Janeiro, S. Paulo ou Nova Iorque, injetámos mais energia em cidades europeias cosmopolitas, como Madrid ou Londres.
Algum dos negócios acessórios está à venda?
Não, fazem todo o sentido no portefólio da Unicer, mesmo sem terem um caráter prioritário. Estratégicos só os negócios das cervejas e das águas.
As perdas no turismo afetam muito a rentabilidade do grupo?
As perdas têm um efeito mínimo na rentabilidade e não nos queremos livrar do negócio. Trabalhamos para equilibrar a operação, impedir que se registem prejuízos. Ainda estamos longe desse objetivo, mas estamos confortáveis com este desempenho.
A Unicer compara bem com os indicadores do universo Carlsberg. Mas que indicador gosta de realçar?
No universo Carlsberg, a Unicer é um caso particular, por ser uma participada com uma maioria de capital português, e não uma filial. Essa diferença é fundamental. No plano fabril, o centro de produção é um dos mais eficientes do mundo e, no plano comercial, a posição de mercado da Unicer é replicada por poucas empresas do universo Carlsberg. Finalmente, o grau de comprometimento e orgulho na empresa dos colaboradores da Unicer está muito acima de outras empresas cervejeiras.
BI
Ser astronauta era o sonho
Nome
João Miguel Abecasis
Idade
42 anos
Cargo
Presidente executivo da Unicer
Carreira
Quando, em 2011, trocou Londres pelo Porto e a Unilever pela Unicer, este licenciado em Gestão e Administração de Empresas que em criança sonhava ser astronauta fechava um ciclo de 16 anos, que o conduzira de estagiário ao topo, com o cargo de vice-presidente mundial do marketing operacional. A estreia profissional ocorrera no marketing e vendas da Fima (Unilever), do universo de um grupo (Jerónimo Martins), um dos principais parceiros comerciais da Unicer. Após uma passagem por Barcelona (2002/2005) como responsável comercial da Frigo (gelados e congelados), regressa a Lisboa para diretor comercial da unidade de perfumaria e detergentes. Instala-se em Londres em 2008, acumulando milhas com as suas viagens frequentes para várias capitais europeias. Neste percurso vertiginoso, nunca perdeu a rotina madrugadora da corrida, alternando com natação e ciclismo. Agora, exercita-se na orla litoral da Foz do Douro, à razão de 10 km por dia.
Este artigo é parte integrante da edição de setembro da Revista EXAME