E o bolo alimentar às voltas de um canto para o outro da boca como se eu tivesse faceiras ou como se fosse impossível iniciar os movimentos peristálticos.
Na hora de me sentar à mesa, não havia vivalma que me salvasse. Como nunca terminava a refeição no mesmo horário dos outros comensais ficava, ordem expressa, horas a fio ali sentada, sozinha, eu e o prato frio, entre os barulhos domésticos da casa e o apelo silencioso do quintal com baloiço ao fundo.
A diretiva não oferecia dúvidas: só sai da mesa quando terminar. Um dia, como por milagre, a ordem expressa foi contrariada pela falta de paciência da nova empregada. Eu teria oito anos e ela, se a menina não come chamo os ciganos! Pegam em si e levam-na pelo mundo e obrigam-na a comer de tudo. Vá, despache-se!
E eu, quais ciganos? E ela, quais ciganos? Os ciganos que andam pelas terras a levarem as crianças que não comem e se portam mal. E eu, quais terras? E ela, por esse mundo fora, que os ciganos não têm terra. E eu, e porque é que os ciganos não tem terra? E ela, porque andam sempre a fugir. E eu, a fugir de quê?” E ela, valha-me Deus, vá lá brincar, que eu não digo a ninguém que não comeu tudo. E eu saía da mesa, feliz, a pensar em como seria bom ser cigana e não ter terra, nem casa, nem mesa, nem nada para comer (a não ser Nestum com Mel) nem Tonosol para tomar!
Esta é a minha memória mais antiga sobre ciganos. Chegaram assim, ao meu conhecimento, naturalmente embalados em estereótipos. Creio que a Cristina, a empregada de sorriso benévolo, não acreditava no que dizia sobre eles. Limitava-se a reproduzir o que sempre ouviu, na certeza de me atemorizar. Pelo contrário, aquelas palavras sobre um povo sem terra, a fugir não sei de quê nem de quem, que me viria buscar na hora das penosas refeições, merecia-me o maior apreço.
Para mim, passaram a heróis! Finalmente haveria quem me salvasse: os benditos ciganos! E foi assim, movida por esta secreta simpatia zíngara que, mais tarde, tomei como amigo, o Torres, um cigano de cabelo cor de carvão, sorriso branco rebelde e atitude protectora. Era um dos melhores jogadores da bola no meu tempo do ciclo preparatório e o único rapaz que não levantava a saia das raparigas! Ele e o Rui. Em abono da verdade.
E porque é que estou a contar isto, aqui? Pois bem! Porque acabei de ler o livro “Sou Cigana”, da Tânia Fonseca e ela fala nisto, nos meninos que não comem a sopa e que, por isso, são ameaçados com ciganos terríficos, fazendo desta ameaça um clássico intemporal, revelador de como se reproduzem ideias aparentemente inócuas mas eventualmente perigosas para a sã convivência intercultural.
O pequeno livro da Tânia Fonseca está cheio de histórias imensas que nos ensinam. Até porque o seu olhar, lúcido e crítico, tenta dar-nos uma visão pragmática. A dela e a nossa, por ela. Um relato, na primeira pessoa, tom coloquial a contar a sua própria experiência enquanto mulher cigana, de nacionalidade portuguesa e coração espanhol. A contar o espanto e a indignação de quando, por exemplo, o pai lhe disse, no seu tempo de adolescente, haver em Lisboa cafés que tinham na porta “proibida a entrada a ciganos”. Tânia conta a sua tristeza e a da sua professora primária por a terem feito interromper os estudos ao fim do 4º ano e explica porque é que o pai não queria que ela estudasse mais. Conta como não se conformou com esta decisão paterna e porquê. Leva-nos, veloz, para o meio das suas interrogações, coloca-nos ao corrente dos seus sonhos, aspirações, receios e, essencialmente ajuda-nos a compreender a sua cultura, contribuindo para derrubar estereótipos seculares. Conta-nos como aos 15 anos ela e o seu primo Daniel resolveram desfazer o noivado, entristecendo a família. Conta-nos como fez uma tatuagem e a escondia com roupas largas e como resolveu continuar os estudos. Conta-nos da sua apetência para o estudo das línguas, do seu gosto pela música, de como a sua sede de compreender a levou a outros ciganos admiráveis, como por exemplo, August Krogh, Joaquim Cortéz, Django Reinhardt.
Este pequeno livro, lê-se num ápice, tom confessional a lavar a alma. A contar de como ela e o marido (paílho) resolveram procurar outra casa para viver quando os vizinhos mostraram incómodo pelo simples facto de ela ser cigana!
Uma publicação, apoiada pela EAPN Portugal que tem o grande mérito de desconstruir preconceitos de raiz funda com episódios ligeiros do quotidiano. É um documento que nos aproxima das comunidades ciganas, contribuindo para a compreensão da sua herança cultural e nos alerta para cenários carregados de estereótipos, tão contra a interculturalidade que a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (2013-2020), recentemente aprovada em Conselho de Ministros, defende. Este primeiro plano nacional, dinamizada pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, visa a integração das comunidades ciganas, impulsionando políticas públicas nas áreas mais carenciadas: educação, habitação, saúde e emprego. A população cigana portuguesa, apesar de a variável “etnia” não integrar os censos, está estimada entre os 40 e 60 mil indivíduos. Serão mais.
Também por isso é importante que o sentimento de desconfiança mútua entre a comunidade maioritária e esta minoria étnica, a maior da Europa, se vá esbatendo idealmente até à extinção. Sabemos que o processo é lento, mas basilar para a coesão social. E porque não começar por coisas simples, tipo, se comeres a sopa toda, chamo os ciganos para te contarem uma história de arrasar! Absolutamente inesquecível! Com sorte, até pode ser que chame o Bruno Gonçalves e o “Ciganinho Chico”.
Não imagina quem são? Procure informar-se. É um primeiro passo!
Nota: informações sobre os livros mencionados podem ser solicitadas através do email da EAPN Portugal: geral@eapn.pt.