Percorreu sem faltas, algo raro, o percurso entre o estatuto de objeto de consumo – e de desejo – dos adolescentes reunidos em torno da revista Salut Les Copains! e do chamado ié-ié francês e a condição de referência da canção francesa capaz de dispensar mais adjetivos. O disco de estreia foi publicado em 1962, o do adeus em 2018. É só fazer as contas… Este último foi como um filho tardio, porque há muito tempo tinha começado o calvário com um linfoma que a levou várias vezes a reivindicar – em vão – a eutanásia. A parisiense fez grande parte do seu caminho musical longe das modas de ocasião, construindo um património sólido, múltiplo, tocante e decisivo, padrão para tantos praticantes e ouvintes. Cantou Brassens e para ela escreveu Gainsbourg. Trabalhou com o omnipresente Benjamin Biolay, mas também com Étienne Daho e Thomas Dutronc, o seu único filho, também ele músico. Escreveu um livro-testemunho sobre a sua luta contra o cancro, um romance chamado L’Amour Fou e uma autobiografia notável, Le Désespoir des Singes… et Autres Bagatelles. Teve papéis de relevo em apenas três filmes, ganhou prémios da crítica e de popularidade. Foi visada em poemas de Bob Dylan e Manuel Vázquez Montalbán, referida em romances de Michel Houellebecq e Paul Guimard, directamente nomeada em canções de Renaud ou do britânico Bill Pritchard. Muito mais do que uma cantora, a história da música – a francesa, mas não só – não será rigorosa, nem tão sedutora, sem ela. “Como dizer-te adeus?” é a pergunta-título de uma das suas canções. A resposta é simples: continuando a ouvir a sua voz, doce e firme, e as suas cantigas, imensas e íntimas. Sempre que possível, sempre que for necessário. Ou seja, sempre.
*João Gobern
Jornalista e comentador. Desde 2015 realiza e apresenta, na Antena 1, o programa Bairro Latino, sobre música francesa, espanhola e italiana