“Todos os anos”, escreve a Rita Montez, na introdução de Vidas Suspensas – Histórias de Mulheres Vítimas de Violência Doméstica que Lutam nos Tribunais pelos Direitos dos Seus Filhos , “a violência doméstica mata mais em todo o mundo do que o cancro, os acidentes de carro e a malária juntos. Em boa parte do mundo, as agressões entre casais ou antigos parceiros deixaram de ser toleradas para se transformarem numa questão socialmente censurada. Por todo o lado, criam-se campanhas de sensibilização contra este flagelo e divulgam-se programas de apoio às vítimas”.
Mas”, alerta a autora, jornalista aqui na VISÃO desde 1999, ” há ainda um longo caminho a percorrer. Nos últimos anos, surgiram nos tribunais portugueses centenas de casos em que as vítimas de violência doméstica são acusadas de alienação parental ou de manipular os filhos quando estes se recusam a conviver com os pais agressores.
Foi precisamente da vontade de mostrar este lado desconhecido do grande público, em que as mulheres se transformam em duplas vítimas – dos seus companheiros ou ex-companheiros e do sistema judicial, que em vez de as proteger muitas vezes as persegue –, que surgiu este livro.”
No prefácio, a direção da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, que editou o livro, sublinha: “A violência que continua a ser exercida contra as mulheres e as crianças no âmbito de uma relação familiar, que muitas vezes prossegue mesmo após o divórcio ou a separação (note-se que a maioria dos homicídios conjugais se verifica justamente após a cessação da vida em comum), comprova ser indispensável ir mais além.”
São 12 histórias, contadas em pouco mais de cem páginas, um livro que se lê de um fôlego, vidas suspensas que arrepiam e nos deixam a pensar no assunto. Como diz a Rita logo no início: ” A violência doméstica mata mais do que o cancro, os acidentes de carro e a malária juntos.” Como nos tem demonstrado a realidade: parece continuar a haver esta ideia romantizada de que um homem pode agredir a mulher e continuar a ser um bom pai.”
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A VIDA POR UM FIO
“Ainda namorávamos quando ele começou a ter acessos de raiva. nessa altura, apercebi-me de que era também muito controlador. ele ficava nervoso com muita facilidade e discutia pelas razões mais fúteis. E eu, apesar de sempre ter sido uma pessoa muito independente, acabava por ceder suas às chantagens emocionais. Fiquei apreensiva com o comportamento dele e atenta a todos os sinais, mas sentia-me responsável por ele e, provavelmente, acabei por me dedicar demasiado. Achava que tinha de o ajudar, quando era o inverso. mais tarde, vim a saber que já tinha um longo historial de violência com antigas namoradas. não fui a única…”
Patrícia reconhece hoje que o ex-marido encaixa que nem uma luva no perfil do agressor que hoje é divulgado nas campanhas de luta contra a violência sobre as mulheres. “Ele é muito carinhoso, sensível e educado mas, dentro das quatro paredes, transforma-se num monstro violento. Eu sou muito forte! Nunca achei que tivesse um perfil de vítima. Trabalho, inclusive, na área da Justiça e acho que isso me protegeu. No entanto, isso não foi suficiente e acabei por me deixar seduzir e controlar.”
Um dos primeiros episódios de violência ocorreu ainda durante o namoro. “estávamos a planear uma viagem e eu, cheia de boa vontade, levei para casa uma brochura da agência com vários destinos. Quando a mostrei, ele ficou nervoso. Começou a falar num tom irritado comigo e, de repente, desatou a dar murros na almofada, completamente descontrolado. Fiquei quieta, sem dizer uma palavra, à espera que se acalmasse. mas recordo-me de ter pensado que, em vez de estar a bater na almofada com aquela força, podia estar a fazê-lo em mim. quando sossegou, disse-lhe que me ia embora mas ele começou a chorar. Acabei por ficar.
Numa outra altura, ele chateou-se com os amigos e contou-me que tinha batido num deles durante uma discussão acesa. Achei que estava errado e disse-lhe, o que o deixou fora de si. Foi então que perguntou: queres que pegue numa arma e te dê um tiro na cabeça? Tremi e percebi que estava perante uma pessoa perigosa. Mas não consegui reagir. Fui incapaz de pôr um ponto final naquela relação doentia… A partir daquele dia, ele deixou de se conter e, cada vez que se chateava comigo, repetia a ameaça. Voltei a sair de casa, mas por pouco tempo. Sabia que estava a lidar com uma pessoa perigosa e que nunca iria largar-me, mas achei que era capaz de defender-me. quando ele foi procurar-me e pediu desculpa, num tom arrependido, não consegui despir o papel de protetora dele que tinha envergado desde o início do nosso namoro.
Tinha a noção do perigo em que vivia, muito presente na minha cabeça. Foi por isso também que o convenci a mudar-se para a minha casa, onde tinha a minha família por perto para proteger–me. Sempre que havia uma festa e as atenções recaíam sobre mim, acontecia o pior. Outras vezes, bastava ele imaginar que eu o tinha traído. Lembro-me de uma vez em que estávamos em casa e eu à janela a olhar para a rua. De repente, ele desatou a gritar, queria saber para onde estava a olhar e, como não lhe respondi, atirou-me com um candeeiro.
Gritava com frequência e insultava-me por qualquer coisa. Era uma violência verbal atroz. A minha história é de resistência. O mais difícil para mim foi gerir este inferno dentro de casa com a minha vida profissional tão exigente. Acabei por engravidar e, nessa altura, casámos. Já o fiz convencida de que aquela relação tinha os dias contados. Foi a melhor forma que encontrei para ganhar tempo e encontrar uma solução para me pôr a salvo, a mim e à minha filha.
O casamento começou logo mal. Tão mal que, anos mais tarde, o juiz a quem contei o que aconteceu durante a lua de mel disse-me que o episódio era tão grave que, se fosse verdade, eu tinha anulado de imediato o casamento. O meu marido começou a pôr defeitos em todos os pormenores do hotel onde passámos a noite de núpcias. Como não lhe liguei, irritou-se com o meu à-vontade. Queria que eu me sentisse insegura e isolada da família e amigos. quando não o conseguia, descontrolava-se. Então gritava e chamava-me arrogante. Estava grávida, em lua de mel e a aturar aquelas coisas! Saí do quarto e fui dar uma volta. Quando voltei, ele estava mais calmo. No dia seguinte, tínhamos um passeio marcado mas expliquei-lhe que sentia-me cansada e preferia não ir. Nessa altura, puxou-me por um pé, atirou-me ao chão e depois para cima da cama. Colocou o joelho em cima da minha barriga, prendeu-me as mãos e começou a dar-me estalos com tanta intensidade que fiquei com a cara desfigurada e deixei de conseguir abrir os olhos. Pedi-lhe para deixar-me ir à casa de banho e mandou-me fazer no chão. Tentei pedir socorro, mas ninguém ouviu. Ao fim de algum tempo, soltou-me e, quando finalmente fui à casa de banho e me vi ao espelho, fiquei em choque. Nessa altura, ele caiu em sí e parou.
Recordo-me de ir para a receção, com os óculos de sol postos e, mesmo assim, era impossível esconder o meu rosto desfigurado. Estava catatónica. Não procurei apoio, mas no fundo esperava que alguém viesse ter comigo e me ajudasse. Pedi uma tosta para comer e o empregado que me serviu ficou perplexo a olhar para mim. Perguntou-me se estava bem e se precisava de ajuda. Nesse momento, recebi um telefonema do meu marido a dizer que tinha deixado o meu bilhete de avião à vista no quarto e a insinuar que se ia atirar da janela.
Tenho alguma dificuldade em lembrar-me dessa noite. Tinha dores mas, acima de tudo, estava em choque com o que se tinha passado. Antes de embarcarmos, ainda passei pela farmácia para comprar um creme que ajudasse a disfarçar o inchaço e as nódoas negras da cara, mas era impossível esconder. Ao fim de uma semana, ainda eram visíveis as marcas e, ao fim de três semanas, os olhos continuavam inchados. Ao longo do resto da gravidez, concentrei-me e esforcei-me para me manter calma e não prejudicar a bebé. Quando nasceu, foquei-me na minha filha e tentei resguardá-la ao máximo de eventuais discussões. nunca sonhei com o casamento, mas imaginava-me muitas vezes no papel de mãe.
E, depois do parto, resvalei. Esta pressão para concretizarmos os nossos sonhos não nos deve deixar descurar os perigos e fechar os olhos aos indícios, que estão lá desde o primeiro dia. Mas eu, apesar de ver os perigos, quis acreditar que era possível ser feliz e que ele seria o pai ideal para a minha filha. No início, parecia ter jeito para brincar com a filha e eu comecei a convencer-me de que não tinha o direito de a privar daqueles momentos. estabeleci como limite o dia em que fizesse mal à filha.
Sentia-me muito frágil. O que era uma contradição. Tinha a minha independência financeira, não precisava dele para nada mas estava convencida de que era menos perigoso mantê-lo dentro de casa, perto de mim, do que tê-lo à distância. Nunca temi por mim, mas tinha medo que ele fizesse mal à minha filha. Muitas vezes, quando se enervava, pegava na miúda, metia-a no carro e desaparecia por umas horas. Outras vezes, quando íamos na estrada e se irritava, desatava a acelerar e eu só pensava que nos matava. Estava refém desse medo. Já não tinha perspetivas de salvar o casamento. o meu psicólogo diz-me, agora, que eu devo ter entrado num processo de dissociação, que permitia-me viver como se existissem duas realidades distintas, dando a ilusão de que a outra não existia. Mas, depois, o corpo ressentia-se. E, mais para o final do casamento, mal comia e dormia.
Não sentia nada por ele há muito tempo. Preparei o terreno para uma separação mais suave. achava que, se falasse com ele com calma, acabava por aceitar a separação. Fui adiando a conversa enquanto me tentava fortalecer. Felizmente, os meus amigos e o meu trabalho foram a minha âncora e a minha fonte de energia.
Tenho a sorte de ser uma pessoa muito positiva e descobri que sou muito resistente, sobretudo quando se trata de defender a minha filha. Ela entretanto foi para o colégio. Foi nessa altura que comecei a cair em mim. Até lá, vivia num estado de profunda catarse. Durante a semana, era fácil o convívio, passava pouco tempo em casa, o pior era no fim de semana. Só queria estar longe dele. Saía-mos as duas e voltávamos ao final da tarde. Quando chegava a hora de regressarmos, a minha filha chorava porque não queria e dizia que o pai era mau. Ficava a dar voltas ao quarteirão com o carro até ela adormecer e assim não entrar em casa com a miúda a chorar.
Ao fim de dois anos de casamento, arranjei finalmente coragem e disse-lhe para sair de minha casa. mas ele não aceitou o meu pedido e foi adiando a saída. Passaram outros dois anos. deixei de o conseguir suportar. Ele era um parasita. mal contribuía para as despesas da casa e da filha e as minhas poupanças começaram a entrar no vermelho, até que me comecei a impor e ele reagiu muito mal.
Durante esse período, li e estudei tudo o que encontrei sobre estes comportamentos agressivos e hoje não duvido que ele se encaixa no perfil de psicopata. É muito inteligente, difícil de diagnosticar em sessões do tribunal. Comecei a deitar-me muito depois dele, já dormia a maior parte das vezes fechada no quarto com a minha filha. Tinha medo que ele me matasse. Sabia que era perigoso. Tem uma forma de ser grandiosa, acredita que tudo o que faz é bom. São os chamados psicopatas de colarinho branco.
A minha filha ainda era bebé quando, um dia, ele foi ter comigo à casa de banho e, num rasgo de fúria, partiu o espelho, agarrou-me pelo pescoço, à frente da miúda, e avisou-me que ‘isto ia acabar’. Fugi para o quarto, ele correu atrás de mim, deu um pontapé na porta e conseguiu abri-la. agarrou-me pelos braços e cuspiu-me na cara, empurrou-me contra a cómoda e depois atirou-me ao chão. Eu, que normalmente nem sequer respondia só para ele não ficar mais furioso, naquele dia ganhei coragem e reagi. Disse-lhe que era um cobarde, que tinha prazer em bater em mulheres. Deixei-o ainda mais furioso. Ele mandou-me fazer a mala e ir embora. Da minha própria casa! Ameaçou-me ainda que a partir daquele momento a minha vida nunca mais seria a mesma. A minha filha tinha assistido a tudo, aterrorizada, escondida atrás do cortinado. Chamei a minha empregada e pus um filme na sala, para distrair a miúda, enquanto arranjei as nossas coisas. Apresentei queixa na polícia por violência doméstica e fui ao hospital para ser observada. Saímos de casa e fomos durante uns tempos para casa de uns amigos, até que os nossos advogados começaram a tratar do divórcio e da regulação das responsabilidades parentais.
Já passaram cinco anos desde esse dia. de repente, ele passou a comportar-se como uma pessoa extremamente civilizada. Ia visitar a filha, ao início da manhã, ao colégio. Até que acabei com essas visitas e eles passaram a estar juntos apenas aos fins de semana intercalados e durante as férias. Tudo parecia estar a correr bem,
Até que uma noite, ao chegar a casa, ele estava escondido na rua e atravessou o carro à nossa frente. Eu, que há muito tinha ganho o hábito de dar a volta ao quarteirão antes de entrar em casa, naquela noite fui apanhada de surpresa. Começou a ameaçar-me e chamei a polícia. Durante dias, a minha filha pouco falava. Agora, já está mais crescida e lida melhor com o pai, mas no princípio foi muito complicado. Para evitar mais confusões, ele passou a ir buscar e a deixar a filha acompanhado da polícia. Numas férias, a miúda não quis ir com o pai e ele começou a insultar-me e a dar-me pontapés. Cada vez que me agredia, eu fazia queixa, daí existirem vários processos–crime a correr. Perdi 80% da audição com as agressões a que fui sujeita e, um ano depois da separação, sofri um AVC. No processo de violência doméstica, ele só foi condenado por ofensas corporais. A juíza só deu como provada a agressão do dia anterior à nossa separação, argumentando que era impossível eu ter sido agredida como descrevia durante a lua de mel e não me ter separado de imediato. Não pedi nenhuma indemnização, porque achei que isso dava mais credibilidade à minha versão. O advogado dele chegou a insinuar que eu estava a acusá-lo só para estar numa posição privilegiada nos processos do divórcio e das responsabilidades parentais.
No âmbito da queixa de violência doméstica, ele foi mandado para a associação Criar, onde a psicóloga que o acompanhou recusou a sua tese de alienação parental. Ele acusou-me de ser alienadora. Quis tirar-me a guarda da nossa filha quando perdeu o processo da pensão de alimentos.
O facto de eu trabalhar na área da Justiça teve uma influência negativa. Especialmente no processo de violência doméstica, o facto de não ter levado a minha família como testemunha e pela minha profissão, fez com que achassem que estava a manobrar o sistema, e tenho a certeza de que isso funcionou, de uma forma negativa, a meu desfavor. Deram o mesmo valor ao testemunho dele do que ao meu, apesar de acreditarem em mim.
Se eu fosse mais frágil e tivesse outra profissão, acredito que tinha sido condenado por violência doméstica. Ele ensaiou o julgamento. Já os juízes acham que eu sou uma privilegiada, que tenho conhecimentos suficientes para contornar o sistema, e o meu ex-marido usa isso contra mim.
O juiz definiu um regime tradicional de visitas, disse que o fazia a pensar no bem da nossa filha e que não existiam nenhumas razões para temer o pai. Acredito que existe uma ideia romantizada de que um homem pode agredir a mulher e continuar a ser um bom pai. Isso não é possível! Os juízes continuam a defender que o problema da violência doméstica é um assunto contra a mãe e não contra os filhos. Quando, na maioria das vezes, estes agressores os utilizam para atingir as mães, depois de terem perdido o controlo sobre elas. Recorri da decisão das responsabilidades parentais. Os relatórios sociais são, na maioria das vezes, uma vergonha. no meu caso, nem sequer salientaram o vínculo à mãe. A dada altura, percebi que se fizesse um acordo de visitas era melhor. É preferível um acordo menos bom mas que se vai limando com o tempo. É importante chegar a um consenso o mais rápido possível, para evitar que os processos se arrastem no tribunal. Na última sessão, o juiz, que era muito hábil e já tinha percebido que ele só queria a guarda para não pagar a pensão de alimentos, deixou a questão do dinheiro para o fim. No início, quando eu chegava ao escritório, e ia ver os emails, tinha logo uma mão-cheia. Chegava ao fim do dia com a cabeça em água. Agora, criei uma pasta só para os emails dele e só os leio ao fim do dia. Fez de tudo para tirar-me a filha e deixar-me na miséria. queria vencer-me pelo cansaço, mas tem perdido todos os processos.
Já fomos mais de vinte vezes a tribunal, à conta de tantas queixas. Agora tenho uma dele contra mim, porque ele alega que eu não o deixo falar com a filha ao telefone. O meu alívio é que está cada vez mais doido e isso torna-se demasiado óbvio a qualquer pessoa.
Continuam a aparecer processos de incumprimento de visitas e, num deles, o juiz, sem sequer me ouvir, emitiu logo um mandado para o pai ir com a polícia à escola buscar a filha. Agora encontramo-nos à distância, à beira da estrada. Eu fico à espera que a miúda atravesse e regresse para casa. Ou, então, as entregas são feitas na escola, o que é um descanso. Ele também sossegou depois de refazer a vida. Mas ainda me custa ouvir a voz dele. O timbre baixo dele deixava-me fora de mim. Os gestos… era como se me continuasse a bater. Continuo a olhar à volta, antes de estacionar o carro, se vejo um carro parecido com o dele. Desliguei a campainha de casa porque ele ficava tempos intermináveis a tocar e, ainda hoje, tenho o telefone em silêncio. Só o toque transtorna-me. mas consigo manter a alegria de viver. Sempre tive uma vida feliz e estruturada antes de o conhecer. Penso muitas vezes, se eu, que sou assim, me deixei levar para uma situação destas, imagino o que acontece às outras pessoas que são mais frágeis. aprendi muito. Tornei-me mais forte, nunca me isolo e quando não estou bem procuro colo. estou mais atenta a alguns pormenores na forma de reagir das pessoas e, quando alguém se mostra interessado em mim, procuro tentar perceber porquê.”