Numa sexta-feira à noite, cinco irmãos ficam sozinhos em casa, enquanto os pais saem para comprar cigarros. Quatro escapam ao fogo que deflagra, a mais velha é encontrada sem vida. A tragédia leva-nos ao bairro do Zambujal, em Alfragide, ocupado por habitações sociais. Ali vivem perto de 5 mil pessoas, entre a zona industrial e o acesso à capital. Conhecido como terra de ninguém, é um dos 20 bairros que afligem os responsáveis da Amadora, o concelho com a maior densidade populacional do País – e também com mais sinalizações de menores em risco.
Quando há tragédias aponta-se logo o dedo ao sistema de proteção de menores. Como comenta?
Não posso adiantar muito sobre esse caso, apenas que o mundo não é a preto e branco. Temos por princípio que fazemos todos parte desse sistema.
Explique lá melhor…
É preciso toda a comunidade para proteger a criança. Temos todos de reflectir sobre o nosso papel para perceber como é que uma criança fica invisível aos olhos dos outros, na sua comunidade. O nosso procedimento é claro: mal há uma sinalização, procuram-se os pais. Se autorizarem, desenha-se o diagnóstico. Se a criança é maior de 12, também é ouvida. A nossa intervenção é sempre de colaboração e diálogo com as famílias.
Depois do fogo, descemos ao bairro do Zambujal pela mão de Felicidade Nunes, fundadora da associação de moradores A Partilha. Sabemos então que, como em todas as histórias de conflito, aqui também há uma outra versão. Há muito que os olhares da comunidade reprovavam o estilo de vida daquele casal do homem, 37 anos, etnia cigana, e sua mulher, 33 anos, caucasiana e dos seus oito filhos, a mais velha com 13, o mais novo com um. Desabafa Felicidade: “São situações que mexem muito connosco mas às vezes os acontecimentos ultrapassam-nos”. Felicidade Nunes, angolana, 73 anos, vive desde 1989 no Zambujal. Funcionária pública, trabalhou como secretária em vários serviços, da inspeção alimentar à prisão de Tires. Há dez anos, fundou a associação de moradores. Providencia comida e roupa para os mais pobres, conseguiu um parque infantil para o bairro, ao abrigo do programa camarário ‘Zambujal Melhora’, e insistiu para que tivessem espaços verdes. A família de que agora se fala foi também alvo da sua atenção. Em abril, enviou um fax para a polícia a dar conta de que algumas crianças viviam numa roulotte, no meio da rua. “Eles só tinham dois quartos e com tanta gente…”
Nos casos de negligência também é preciso o consentimento dos pais?
Sim, a lei exige esse consentimento. A nossa arte é a relação com as pessoas, temos de conseguir transmitir essa confiança, é o nosso instrumento de trabalho. Já há pais que vêm pedir ajuda, quando não conseguem lidar os filhos. Mas claro que também há casos em que temos de afastar a criança e promover o internamento institucional [sempre por iniciativa do Ministério Público].
Vê-los a brincar na rua era o mais comum, anui Felicidade, habituada a que lhe aparecessem na associação, duas ruas abaixo da casa que ardeu. Sira, a menina que morreu, era da turma do bisneto. A preocupação torna-se audível com as pequenas explosões que percorrem o bairro, mesmo de tarde: “Os miúdos apanharam esta mania de fazer ‘bombas’, com fósforos…”, conta, de coração apertado.
Quando se considera que há risco?
Será provavelmente a situação dessas crianças no Zambujal que, ao contrário do que se disse, não estavam sinalizadas. A maior parte dos casos é de maus tratos físicos e abuso sexual. Há tempos uma menina apareceu grávida na escola. A irmã, que também engravidara na adolescência, foi sovada quando contou em casa. Esta menina temia que lhe acontecesse o mesmo. Contactámos a família e a mãe e o padrasto concordaram com a institucionalização. Mas também acontece o contrário…
O cenário nas ruas em volta de A Partilha é desolador. “À noite, é de fugir”, garante Lena, voluntária da associação. Escritos nas paredes, imundas, portas arrombadas, janelas sem vidros. Caixotes do lixo partidos, restos pelo chão. Nem o querido parque infantil de Felicidade escapou à fúria destruidora. “É o meu maior desânimo”, confessa, “e já foi arranjado tantas vezes…”
E assumem os maus-tratos?
Às vezes, assumem. Acabam até por contar situações de que nunca falaram na vida. Há muitos silêncios que se abrem aqui, quando as pessoas sentem que estão numa relação de confiança e que não somos polícia nem tribunal. Acreditamos que o melhor projeto de vida para uma criança é com a família. Temos depois de avaliar se essa família reúne condições e qual a resposta que oferece quando estendemos a mão. E é esta conduta, de nos pormos ao lado das famílias e vermos com elas o que é possível fazer, que produz a mudança nas pessoas.
Tempos houve, no Zambujal, em que as crianças, não ficavam entregues a si próprias. “Tínhamos uma creche, agora não autorizam porque não tem pé-direito… Então mas não era preferível a ficarem na rua?”, indigna-se Felicidade. Agora, funciona como refeitório comunitário: quem precisa vai lá buscar comida e roupa. “Não é por termos pouco que não somos solidários.”
E se os pais não cumprirem?
Sempre que há incumprimento, somos obrigados a reportar para o Ministério Público. Um acordo envolve sempre outros, como a escola ou o centro de saúde. E damos força ao que fazem bem, não queremos focar-nos só nas coisas más.
Esses acordos têm prazo?
As medidas têm um tempo definido por lei, no máximo 18 meses. Até aos 6 meses, avaliamos novamente o que está a ser cumprido e o que ainda mantém a criança numa situação de desproteção.
Foi para ajudar as crianças do bairro que Felicidade se lançou a criar A Partilha. Começou pelo jardim. Dava aos miúdos e convencia-os a não estragarem a relva. Depois, foi a vez do grupo de dança e levava as meninas ciganas a atuarem por todo o lado. “Quem meus filhos beija, minha boca adoça”, gosta de dizer Felicidade. “Quem me conhece, sabe que sou assim.”
Nesse tempo, Felicidade foi várias vezes pedir ajuda à Junta de Freguesia. “Isto era uma miséria, era o ‘Zambujal, terra de ninguém’. Quando começou o programa alimentar, vieram mais desilusões. “Deitavam a comida fora…” Reabilitaram-se alguns prédios, mas depois o empreiteiro faliu.
Como se explicam casos sinalizados durante anos e anos?
Muitos já transitaram para o Ministério Público só que isso não interrompe um processo de promoção da proteção da criança. O sistema assenta numa pirâmide, que tem por base a família e a comunidade em volta. Depois temos a escola, o centro de saúde, a polícia. Estas são as primeiras entidades a saber o que se passa. Quando não conseguem resolver, sinalizam ao segundo patamar, à comissão. Quando somos informados, contactamos os pais. Sempre.
As obras que ficaram a meio são só uma das razões para a revolta no bairro. “Falta educação, só recebem dinheiro”, insiste Felicidade, a deixar o pensamento fugir para as famílias mais negligentes e para a adolescente que não sobreviveu ao fogo. Era aluna do 5.º ano, depois de chumbar 3 vezes. “Ela e os irmãos andavam sempre a pedir iogurtes, roupa, carinho…”
Há pais que não colaboram?
Alguns, nos casos que correm menos bem.
E aí o que acontece?
São notificados pela PSP. Mas o pior é que, em muitos casos, quem está mais próximo não interveio e se calhar até conseguia. Sobretudo, quando as famílias são cooperantes.
“O incêndio foi ali”, sussurra Felicidade. O rasto deixado pelo fogo está à vista – e o semblante carregado dos patriarcas ciganos também. Mas é só: ninguém sabe onde está aquela família. Nem em que condições estarão as crianças. E diz-se ainda que aquela mãe está grávida outra vez.
A ideia de envolver os outros é vossa?
É um desafio da comissão nacional: é fundamental para prevenir e não queremos estar sempre a remediar.
Numa primeira versão daquela fatídica madrugada a menina que morreu é que teria salvado os irmãos mas uma outra história já corre por ali – corroborada pela comissão de proteção de menores. Em casa, estavam apenas cinco dos irmãos, outros três estavam com os avós, em Lisboa. O pai chega de noite e convence a mãe a irem à rua, só com o bebé ao colo. Os outros ficam a dormir, três na cama deles e a mais velha num outro quarto.
A Amadora é o concelho mais densamente povoado do país e é onde está a comissão com mais crianças sinalizadas. Precisava de mais meios?
O facto de sermos os primeiros também significa que a relação com a primeira linha é muito eficaz. Recebemos entre 40 a 50 sinalizações por semana mas a maioria é devolvida a quem sinalizou e passível de ser tratada por quem fez a denúncia. Estes números retratam uma maior ligação com a comunidade, apesar das tragédias.
E voltamos à comunidade…
O que faz com que nos questionemos. Será que esta está atenta e assume o seu papel?
É durante a ausência dos pais que o fogo deflagra. Um fósforo e as chamas propagaram-se pelo quarto. Ao ouvir o choro das crianças, alguém empurrou a porta, tirou os mais pequenos para a rua e telefonou para os bombeiros. São estes que encontram Sira, sem vida, deitada na cama. Terá morrido por asfixia, dada a grande quantidade de fumo. O homem que salvou os outros não se quis identificar.
Há sinais de alerta a que devíamos estar mais atentos?
O que percebemos é que há muita gente a viver sem rede, como no caso das crianças que ficam sozinhas em casa. Será que essa mãe que tem de ir trabalhar de madrugada não consegue ativar alguém no seu círculo, para ajudar? E aí o nosso trabalho pode ser esse: refazer as ligações que, por algum motivo, foram cortadas.
Apesar de todos os sinais exteriores de risco, a família Pereira não estava sinalizada. “Mas não se pode pôr a culpa só nas instituições”, insiste Felicidade. Segue-se o desabafo: “Este podia ser um bairro bom, se fosse mais cuidado por todos”, fazendo notar que até fraldas sujas voam pelas janelas. O pior: “Vemos crianças a brincar com fósforos e as mães, ao lado, a jogar às cartas…”
Retirar uma criança da família é sempre a última opção?
Institucionalizar é uma segunda discriminação: a criança é a vítima e é ela que é afastada.
As bombas de fósforos já levaram a polícia ao bairro. “Mas os pais nem ligaram”, queixa-se Felicidade. “O que estas pessoas precisam é de educação ou isto vai repetir-se.” Eis que os miúdos a cercam, a pedir: “Doce ou travessura? “. Ela devolve a pergunta: “Já não têm daquelas bombas?”. Um rapaz, franzino, abana a cabeça: “não, já não…aquela menina morreu por causa de um fósforo…”