O comunicado da PSP refere-se a Odair Moniz como “suspeito”, mas o texto não diz de que era suspeito o homem de 43 anos, cozinheiro de profissão, que morreu depois de ter sido alvejado pela polícia. Na primeira notícia sobre o caso, no site da CNN, conta-se que Odair era suspeito de furto de viatura, informação que não consta do comunicado. À VISÃO, Sílvia Silva, cunhada da vítima, garante que o carro em que Odair Moniz seguia quando foi parado pela polícia era dele.
“O carro era dele. Como é que vai roubar o próprio carro?”, pergunta Sílvia, ainda sem respostas para o que aconteceu na madrugada desta segunda-feira.
Odair Moniz era cozinheiro num restaurante em Lisboa, mas a cunhada diz que estava de baixa depois de ter sofrido queimaduras no trabalho. Por isso, não sabe o que estavam Odair e um amigo a fazer na Amadora, durante a madrugada.
Em comunicado, a PSP explica que “pelas 05h43, no Bairro Alto da Cova da Moura, procedeu à interceção de um indivíduo que momentos antes se havia colocado em fuga à Polícia”.
Odair não vivia na Cova da Moura, mas no Zambujal. Mas foi aí que acabou a perseguição que, segundo a PSP, começou minutos antes na Amadora. No texto, a PSP descreve o início da perseguição sem explicar o que terá feito Odair pôr-se em fuga.
“Minutos antes, na Avenida da República, na Amadora, o suspeito, ao visualizar uma viatura policial, encetou fuga para o interior do Bairro Alto da Cova da Moura, também, na Amadora. No interior do Bairro, o condutor entrou em despiste, abalroando viaturas estacionadas, tendo o veículo em fuga ficado imobilizado”, relata o Comando Distrital da PSP de Lisboa.
Sílvia Silva diz que o cunhado, que deixa dois filhos (um com 18 e outro com dois anos), “nunca tinha tido problemas com a polícia” antes e que “não era um homem violento”.
Segundo a PSP, Odair resistiu à detenção. “Na Rua Principal do referido bairro, quando os polícias procediam à abordagem do suspeito, o mesmo terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca, tendo um dos polícias, esgotados outros meios e esforços, recorrido à arma de fogo e atingido o suspeito”.
PSP diz que tudo vai ser apurado “em sede de inquérito criminal e disciplinar”
No mesmo comunicado, a PSP admite que tudo aconteceu “em circunstâncias a apurar em sede de inquérito criminal e disciplinar”.
Num vídeo feito por um morador da Cova da Moura a que a VISÃO teve acesso, é possível ver dois agentes da PSP à espera do socorro do INEM, junto ao corpo inanimado de Odair, deitado de barriga para cima. Ouve-se uma voz a insistir com os polícias para que percebam onde foi o tiro. Um dos agentes responde que “foi da cintura para baixo”. A voz diz que “na virilha é preocupante”. O agente diz que não foi na virilha e verifica o pulso da vítima. “Foi desnecessário”, vai dizendo uma das vozes. “Estava muito próximo”, diz alguém que terá testemunhado.
Várias pessoas vão passando pela rua. Aparecem mais polícias. Cercam o corpo, pedem aos transeuntes que não fiquem a olhar. “Tem muita classe trabalhadora agora”, explica a voz masculina que se ouve no vídeo.
“O suspeito, de 43 anos de idade, foi prontamente assistido no local e transportado para o Hospital São Francisco Xavier. Segundo informação da unidade hospitalar, o suspeito, lamentavelmente e apesar da pronta assistência médica, terá falecido pelas 06h20”, diz o comunicado da PSP.
“A polícia tem uma cultura de impunidade. É o morto que vai a julgamento na opinião pública”
Flávio Almada, do movimento Vida Justa, fala em “execução” para descrever o que aconteceu, dando voz ao que ouviu dos moradores da Cova da Moura com quem falou. Almada diz que incidentes como este não podem ser desligados da cultura criada nas chamadas zonas urbanas sensíveis, onde “se constrói uma narrativa de guerra”, com as autoridades a usarem equipamentos especiais para entrar nestes bairros periféricos.
“A polícia tem uma cultura de impunidade. É o morto que vai a julgamento na opinião pública”, lamenta Flávio Almada, que recorda o que aconteceu com Elson Sanches, um rapaz de 14 anos morto a tiro por um polícia na Quinta da Laje, em 2009. O agente acabou absolvido mas caiu por terra, durante o julgamento, a tese de que Elson estava armado.
“Pistola encontrada no chão não tinha impressões digitais do rapaz morto, que não usava luvas”, escreveu na altura o Correio da Manhã. Um dado que levou o Ministério Público a pedir a condenação do polícia que em janeiro de 2009 matou Elson Sanches, conhecido por Kuku, após uma perseguição policial. “Tendo em conta as circunstâncias em que tudo ocorreu, o arguido agiu em legítima defesa”, sentenciou o tribunal em dezembro de 2012, altura em que o agente estava já colocado no Seixal.
Vida Justa quer falar com ministra sobre “assédio e violência policial” nos bairros
Flávio Almada diz que ao longo das últimas décadas foram já vários os casos como este. “Todos os casos têm um padrão em que a vítima se torna culpada”, comenta, notando a narrativa sobre o carro em que Odair seguia e que, segundo a família do próprio, seria seu e não roubado.
O movimento Vida Justa, do qual faz parte, quer falar com a ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, sobre este tipo de casos.
“O Vida Justa exige uma investigação séria e isenta. Os moradores dos bairros precisam de paz e não de serem assassinados. Mantemos e reforçamos o pedido para sermos recebidos pela ministra da Administração Interna, para que se ponha cobro ao assédio e violência policial que sofrem as comunidades dos bairros”, lê-se num comunicado enviado à VISÃO.
“Sem justiça não há paz”, concluem.