Na noite de 27 de fevereiro último, Daniela, 18 anos, saiu à rua decidida.
Passara os dias anteriores a ler artigos de jornal e comunicados dos sindicatos. Trocara ideias com gente mais experiente, conversara com os amigos, avisara das suas intenções. Três anos antes, escrevera no Facebook: “Só me arrependo daquilo que não faço.” Agora, havia nela um luto interior carente de explicações.
Antes de sair de casa, vestira calças pretas, camisola de lã preta e branca, blusão negro. Por fim, colocara ao pescoço um colar de pérolas da mãe.
Era nela que pensava quando subiu ao púlpito, ansiosa.
Carla Maranhão, 43 anos, fora despedida do Casino da Póvoa de Varzim ao fim de 15 anos de trabalho. Ela e mais vinte. Assistente de marketing foi o último cargo que ocupou, mas deixara para trás anos de ouro, em ambiente de grande “familiaridade”. Ainda hoje quando fala nisso é como se o rosto se lhe desfizesse em lágrimas. Nessa noite, porém, a filha tinha uma missão: levar o assunto à Assembleia Municipal. Exigindo respostas.
Ela e o casino
Era já tarde na noite quando a morena Daniela Maranhão, cabelos lisos, compridos, e olhos castanhos a reclamar sinceridade, subiu ao púlpito na hora em que o povo tem voz. Nervosa, apresentou-se aos deputados como “poveirinha, pela graça de Deus”.
Não se engasgou.
Disse tudo o que gatafunhara e depois passara ao papel. Por causa da situação familiar, sentira-se obrigada a desistir do curso no ensino superior, em Contabilidade e Administração, que frequentava no Politécnico do Porto. Ela até queria passar para Economia, mas isso era um sonho adiado. Pedira para intervir por considerar que a população fora induzida em erro. Não, o despedimento coletivo de 21 trabalhadores não era essencial para salvar uma empresa em dificuldades. “Nada mais longínquo da realidade”, afirmou.
Embalada, Daniela denunciou, perante o espanto da assembleia, os PPR’s “faraónicos ” de administradores “que nem sequer põem os pés neste casino durante anos a fio”. Ela, que em tempos até brincara pelos corredores nas horas mortas da fortuna e da desgraça, numa época em que a Póvoa era sinónimo de “convívio social”, acusou os gestores da casa de jogos de quererem “arrasar” a Comissão de Trabalhadores, a representatividade sindical e a contratação coletiva. Apontou o dedo a uma gestão que, segundo as suas próprias palavras, diminuiu os postos de trabalho, as receitas, a qualidade do serviço e os apoios à Cultura. Comparou o casino “a um armazém de máquinas “. Uma “degradação” diretamente proporcional à do município, do comércio e ao “incremento das atividades ilegais relacionadas com o branqueamento de capitais “. A jovem, tremendo mas não cedendo, desafiou a autarquia “a não lavar as mãos e assobiar para o lado”, em nome do futuro de um casino que é “dos poveiros e do município, e não de qualquer outra administração”.
Quando acabou, os trabalhadores e seus familiares, presentes na sala, comoveram-se. Os aplausos e elogios vieram de quase todas as bancadas, incluindo a do PSD, maioria no concelho.
O PS conseguira aprovar uma moção sobre o tema, desafiando o Governo e a empresa a pôr fim ao processo. A exceção foi uma deputada de direita. “Disse que era um assunto de tribunais.
Para o CDS, as pessoas são apenas números? Despedem-se famílias como se não valessem nada?”, questiona Daniela.
Obama e Estado Social
Das calças skinny às canções dos Deolinda e Sam The Kid, das unhas pintadas ao prazer de namorar, da inspiração nas leituras do Diário de Anne Frank à admiração por Barack Obama, Daniela veste a pele da sua geração, mas também desafia o estereótipo.
“Ao contrário do que muitos pensam, os jovens estão preocupados com Portugal, só não sabem o poder que têm”, resume, de olhar fixo e palavra firme.
Ela não se lembra do dia em que começou a ficar desconfortável com o País. Talvez tenha sido em 2011, quando a mãe começou a chegar a casa sem o mesmo brilho nos olhos e arrasada com os problemas do casino. “Ela é o maior exemplo da minha vida. Foi mãe solteira, deu tudo às duas filhas, trabalhou no duro e não conseguiu aceitar a situação degradante em que o casino estava. E tinha medo. No País em que eu acredito, a minha mãe não devia ter medo”, explica.
Monika Varga, de origem húngara, confirma o rol de intimidações e perseguições.
Ex-trabalhadora do casino também ela, esteve sempre próxima de ambas, contagiando-as para a luta contra os despedimentos quando tudo se desmoronou, há meses.
Carla vendeu o carro, renegociou a hipoteca da casa, cortou no vestuário, cancelou o seguro de saúde e o do recheio da casa.
“Entrei em depressão, mas a minha filha foi buscar-me ao fundo do poço. Sem ela já não estava cá”, confessa Carla, olhos rasos de água, na sala de estar do seu apartamento confortável e simples, a cinco minutos de carro do casino. Daniela e a irmã, Cristiana, licenciada em Economia, juntaram-se às manifestações dos trabalhadores. Fizeram número nas greves. Mobilizaram colegas de escola e de faculdade para cantarem as Janeiras à porta dos administradores do casino.
“Não foi surpresa. Sei muito bem quem são as minhas filhas”, emociona-se Carla.
A princípio, Daniela indignou-se com “a indiferença dos poveiros” em relação ao problema do casino. Mas o rescaldo da Assembleia Municipal, aliado à luta incansável dos “despedidos”, gerou solidariedades e sacudiu a anestesia geral. “Dantes as pessoas andavam envergonhadas, mas agora falam do assunto abertamente, sentem que o casino é também um problema delas”, confirma Monika, ativista sindical.
“Não me arrependo de nada, foi tudo pensado. Quis falar pelos 21 que não tinham voz e evitar que a Póvoa continuasse indiferente “, assume a jovem Daniela.
Ela, que ainda se imagina economista, um dia, rejeita a postura dos cínicos e acomodados. “Quero mudar a vida das pessoas. Já pensei em meter-me na política, mas percebi que sou bastante mais escrupulosa do que a maioria dos que lá andam…”, ironiza.
No fundo, Daniela tem “um orgulho enorme em Portugal”.
No seu “fantástico serviço público de Saúde e na ótima Segurança Social”. Por isso afirma-se “contra o que vemos na cultura americana, individualista, de cada um por si. O Obama ia prejudicando a sua reeleição porque quis um sistema social mais justo”, acrescenta.
Por agora, Daniela ocupa parte do tempo a estudar para melhorar notas.
A ver se os exames saem a contento, depois da vida académica interrompida. A ver se o futuro ainda lhe sorri. Aqui, “na Inglaterra ou na Alemanha”, países onde se imagina emigrante, “porque não?”.
Por agora, a mãe é a sua principal preocupação.
Andaria com ela ao colo, se pudesse.
“Levo-a para todo o lado, tento motivá-la.
Recuso-me a aceitar que vencem sempre os mesmos, os senhores das grandes entidades “, justifica. “Por isso, irei até onde for preciso para que este assunto não seja esquecido.” Em nome da mãe. E do País que os seus sonhos reclamam.