Há dez anos afastado de funções políticas, o antecessor de Cavaco Silva na Presidência da República tem desenvolvido um trabalho consistente e coerente na área humanitária internacional. Em 2006, foi nomeado Enviado Especial do Secretário-Geral da ONU para a Luta Contra a Tuberculose, entre 2007 e 2013 foi Alto Representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações e, desde 2013, preside à Plataforma Global de Assistência Académica de Emergência a Estudantes Sírios. O percurso de Jorge Sampaio fora da política tem-lhe valido várias distinções, como a que este ano o levou a Nova Iorque, para receber o Prémio Nelson Mandela.
Mas nem por isso Sampaio deixa de ter opinião sobre a atualidade política. No capítulo das presidenciais é apoiante de António Sampaio da Nóvoa. No das legislativas, não se coíbe de dizer o que pensa. Se fosse ele o inquilino em Belém, celeridade seria a palavra de ordem.
Eis Jorge Sampaio, de 76 anos, em discurso direto numa entrevista que por incompatibilidade de agendas teve de ser realizada por escrito.
Depois dos atentados de Paris, a vida torna-se mais difícil para os refugiados que chegam à Europa?
O clima está mais tenso, as pessoas estão com medo. Ora, o medo gera sempre sentimentos defensivos e de desconfiança. É preciso um esforço por parte de todos – dos governos e poderes públicos, da sociedade civil e também da comunicação social – para evitar amálgamas e reações xenófobas. Aliás, é preciso não esquecer que quase todos os atentados terroristas na Europa foram perpetrados por cidadãos europeus. Em segundo lugar, é bom não esquecer que os refugiados fogem precisamente do terror e da insegurança provocados pela guerra no seu país.
Como lutar contra o terrorismo que parece ameaçar-nos?
É verdade, estamos a assistir ao ressurgimento da ameaça terrorista. Os inomináveis e bárbaros ataques em França e no Líbano, a explosão do avião russo, os atentados em Bamako e no norte da Nigéria, e em tantas outras zonas do mundo em que o dia a dia de populações inteiras tem sido marcado pelo terror, a violência e a destruição não nos podem deixar de interpelar. Entendo que o extremismo, o fanatismo, a violência armada organizada e o terrorismo, sob todas as suas formas, têm de ser combatidos nos vários planos e dimensões que encerram. Este é um desafio de grande complexidade que não pode ser nem mais ignorado nem adiado, até porque está hoje claro que a inação não é só negligência, mas redunda em cumplicidade.
A questão é como fazê-lo, na prática?
A resposta a este desafio tem de comportar várias dimensões e não pode ser ditada pela emoção nem por propósitos de vingança. A revolta e a indignação, as manifestações de repúdio e condenação têm o seu lugar e tempo próprios, quando a barbárie ameaça o nosso quotidiano. Mas a resposta necessária é política e exige recuo e concertação, tem de assentar numa visão estratégica com objetivos a curto, médio e longo prazo, cuja realização requer medidas de natureza diversa bem como um leque extenso de políticas públicas. A resposta tem de combinar o plano nacional, europeu e internacional e não pode ficar refém de considerações imediatistas e cálculos de curto prazo.
Dizia há pouco que os atentados na Europa têm sido perpetrados não por estrangeiros mas por europeus…
Sim, é verdade – por cidadãos europeus, quase todos com uma história pessoal ou familiar de migrações. Europeus também todos com uma história de radicalização de inspiração religiosa. Ora isto deve fazer-nos pensar, temos de refletir sobre o mal-estar social que alastra no coração das nossas sociedades. O filósofo Habermas falava numa entrevista recente de “desenraizamento”. É uma pista a explorar. Mas não podemos ignorar que estamos a produzir “bolsas de exclusão e de desintegrados” no seio dos nossos territórios e que, se tal está a acontecer, é porque estamos a falhar em algo – na escola, sem dúvida, pois esta deveria ser o lugar por excelência da socialização e integração dos cidadãos; nas autarquias que, sendo o nível de poder mais próximo dos cidadãos, deveriam assegurar a boa governação da diversidade cultural no seu sentido mais amplo, através de políticas públicas fortes e apropriadas, dar o alerta e fazer o acompanhamento precoce de situações de risco; no plano do pluralismo religioso, que cabe aos nossos estados democráticos reforçar.
Ou seja, não basta declarar guerra ao terrorismo?
É isso, sim. A crise que atravessamos é mais vasta e envolve uma componente forte de política externa, para além dos aspetos de defesa e segurança. Não basta criar uma coligação militar para erradicar o Daesch ou o pretenso Estado Islâmico para se combater o terrorismo. É preciso ir à raiz e ter a coragem para resolver um nó complexo de problemas que são, quase todos, de natureza política. É necessário também que os próprios Estados, que neste momento se afrontam no seio do Islão, bem como as comunidades muçulmanas at large, se mobilizem e produzam as reformas necessárias que não parecem ser adiáveis por muito mais tempo. Por mim, tenho claro que o que está em jogo hoje é verdadeiramente a capacidade de diálogo, o valor da tolerância, o pluralismo e o respeito pelos direitos humanos como fundamentos das relações pacíficas entre os povos e no seio das nossas sociedades.
Mas voltando aos refugiados, acredita que a sua integração social não será afetada por esta onda de medo provocada pelos atentados e a ameaça terrorista?
Acredito que com o esforço conjugado de todos e políticas públicas apropriadas poderá não ser afetada. Quero ainda sublinhar que o papel dos media será também muito importante a este respeito.
Que desafios traz à Europa esta onda de refugiados?
Traz desafios de vária ordem – antes de mais, é um teste à solidez das lideranças europeias, à sua capacidade de concertação e ao espírito de solidariedade europeu. É depois um teste para os governos nacionais, para a sua capacidade de assegurar a boa governação da diversidade cultural, de reforçar o pluralismo e a coesão social segundo os princípios e valores comuns de que se reclamam os estados europeus. É, por último, um teste para as próprias sociedades para a sua capacidade de integração e de acolhimento.
Como vê a Europa no futuro: um oásis dentro de muros ou uma sociedade inclusiva e solidária?
A Europa foi, é e deverá continuar a ser um ideal em construção e aperfeiçoamento permanentes. Eu espero que consigamos ultrapassar a crise que a Europa atravessa atualmente e que as nossas sociedades continuem a ser pluralistas, coesas e solidárias.
Há quem diga que estamos num momento de colapso civilizacional completo. Acredita?
Não, não acredito e penso que teses alarmistas desse género não têm qualquer utilidade. Atravessamos, sim, uma crise séria e profunda e devemos reconhecê-lo, pois a negação dos problemas também não contribui para a sua solução, bem pelo contrário, agrava-os.
Foi das primeiras pessoas a perceber o que se passava na Síria. Acha que é possível agir na origem? Como?
Não sei se a sua premissa se verifica e não reclamo qualquer clarividência especial. Mas apercebi-me, há já bastante tempo, de que a Europa devia fazer mais para aliviar a pressão exercida nos países vizinhos da Síria que já em 2012-2013 estavam a receber milhares de refugiados. Apercebi-me também que com a dimensão do fenómeno dos refugiados nos nossos dias há que proceder a reformas na forma de atuar no plano humanitário até porque estas crises tendem a durar anos e, por isso, a ideia de que a ação humanitária é provisória e limitada no tempo já não é corroborada pelos factos. Por outro lado, a variedade das necessidades é tal que há que desenvolver abordagens diferenciadas consoante os grupos alvo ou o tipo de problema que se quer resolver – habitação, saúde, educação. Assim é que a questão do ensino superior, dos jovens estudantes afetados pelas guerras, deve ser tratada por canais próprios, mobilizando a própria comunidade académica global.
O que pode aprender-se com a vaga de refugiados que deixa toda a sua vida para trás em prol da sobrevivência?
Há uma lição que a Europa pode desde já tirar: fechar as portas em tempos de crise e blindar o acesso legal de refugiados não foi a melhor solução. Pelo contrário, esta opção levou a que tráficos de toda a ordem tivessem tido um desenvolvimento exponencial, pondo em risco a vida das pessoas sem qualquer espécie de escrúpulos.
Quando decidiu, em 2013, criar a plataforma, escolheu apoiar os sírios. Por que razão?
Porque já nessa altura a crise humanitária atingia grandes proporções e porque, na Europa, havia como que uma indiferença generalizada.
Chegam à plataforma candidaturas de outros países em guerra?
Sim. Daí que esteja agora a trabalhar num projeto mais vasto, cuja implementação me parece ser urgente. Se pensarmos que há atualmente 37 crises em curso, que a duração média das guerras civis é de oito a dez anos e que a fase da reconstrução ou do pós-conflito exige que haja preparada e pronta a atuar uma nova geração de líderes, concluímos que importa criar um Mecanismo de Resposta Rápida para o Ensino Superior perante situações de emergência como são os conflitos. Seria uma espécie de fast track da agenda humanitária. Seria apoiado num Consórcio Académico e num Fundo Global para a Educação Superior nas Emergências.
Quantas candidaturas já foram recebidas desde 2013?
No primeiro concurso aberto, recebemos cerca de 2.500 candidaturas dentro do prazo estabelecido e quase mais de mil fora de prazo. Foram pré-selecionados cerca de 1.700 estudantes. Entretanto foram feitos outros concursos para subcategorias específicas de estudantes sírios – como sejam, estudantes sírios arménios (graças a um apoio recebido da Fundação Calouste Gulbenkian) ou agora mais recentemente para estudantes de Medicina. Para se fazer uma ideia do enorme hiato que existe entre a procura e a oferta, para usar uma linguagem de mercado, temos este ano cerca de 100 bolseiros em Portugal e 50 em outros nove países – na Europa ou no Médio Oriente, mas também nos EUA e no Canadá. É uma ínfima fração de uma gota no vasto oceano das necessidades.
O que lhe dizem os estudantes que retomam a sua vida académica em Portugal?
Que estão muito gratos, mas que seria preciso fazer muito mais… E aproveitam logo para falar dos irmãos, primos, amigos, antigos colegas, vizinhos…
Em setembro, foi a Nova Iorque reunir-se com responsáveis de outros países para discutir o auxílio humanitário a estudantes. O que saiu dessas reuniões?
Estas reuniões destinaram-se sobretudo a fazer advocacia, ou seja a mobilizar mais atores internacionais para que, por um lado, reconheçam a importância de apoiar e proteger a Educação Superior em situações de emergência e, em segundo lugar, para que deem mais apoio aos refugiados sírios, designadamente na área da assistência académica. Nesta medida, não é fácil contabilizar os resultados até porque geralmente se trata de um processo de sensibilização que passa por várias fases. Quando no cômputo final, há, por exemplo, uma decisão de dar um apoio financeiro a um programa ou de endossar uma decisão favorável à causa em questão, então, podemos concluir que as diligências foram bem sucedidas.
Como se financia um projeto destes?
Com muitas ações de angariação de apoios nacionais e internacionais, muitos contactos, muita transparência, uma accountability rigorosa e exigente, e muitos relatórios de implementação!
Já tem organizado concertos de angariação de fundos, o próximo está marcado?
Sim: 6 de fevereiro no MEO Arena com uma cartaz de “arromba” a anunciar em breve. Tome nota, queremos casa cheia!
Se ainda fosse PR, qual teria sido a sua preocupação central, face à crise política em que o País mergulhou?
Celeridade na decisão por forma a dispormos de um Governo na plenitude das suas funções, capaz de responder às duras exigências que a situação nacional e os constrangimentos internacionais nos colocam.
Em 2004, disse que o Parlamento já não tinha capacidade para gerar novos governos. Pode deduzir-se que, hoje, daria posse a António Costa?
Como já disse, no nosso quadro constitucional, os governos formam-se a partir dos resultados das eleições parlamentares, apresentam-se e respondem politicamente perante o Parlamento. Numa altura em que o povo acabou de votar e não pode ser chamado a votar de novo, cabe ao Presidente da República, no desempenho de um poder de livre exercício, subordinado exclusivamente à interpretação que faz do interesse público, nomear um Governo que tenha condições de ver o seu programa passar na Assembleia da República e possa entrar a governar na plenitude das suas funções.
O acordo das esquerdas tem a solidez necessária para um mandato estável, de quatro anos?
É o objetivo.