As dúvidas multiplicam-se entre muitas mulheres com doença inflamatória do intestino. Será que é prudente engravidar, sabendo que os sintomas alteram profundamente a vida quotidiana e provocam ansiedade em muitas pacientes? É possível continuar a fazer o tratamento durante a gestação, tendo uma doença crónica que, em muitos casos, provoca dores abdominais, descontrolo intestinal e fadiga? A patologia afeta a fertilidade e a probabilidade de ter filhos?
Helena Tavares de Sousa, gastrenterologista do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, explica que a doença de Crohn e a colite ulcerosa, as duas formas mais comuns da doença inflamatória do intestino, têm um pico de diagnóstico entre os 20 e os 40 anos, “o que coincide com o período reprodutivo da mulher”. Isso não significa, contudo, que estas patologias impeçam o desenvolvimento de uma gravidez saudável, explica. “Se a doença estiver em remissão, isto é, sem atividade e bem controlada, a fertilidade e o curso da gravidez são praticamente idênticos aos das mulheres saudáveis”, esclarece a médica.
Os números falam por si: 85% das pessoas com doença inflamatória do intestino têm uma gestação sem complicações. “A gravidez constitui um período de elevada carga emocional e de ansiedade, especialmente quando ocorre numa mulher com uma doença crónica [como esta]. Tal como no período anterior à conceção, é fundamental que haja um acompanhamento por uma equipa multidisciplinar especializada, onde, para além do gastrenterologista, cirurgião colorretal, obstetra e psicólogo, se incluirá um pediatra e uma dietista, também eles familiarizados com doenças autoimunes e terapêuticas imunossupressoras”.
Uma gestação tranquila
Bruna Lemos foi diagnosticada com doença de Crohn aos 27 anos, ainda que os primeiros sintomas (dores abdominais e vómitos) tenham aparecido aos cinco. “Embora o primeiro ano tenha sido extremamente difícil de gerir – foi preciso acertar medicação, cumprir restrições alimentares – o conhecimento desta condição de saúde veio dar um boost à minha vida”, diz a professora de português. “Permitiu-me começar a viver e, acima de tudo, deixei de ter vergonha de partilhar as minhas inseguranças e medos”, recorda a docente que, durante anos, teve vergonha de sair com os amigos e escondeu o mais que pôde as dores, a fadiga constante e a diarreia.
Três anos depois de os médicos terem conseguido identificar a doença inflamatória do intestino, Bruna Lemos tornou-se mãe. “Consegui um bom nível de equilíbrio e, aproveitando a boa maré, decidi engravidar. Foi uma gravidez maravilhosa, tranquila e sem qualquer sintomatologia”, recorda a docente, hoje com 34 anos. “Durante nove meses, esqueci-me da doença e vivi”, recorda, feliz.
Ao longo da gestação, Bruna Lemos continuou a tomar a medicação e a cumprir todas as recomendações da equipa de especialistas que a acompanhou. “Foi este apoio regular que me permitiu ser mãe com segurança e serenidade”, sublinha, contando que, logo após o nascimento da bebé, a doença de Crohn voltou a manifestar-se.
Apesar de uma percentagem muito elevada de gestações se desenvolver sem complicações, a médica Helena Tavares de Sousa explica que, como o impacto da patologia é “muito grande, porque surge geralmente durante a fase ativa da vida”, afetando “a qualidade de vida e a capacidade de realizar com sucesso atividades de âmbito académico, profissional e familiar”, há quem desista da maternidade por causa da doença. Os dados mostram que 17% a 38% das mulheres com doença inflamatória do intestino escolhem, voluntariamente, não ter filhos, “contrastando com apenas 6% na população saudável”. “Esta escolha é mais frequente nas doentes com menor literacia de saúde na área da doença inflamatória do intestino”, afirma a especialista.
A importância da fase em que se engravida
Para que a gestação possa desenvolver-se sem complicações, é fundamental que a doença esteja em fase de remissão, alerta Helena Tavares de Sousa, que é também representante de Portugal na associação europeia ECCO (European Crohn’s and Colitis Organisation). “A ocorrência de uma gravidez, durante uma fase ativa da doença inflamatória intestinal, aumenta o risco de agravamento, podendo levar à necessidade de aumento da dosagem ou alteração da medicação, ou até mesmo à necessidade de cirurgia por surgimento de complicações”, diz a gastrenterologista, explicando que também há riscos para a própria gravidez, como a rotura prematura de membranas, a prematuridade ou baixo peso do bebé. Em algumas situações pode ainda verificar-se “restrição de crescimento fetal e até mesmo morte no útero”, acrescenta a médica.
Para minimizar os riscos, é fundamental ainda que, durante a gravidez e a amamentação, as doentes continuem o tratamento, que pode ter que ser ajustado em alguns casos. Segundo Helena Tavares de Sousa, nos últimos anos, tem havido “o reconhecimento” por parte da comunidade científica “que este subgrupo merece uma atenção especializada por uma equipa multidisciplinar”. Outra dos avanços relevantes, diz, está relacionado com “o conhecimento crescente da segurança dos vários agentes terapêuticos, nomeadamente dos agentes biológicos, que, até recentemente eram sistematicamente suspensos no início do 3º trimestre, e que agora se sabe poderem ser mantidos”.
“Este conhecimento tranquiliza a grávida e os médicos no que diz respeito aos receios relacionados com o efeito imunossupressor destes fármacos”, afirma a médica do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, ressalvando que os bebés nascidos de mulheres que fizeram terapêutica biológica, durante a gestação, não devem ser vacinados com vacinas vivas no primeiro ano de vida.
Além da manutenção do tratamento, as mulheres com doença inflamatória do intestino “devem ter os mesmos cuidados que todas as grávidas”. “Adicionalmente, devem estar atentas a sinais de reativação ou complicações e, principalmente, cumprir rigorosamente todas as recomendações do gastrenterologista, obstetra, psicólogo, dietista, etc. Este é o melhor garante de uma gravidez sem intercorrências.”
Mais casos no norte da Europa
A incidência da doença inflamatória do intestino no continente europeu varia entre 0,4 e 22,8 por 100 mil habitantes, diz a gastrenterologista Helena Tavares de Sousa. E é mais comum nos países do norte da Europa por comparação aos da bacia do Mediterrâneo. Os dados mostram também que em Portugal 25 mil pessoas sofrem desta patologia.
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