A notícia foi publicada na manhã da passada terça-feira, 14, pela Rádio Renascença. O título do artigo informava que um “menino nepalês de nove anos” tinha sido “vítima de linchamento” numa escola de Lisboa. Os autores das agressões teriam sido cinco colegas, também menores de idade. As agressões teriam sido acompanhadas por insultos racistas e xenófobos, como “vai para a tua terra” ou “tu não és daqui”. O incidente teria sido filmado, e circulara em grupos do WhatsApp. A escola não tinha denunciado o caso. A família da criança decidira transferi-la para outro estabelecimento de ensino e, por medo, não apresentara queixa à polícia.
A gravidade do caso chamou a atenção. Nas horas seguintes, a comunicação social citou a notícia. E correu para saber mais pormenores, sem sucesso. A mãe da criança pedia anonimato. Como habitualmente, movimentos de extrema-direita começaram, nas redes sociais, uma campanha de contrainformação. O Governo entrou em campo. E o caso chegou às mãos das autoridades.
A VISÃO mostra o que se sabe, para já, sobre o caso.
A denúncia da CEPAC
O caso surgiu no âmbito de uma conversa telefónica entre o jornalista João Carlos Malta e Ana Mansoa, diretora executiva do Centro Padre Alves Correia (CEPAC), instituição de solidariedade social, com ligações à igreja. O contacto surgiu no âmbito do tema sobre “a perceção de organizações católicas em relação ao aumento do discurso de ódio”, na sequência do ataque racista no Porto, contra imigrantes magrebinos. A título de “exemplo”, Ana Mansoa contou o caso do “menino de nove anos nepalês”. “O filho de uma senhora acompanhada pelo CEPAC, que tem nove anos, e que é uma criança nepalesa, foi vítima de linchamento no contexto escolar por parte dos colegas. Foi filmado e divulgado nos grupos do WhatsApp das crianças”, afirmou a responsável.
Segundo Ana Mansoa, “o ataque foi protagonizado por cinco colegas da vítima, sendo que um dos agressores foi mais interventivo do que os outros. Um sexto elemento filmou as agressões para depois serem partilhados nas redes sociais”. A diretora executiva da CEPAC acrescentou ainda que a vítima ficou com “hematomas pelo corpo todo” e “feridas abertas”, que seriam “tratadas pela mãe”, pois a família teve “medo” e “quis evitar ir a um hospital ou centro de saúde”.
Ana Mansoa referiu que, enquanto era agredida, a criança foi insultada com expressões como “vai para a tua terra” ou “tu não és daqui”. A criança acabaria por sair da escola, que não terá denunciado o caso. Um dos agressores “foi suspenso durante três dias”, garantiu.
O Ministério da Educação entra em campo
Perante a gravidade da situação, o Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) colocou-se no terreno.
Logo no dia seguinte, quarta-feira, 15, o gabinete do ministro Fernando Alexandre divulgou, em resposta ao Público, que ” desconhece qualquer agressão a criança nepalesa”.
O MECI explicou que os serviços “contactaram a associação que denunciou o alegado episódio [a CEPAC], mas que esta, inicialmente, se tinha “recusado colaborar”. “Após insistência”, diz o ministério, foi possível apurar que a escola onde tudo se passou localiza-se no município da Amadora. O estabelecimento foi imediatamente contactado.
No mesmo comunicado, o MECI refere que a direção da escola informou que “não existe registo de qualquer situação semelhante à descrita pela notícia”, e que não tem nenhuma criança nepalesa daquela idade inscrita na instituição. Nenhum aluno foi suspenso ou alvo de outro castigo, no âmbito de um processo do género.
Na sequência do caso, a ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, anunciou o reforço do policiamento junto das escolas.
Comunicado da CEPAC: queixa nas autoridades
Ainda na tarde de quinta-feira, 15, a CEPAC publicou uma nota em que “informa que os factos foram disponibilizados às autoridades competentes, a quem caberá fazer o seguimento da situação”.
Na nota, a instituição volta a apelar “ao respeito pela privacidade da família e outras partes envolvidas, e em particular das vítimas do episódio sucedido”.
“Consideramos ser da maior importância uma maior sensibilização da sociedade portuguesa e um debate responsável e construtivo na opinião pública sobre estes fenómenos de violência, discriminação, racismo, xenofobia, alertando para a sua existência. É urgente, enquanto sociedade, trabalharmos juntos no combate a manifestações e comportamentos desta natureza, e na identificação de situações de risco”, lê-se no comunicado.
A CEPAC volta ainda a reforçar o seu foco estará “no acompanhamento a pessoas migrantes em situação de vulnerabilidade e exclusão social”, garantindo que vai continuar empenhada “na prevenção e na desconstrução de narrativas que incitam à violência dirigida a pessoas imigrantes, entre outros grupos estigmatizados”.
CPCJ ativada pela ministra da Segurança Social
O caso continuou a ser acompanhado nas horas seguintes. O comunicado do MECI “inundou” as redes sociais de dúvidas sobre os acontecimentos relatados. Como habitualmente, pessoas e movimentos associados à extrema-direita começaram uma campanha de contrainformação, declarando que “era tudo mentira”.
Na quinta-feira, 16, a Rádio Renascença destacou a reação ao caso da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. À margem de uma visita à Casa do Artista, Maria Rosário Ramalho declarou que o Governo acompanha esta denúncia “com muita preocupação”.
A ministra informou ainda que pediu à Comissão de Proteção de Menores e Jovens em Risco (CPCJ) que fizesse uma avaliação desta situação. “Estamos à espera do que vão dizer e avaliar a partir daí, mas temos uma grande preocupação. As crianças não podem ser agredidas. Não podem ser agredidas. Ponto”, afirmou aos jornalistas presentes.
PGR confirma inquérito. Mãe “não é nepalesa”
Ao final da tarde de quinta-feira, 16, o Observador confirmou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) “confirma a receção de uma denúncia relacionada com a matéria, esclarecendo-se que dela não consta informação relativa à nacionalidade da vítima”.
“Nessa denúncia indica-se apenas a nacionalidade da mãe, a qual não é nepalesa”, refere na resposta enviada ao Observador, acrescentando que “por não ser até agora conhecida a concreta idade dos autores da factualidade denunciada, foram instaurados um inquérito tutelar educativo e um inquérito-crime”.
A PGR detalha que “o inquérito tutelar educativo (ITE) encontra-se previsto na Lei Tutelar Educativa, quando estão em causa factos qualificados pela lei como crime, praticados por menor(es) entre os 12 e os 16 anos”, concluindo que “poderá posteriormente vir a justificar-se a instauração de processo de promoção e proteção (caso algum/alguns do(s) eventual(is) agressor(es), à data dos factos, não tivesse(m) completado 12 anos)”.
Ana Mansoa em silêncio. CEPAC vai colaborar na investigação
Durante todo o dia de quinta-feira, 16, a VISÃO tentou chegar à fala com Ana Mansoa, mas a diretora executiva da CEPAC não retornou nenhuma das tentativas de contacto. Na sede da instituição, na zona de São Bento, funcionários confirmaram “desconhecer” o paradeiro da responsável.
Em nova nota publicada no site da CEPAC, a instituição recordou que, no dia 12 de maio, Ana Mansoa manteve uma conversa “que se teve de boa-fé” com o jornalista da Rádio Renascença, e que, no decorrer daquela conversa, referiu “como exemplo, de memória, o caso” do menino nepalês de nove anos agredido.
“Foi transmitida às entidades competentes informação precisa para apuramento dos factos alegados. É nossa preocupação preservar o anonimato público da criança envolvida e sua família. Estamos totalmente disponíveis para colaborar, mas consideramos que a exposição nos meios de comunicação social apenas prejudicará o bem-estar da criança”, lê-se na nota.
A fechar, o CEPAC afirmou que “não prestará mais declarações sobre o caso aos meios de comunicação social” e apelou “ao respeito pela privacidade da criança e sua família e demais partes envolvidas”.