Há palavras com uma sonoridade capaz de levar quem as ouve até terras distantes. Se Rui Marques tiver boa memória, a próxima vez que lhe perguntarem se quer uma zaater man’oushi nem precisará de fechar os olhos para regressar à escola Al Andalous, no Vale do Beqaa, onde provou esta aproximação de pizza polvilhada de tomilho tão típica no Líbano.
Primeiro, viu Handa fazê-la num forno tradicional, e foi um instante até a filha dela, de cara iluminada pelo hijab cor-de-rosa, a embrulhar num papel e passar-lha ainda quente. Estava a meio de trincá-la quando lhe disseram que os alunos recebem todos os dias uma man’oushi destas e uma maçã ou uma banana graças ao dinheiro que os portugueses têm doado à campanha PAR Linha da Frente, promovida pela Plataforma de Apoio aos Refugiados. Então, Rui Marques sorriu. “Agora estão a ajudar quem os ajuda!”, gracejou. O pequeno-almoço já lá ia há que tempos e a pequena pizza sabia-lhe pela vida.
Nessa madrugada, Beirute acordara em sobressalto debaixo de uma trovoada diluviana. Diz-se que os trovões ribombam mas só se alcança a justeza do verbo quando o motorista libanês decide lembrar a propósito as bombas que haviam estremecido a cidade na semana anterior. O atentado teve a mão do EI, num bairro xiita controlado pelo Hezbollah, que apoia o Presidente sírio Bashar al-Assad.
Dois dias depois seria Paris a não conseguir adormecer sob a ameaça de terroristas, e não demoraria muito até se levantarem vozes um pouco por toda a Europa a questionar a entrada de milhares de refugiados nos últimos meses. A viagem ao Líbano seria passada, por isso, com Rui Marques a lembrar aos media portugueses que “qualquer confusão entre refugiados e terroristas é ser cúmplice do EI”.
Também por isso aquela zaater man’oushi que não constava no guião caiu que nem ginjas. Rui Marques é o coordenador da PAR e viajara para ver o trabalho no terreno do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) e da Cáritas, duas organizações com tradição nas áreas da Educação e da Saúde. Na escola Al Andalous, todos os alunos são sírios. A refeição ligeira de pizza mais fruta é muitas vezes a única que comem durante todo o dia. Com apenas cem euros, o JRS ajuda a alimentar uma criança um ano inteiro.
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PARA LÁ DAS MONTANHAS, AS BOMBAS
Não foi por acaso que a PAR optou por angariar fundos para projetos no Líbano. Entalado entre a Síria, Israel e o mediterrâneo, este é o país que tem a maior carga de refugiados do mundo oficialmente são 1,2 milhões, mas estima-se que haja mais uns 500 mil, quando os libaneses não passam de 4 milhões. Só em Beqaa serão 400 mil, a maioria a viver em zonas de refúgio informais porque o Governo não autoriza a criação de campos oficiais.
A pressão é tão grande que o desemprego mais do que duplicou no Líbano. “Os refugiados não têm futuro aqui”, avisa, como se precisasse, o padre Tony Callejo, vice-diretor regional do JRS. “Não admira que arrisquem morrer num barco, a caminho da Europa.”
O êxodo da Síria começou com o eclodir do conflito, em 2011, e ainda não parou, com as pessoas a concentrarem-se no fértil Vale de Beqaa, a poucos quilómetros da fronteira que passam de autocarro ou de táxi. Para lá das montanhas que protegem o vale do vento fica a guerra de onde fogem. Tão perto que é frequente chegar-lhes o som dos bombardeamentos. “Bum!”, faz Muhammad Almousa, um jovem professor sírio, de 30 anos, a onomatopeia acompanhada por braços bem abertos.
Muhammad não consegue esquecer. Depois de um ano e meio a dar aulas de Inglês na escola do JRS, instalada na mesquita de Kfarzabad, regressou recentemente à sua aldeia, a uns curtos vinte quilómetros de Raqqa, cidade-bastião do EI. Quis assistir ao funeral do pai, com quem procurara trabalho no Líbano, ambos munidos de documentos falsos comprados no mercado negro por 700 dólares cada, que os davam como comerciantes.
O pai ainda não tinha feito 50 anos quando decidiu emigrar para poder sustentar as duas mulheres e os catorze filhos que deixara na aldeia. Na Síria não estava em segurança porque era conhecida a sua animosidade para com o EI; já fora raptado, ficando desaparecido durante onze meses. Mas bastaria uma visita à família para ser detido e torturado, acabando por morrer com uma bactéria contraída na prisão.
A escola onde Muhammad dava aulas ganhou um diretor do EI que o obrigava a ensinar apenas em árabe, e uma das suas irmãs, de apenas 10 anos, passou a ter de usar niqab (um lenço que só deixa ver os olhos) sempre que punha o pé fora de casa. Um dia, o cão de um pastor levou para a cidade um troféu macabro – uma mão decepada. “Quando conto estas coisas parece que estou a imaginá-las”, diz, de olhos aguados, “mas é a realidade”.
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VIVER NUMA CIDADE DE PANO
Lembramo-nos de Muhammad na manhã seguinte ao ouvir um médico libanês da Cáritas falar nos problemas emocionais com que é confrontado no seu dia a dia. “Muitas vezes limito-me a conversar com as pessoas porque estão a chorar”, conta Michel Mechref, numa pausa das consultas na clínica móvel em que anda todas as manhãs por Beqaa. “Morreu sempre alguém na família.”
Na equipa de Mechref vai um enfermeiro que se encarrega de distribuir os medicamentos. As queixas físicas mais frequentes são as doenças dermatológicas, muito contagiosas, logo seguidas pelas respiratórias e as gastrointestinais – naturalmente, acrescente-se, porque, tanto nas tendas como nos apartamentos, por vezes ainda em construção, as condições de habitabilidade e de higiene são mínimas.
E, no entanto, chega-se a Moussa Al Jassem, em Faour, umas dezenas de tendas remendadas junto a uma montanha verde que já foi uma lixeira, e os sorrisos são tão abertos que quase nos esquecemos do horror que será morar num campo como este. Rui Marques e o seu inseparável iPad, com que tira fotografias e filma tudo o que vê, é imediatamente rodeado de crianças. Os sorrisos são quase todos delas.
Na tenda do chefe do campo, a sua mulher, Kadra Al Hasan, de 40 anos, confessa que sonha regressar a Aleppo e lamenta sentir-se estrangeira no Líbano. “Esta não é a nossa casa, só viemos porque tínhamos muito medo dos bombardeamentos.”
A tenda, construída como as outras com lonas fornecidas pelo ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) e pedaços de contraplacado, tem três divisões, duas delas quase na estrada onde os camiões passam a acelerar. Daqui a um mês, quando começar a nevar, a salamandra não dará calor suficiente para aquecer as onze pessoas que ali dormem.
É nisso que pensamos quando vamos até Zahle, a maior cidade de Beqaa, e conhecemos parte da família de Mariam Hadad Kounbos. Ela, o marido e dois dos seus seis filhos moram num quarto numa casa com telhado, janelas e tudo. “Uma felicidade por aqui”, comenta Rui Marques.
O marido, Hessen, passa os dias deitado junto à salamandra porque um problema congénito de coagulação de sangue rouba-lhe os movimentos. Na Síria tinha uma pequena loja, aqui está confinado à cama. Vale-lhe o apoio dos filhos e da Cáritas.
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‘SE EU PUDESSE…’
Mariam e Hessen gostariam de poder trocar o Líbano por um país ocidental, mas sentem-se de mãos atadas. Recentemente, ajudaram um dos filhos mais novos, Ahmed, de 18 anos, a tentar a sorte na Turquia mas ele ainda não encontrou trabalho.
As histórias não variam muito e os discursos começam quase sempre com “se eu pudesse”. Dois dias antes, na escola Franz Van del Lugt, no bairro de Bourj Hammoud, em Beirute, seria um jovem jesuíta madrileno, Angel Bénitez, a contar a odisseia de um professor sírio que pagou 9 mil euros a um traficante de pessoas para chegar à Grécia. “Nós não recomendamos que o façam mas entendemos que tentem porque aqui não há futuro.” O traficante seria detido e o homem perdeu o dinheiro e a sua última hipótese de sair do Líbano.
Todos os meses há um vaivém de alunos na escola Franz Van del Lugt. Enquanto algumas famílias tentam o salto rumo à Europa, outras chegam da Síria como se viessem passar o dia, só com a roupa que trazem vestida. O rol de famílias que o JRS apoia com cupões, que podem ser trocados por alimentos ou produtos de higiene, está constantemente a ser alterado. O orçamento, esse, é sempre curto, admite a diretora de projeto, Andrea Zard. “Ajudamos 311 famílias, mas temos mais 200 em lista de espera.”
Os cupões 20 dólares por pessoa, por mês são descontados numa loja, “uma forma digna de ajudar”, nota Rui Marques. Na loja há um pouco de tudo, mas é o açúcar e a halawa, uma pasta de sésamo dulcíssima, que têm mais saída. Sempre lhes adoçam a existência amarga.