No segundo dia das Conferências do Estoril, oradores de todo o mundo reúnem-se em Carcavelos para discutir aqueles que são hoje os maiores desafios à paz mundial. Entre eles encontra-se Francis Fukuyama, um dos mais influentes pensadores da ciência política a nível global e escritor aclamado pela crítica. O seu mais recente livro, “Liberalismo e os seus Descontentes”, foi o mote para a sessão desta manhã, na qual se juntou a Vasco Rato, professor na Nova SBE, local do evento, e ex-presidente da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, numa discussão daqueles que são os maiores desafios do liberalismo hoje, assim como as falhas que o tornam vulnerável a outros movimentos.
O primeiro desafio começa com algo tão simples como definir o próprio liberalismo, nomeadamente porque este pode ser considerado e avaliado de diferentes ângulos, dando prioridade a diferentes áreas, económica, social e outras. “Na minha opinião, o liberalismo é uma doutrina que acima de tudo acredita na dignidade igual de todos os seres humanos, assim como acredita que a dignidade tem de ser protegida por meio de um estado de direito, que restringe os governos de violar os direitos das pessoas”, explica Fukuyama. Embora exista uma componente económica que ajuda a caracterizar este modelo político, são, segundo o escritor, “os direitos dos indivíduos e o estado de direito que assegura esses direitos” as principais características diferenciadoras.
Fukuyama é notoriamente conhecido pelas suas fortes convicções liberalistas. Um dos seus livros mais reconhecidos, “O Fim da História e o Último Homem”, escrito há cerca de trinta anos, após o colapso da União Soviética e do Pacto de Varsóvia, argumentava que a democracia liberal seria “o ponto final da evolução ideológica da humanidade”. Desde então muito mudou e à medida que os movimentos populistas e nacionalistas voltam a ganhar terreno na esfera política global, Fukuyama viu-se obrigado a reconsiderar as suas afirmações passadas e repensar o liberalismo nos termos atuais.
Algumas das maiores potências mundiais, seja a China de Xi Jinping ou até os EUA de Trump, são o reflexo claro da adesão cada vez maior dos cidadãos a ideologias extremistas, sejam de esquerda ou de direita. Ainda assim, para o escritor, a direita conservadora, ou, mais propriamente, o nacionalismo, constitui hoje uma das maiores ameaças à democracia liberal. “De momento, na América, não há dúvida de que a maior ameaça vem da direita. Tivemos o crescimento de uma direita nacionalista populista em todo o mundo e acho que o principal proponente disso é Donald Trump. Sabemos quem tentou derrubar uma eleição em 2020 e ele ainda não admitiu isso, ele perdeu essa eleição. E acho que os republicanos estão a planear fazer o mesmo se houver uma eleição apertada em 2024. Portanto, eu nunca vi, de facto, um perigo tão claro e presente para a democracia americana como aquele que é apresentado por Trump e os seus colegas republicanos”, explica Fukuyama.
No extremo oposto, e ainda que não constitua, na opinião do autor, uma ameaça tão evidente, a esquerda também oferece desafios ao liberalismo, nomeadamente do ponto de vista cultural. Seguindo a definição de Fukuyama, o liberalismo exige um nível de tolerância capaz de promover a igualdade dentro de um espaço social pautado pelas diferenças naturais de cada um. No caso da esquerda, acaba por se formar um paradoxo já que, na defesa intensiva pela igualdade e numa tentativa de tentar eliminar discursos intolerantes, os seus defensores acabam por tornar-se, eles mesmos, intolerantes a quaisquer discursos que se afastem deste padrão. “Também há um problema sério na esquerda porque há um crescimento da intolerância principalmente em questões de raça, etnia, género, orientação sexual. É mais forte nas universidades e nos domínios culturais e é algo que realmente erodiu os princípios liberais da liberdade de expressão”, aponta o autor.
Apesar de constituir uma ameaça ao liberalismo, o populismo, seja este de esquerda ou de direita, é uma prova das próprias falhas do liberalismo, nascendo, inclusive, das mesmas. “O populismo, reflete o descontentamento popular e, portanto, uma das razões pelas quais vemos esta grande reação populista deve-se ao tipo globalização e tipo de doutrina neoliberal (que vigora)”, explica Fukuyama. Segundo o autor, o neoliberalismo distingue-se do liberalismo nomeadamente pela forma irrestrita como perceciona os mercados, colocando o bem-estar do consumidor acima de outras prioridades. Embora a liberdade de mercado seja uma ideia também apoiada pelo liberalismo, não o é da forma proposta pelo neoliberalismo que negligenciou algum controlo estatal importante, para Fukuyama, nas democracias. “Há muitas ideias liberais que são, em si mesmas, extremamente boas e corretas, mas são levadas ao extremo”, diz o autor, oferecendo o neoliberalismo como exemplo.
“Não podes ter uma economia moderna sem mercados livres e a desregulamentação é periodicamente algo muito importante. Mas se destruíres o estado tens uma anarquia, não consegues ordem espontânea”, defende o autor. Desta anarquia surgiram, ao longo das décadas, várias desigualdades que continuam hoje a fazer-se sentir cada vez mais, causando o descontentamento que impulsiona o populismo. “A pressão da ideologia do mercado livre e a difamação do papel do Estado que ocorreu nas décadas de 80, 90 e 2000 levaram a uma enorme desigualdade. E assim, muitas pessoas especialmente da classe trabalhadora em todo o mundo rico perderam os seus empregos para a competição no exterior e acho que gerou muito descontentamento”, acrescenta Fukuyama.
Outra ideia do liberalismo que foi exagerada pela sociedade atual, tornando-se, consequentemente, uma falha da própria ideologia, partiu de Michel Foucault e foca a ciência e o método científico. “O que Foucault disse é que, na verdade, tudo é manipulado. Os cientistas dizem que são objetivos, mas, na verdade, representam os interesses de um conjunto estabelecido de detentores de poder que trabalham a puxar os fios nos bastidores. (…) E acho que realmente o que aconteceu nos Estados Unidos desde a eleição de Trump é que essa maneira de pensar se desviou da extrema esquerda para a extrema direita. E assim, durante a epidemia da Covid, ouviram-se muitas pessoas dizer que as autoridades de saúde pública diziam que devíamos usar máscaras e que nos devíamos isolar, mas, na verdade, não tinham o nosso melhor interesse no coração, tratavam-se apenas de elites que queriam ter poder sobre nós e que, portanto, não deveríamos acreditar neles”, explica Fukuyama.
O movimento negacionista nasce, exatamente, da ideia válida de que podemos questionar as informações que nos são dadas. Ideia essa que terá, no entanto, evoluído para se tornar uma “teoria da conspiração”, como diz o próprio autor, perdendo, assim, credibilidade e tornando-se uma ameaça à sociedade liberalista. “No caso da Ciência, é claro que devemos ser céticos. O método científico não diz que há uma única verdade, diz que há um esforço contínuo para usar evidências para evoluir aquilo que acreditamos ser, no momento, verdade. (…) Sim, devemos ser céticos quando as autoridades de saúde nos dizem: ´Precisamos de fazer isto e aquilo´. Mas afinal, qual é a alternativa? Ouvir qualquer pessoa na internet que tenha alguma teoria maluca sobre o que está a causar a Covid-19 e o que pode curar-nos? Ou aceitamos esse processo paciente de usar evidências para tentar entender a verdadeira natureza da realidade?”, questiona.
Movimentos como o negacionista aliados a formas cada vez mais fáceis de difundir informação, seja esta verdadeira ou falsa, como são a Internet e as redes sociais vão, segundo Fukuyama, contra uma base essencial do liberalismo: uma “compreensão comum e compartilhada da realidade”. “Numa sociedade liberal, não concordamos no que toca a muitos valores básicos conforme definido, por exemplo, pela religião. Mas precisamos de concordar em algumas informações factuais empíricas, como quem venceu a última eleição nos Estados Unidos ou se dada vacina em particular é segura. E eu acho que o que a internet tem feito é minar a crença das pessoas nessa compreensão comum e compartilhada da realidade”, explica o escritor. “Portanto, (a internet) permite que as pessoas inventem os seus próprios factos e vivam num universo de informações completamente separado, onde não concordam com esses factos empíricos básicos”, acrescenta.
Ainda assim, algumas noções parecem ainda ser partilhadas não apenas dentro de sociedades liberais, mas entre sociedades liberais ou países liberais. Um exemplo disso foi a resposta da Europa e, mais concretamente, da União Europeia à invasão russa da Ucrânia, uma resposta que refletiu em certos aspetos o fortalecer dos valores democráticos. “Acho que o Ocidente se saiu muito bem perante a agressão russa. A NATO expandiu-se com a Suécia e a Finlândia a juntar-se à aliança. A Alemanha deu uma grande reviravolta em termos de sua política externa. Muitos de nós apoiam muito a democracia ucraniana e desejávamos que o Ocidente tivesse feito mais no que toca à entrega de armas específicas e outras formas de apoio. Mas no geral, acho que tem sido bastante impressionante”, comentou Fukuyama.
Perante a invasão russa e o espoletar de uma guerra no continente europeu depois de mais de sete décadas de paz, o sentimento de insegurança, assim como a sensação de não se poder dar como certas determinadas realidades, tem crescido entre os cidadãos. O liberalismo está entre estas realidades. Num mundo em permanente mudança, é inevitável que novos obstáculos surjam e que diferentes mentalidades façam frente a estes tipos de democracias, tornando-se essencial continuar a repensá-las e, se necessário, reestruturá-las.
“É muito fácil viver numa sociedade liberal, como Portugal, ou qualquer outro estado membro da União Europeia, com talvez uma exceção. É fácil tomar isso como certo, é fácil assumir: ‘Vou viver num país rico. Serei livre para fazer o que quiser. Não preciso de me preocupar com ameaças básicas a essa liberdade’. E acho que o que vimos com a guerra na Ucrânia é que não podemos tomar isso como garantido”, alerta Fukuyama. “Em todos os países, há um movimento político iliberal que gostaria de derrubar esta ordem liberal e isso significa que realmente temos de prestar atenção ao que está a acontecer para que possamos olhar para essas ameaças e, ocasionalmente, temos defendermo-nos contra elas. E esta perceção de que não podemos supor que este mundo agradável em que vivemos será sempre assim. Precisamos de investir na nossa própria liberdade. Mantermo-nos vigilantes”, acrescenta numa nota final.