Agora, chegou a nossa vez. Chegou a vez de os jornalistas fazerem greve. Contra, como alerta o Sindicato dos Jornalistas, a “precariedade, os salários baixos, a sobrecarga laboral, os conflitos éticos, a degradação da qualidade do trabalho e a dificuldade de conciliação entre a vida profissional e a familiar”, os jornalistas vão fechar os computadores nesta quinta-feira, 14 de março.
Recorde-se que é apenas a segunda vez na nossa história democrática que os jornalistas fazem uma greve geral. A primeira aconteceu em agosto de 1983, há mais de 40 anos, portanto.
Mandatado pela moção aprovada no Congresso de Jornalistas, em janeiro, o sindicato da classe marcou a data. Nesse documento, ratificado por unanimidade, lê-se que “há anos que tentam partir a espinha do jornalismo e dos jornalistas”, que o “descalabro e o nível de destruição a que assistimos nos últimos meses pôs a nu, e da pior forma, a gravidade das condições de exercício do jornalismo em Portugal. Mas não começou com a destruição do Global Media Group. A crise está entranhada em todas as redações.”
Quebrou-se o tabu da greve entre os jornalistas. “Tivemos sempre algum pudor em avançar para uma paralisação, mas está na altura de dizer basta”, diz Luís Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas. “Há uma degradação das condições de trabalho nas redações que, ainda por cima, têm cada vez menos pessoas.”
Na terça-feira, dia 12, o Global Media Group anunciou o processo de despedimento coletivo de 20 pessoas, incluindo a direção do Diário de Notícias. O “processo de reestruturação interna” é fundamentado “na complicadíssima situação financeira”, referiu a empresa em comunicado.
Nos últimos sete anos, 436 jornalistas deixaram a profissão. Se recuarmos mais um pouco, Portugal perdeu 1 218 jornalistas entre 2007 e 2014, período em que o número de carteiras profissionais baixou de 6 839 para 5 621, um decréscimo de 17,8%. “Somos essenciais para a democracia e temos de nos fazer ouvir”, nota Luís Simões. Os salários “que não crescem nem ao nível da inflação”, adianta, com “perdas de 40% do nosso rendimento em 20 anos”, com grande “pressão para a hiperprodutividade” e “níveis de burnout assustadores” levaram os jornalistas a dar um murro na mesa.
“Não se pode ganhar tão mal numa profissão” com as exigências do jornalismo, “temos muitos salários de mil euros e menos do que isso, sendo que a maior parte mora nos grandes centros urbanos”, onde os custos da habitação são muito altos, aponta ainda o presidente do sindicato.
“Sofrimento ético profundo”
Está “criada a tempestade perfeita no jornalismo”, comenta Miguel Paisana, investigador do OberCom – Observatório da Comunicação. O “modelo de negócio” está “em falência” e a alteração de “dinâmicas, fruto da entrada do digital”, criou um contexto “complexo”.
A paisagem “digital”, acrescenta, está dominada “pelas redes sociais e empresas de conteúdos” que aproveitam o trabalho feito pelos jornalistas. “Há uma saturação de informação vinda de todos os lados”, embora “não veja que haja um cansaço com o jornalismo”. Pelo contrário, “se não tratarmos bem os jornalistas haverá consequências para a sociedade”.
Esta greve “não é simplesmente uma queixa”, qualifica Roberto della Santa, cientista social e investigador do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho, mas “uma situação de absoluto desespero”. “Como é que alguém pode estar a confrontar grandes grupos económicos ou sociais para fazer as suas peças, se nem o seu fim do mês [salário] tem como assegurado?”, pergunta.
O investigador cocoordenou, em 2022, o Inquérito Nacional às Condições de Vida e de Trabalho dos Jornalistas em Portugal, promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa, a Casa da Imprensa e o Sindicato dos Jornalistas e realizado pela Universidade Nova de Lisboa.
As 866 respostas recebidas, no âmbito desse inquérito, revelam um cenário avassalador. Quase metade (48%) dos jornalistas portugueses tem níveis elevados de esgotamento e cerca de 18% apresentam valores de exaustão emocional que variam entre os níveis muito elevado e extremamente elevado. Cerca de 50% trabalham mais de 40 horas por semana e quase metade trabalha mais de dez horas semanais em períodos noturnos. Em relação à vida familiar, um terço dos inquiridos considerou que há um “desequilíbrio ruinoso” entre a vida pessoal e a profissional. Além disso, a média de filhos é de 1,04, abaixo da média nacional de 1,38 filhos por mulher. Della Santa realça que as “questões” mais importantes têm que ver com a “precariedade” e os “níveis de esgotamento”, mas, salienta também o tema do sentido de responsabilidade. “Existe um sofrimento ético profundo que provém da importância social da profissão. Surgem conflitos ou, pelo menos, potenciais contradições, entre aquilo que os jornalistas valorizam ou consideram um trabalho bem feito e aquilo que algumas direções determinam como prioritário e fundamental.”
No relatório do trabalho, elencam-se, igualmente, os motivos que levam o jornalismo a ser uma profissão geradora de stresse. A “corrida contra o tempo” e a “competição” entre os próprios jornalistas são condições “intrínsecas” da profissão. A necessidade permanente de se adaptarem a novas tecnologias também. Por outro lado, o “impacto psicológico” de relatar eventos em que os direitos humanos de outros (e também dos jornalistas) ou a “sua própria sobrevivência” podem estar em causa não deve ser “subestimado”. Os jornalistas “são expostos a um sem-número de acontecimentos” e processos, desde acidentes rodoviários até violentas manifestações políticas e sociais, roubos e assassínios, “situações que envolvem abuso de crianças ou idosos” e acontecimentos críticos, como desastres naturais com grandes perdas humanas. Os “riscos físicos, emocionais e psicológicos” estão em jogo em muitas dimensões. As exigências laborais a que os jornalistas estão sujeitos “são contínuas e o seu stresse ocupacional é intenso”.
Conteúdos roubados
O dia de greve será, também, assinalado por uma concentração de jornalistas em Coimbra, na Praça 8 de Maio (9h), no Porto, na Praça Humberto Delgado (12h), em Ponta Delgada, no Jardim Antero de Quental (12h), e em Lisboa, no Largo de Camões (18h), em que “também se faz um apelo à sociedade civil para estar presente”, diz Luís Simões.
Nem todos concordam com a paralisação ou com as suas premissas. “Greve contra o quê? Contra os patrões que não têm dinheiro para pagar mais? Penso que é totalmente desajustada na atual conjuntura”, afirma Octávio Ribeiro, jornalista e administrador da empresa proprietária do Correio da Manhã. Propõe antes que se “olhe para a origem dos riscos sérios”, como o “problema da cadeia de produção, impressão e distribuição da imprensa em papel”, notando que “já há concelhos onde não chegam jornais”. E ainda para o “maior de todos os riscos” que é a “canibalização que as grandes plataformas fazem dos conteúdos jornalísticos sem nada pagar por isso”.
O jornal norte-americano The New York Times, por exemplo, anunciou recentemente que iria pôr em tribunal a empresa que desenvolveu o ChatGPT (Inteligência Artificial) por terem sido usadas notícias suas no treino do chatbot sem que fossem pagos direitos de autor. “É uma luta de David contra Golias. O poder das plataformas é muito maior do que o dos média”, assinala Miguel Paisana.
O jornalismo atravessa um período conturbado, disso não restam dúvidas. A migração da imprensa escrita para o online não teve os resultados esperados. O primeiro problema, dizem os analistas, foi dar de borla a informação produzida. Construíram-se audiências que se desvaneceram quando se quis cobrar pelos conteúdos. “Grande parte dos jornais baixou as audiências na versão impressa, mas não teve uma subida significativa no digital”, recorda Arons de Carvalho, professor universitário e ex-secretário de Estado da Comunicação Social. No entanto, diz, “se não fosse a visibilidade dada pelo online, muitos jornais estariam a perder ainda mais”.
Octávio Ribeiro pede que o Estado “olhe para a situação da imprensa escrita” e que crie soluções para financiar a comunicação social. Para o jornalista, a greve devia ter “sido decidida por votação em todas as redações”. Luís Simões contrapõe que o “exercício do jornalismo se degradou de forma incrível”, há uma “exigência máxima para salários mínimos e isso não pode continuar”. Por isso, hoje, dia 14, os jornalistas estão em greve.
Retrato do jornalista
Qual o perfil dos profissionais portugueses
5 274
Titulares de Carteira Profissional
3 096 são homens (58%) e 2 178 são mulheres (42%)
45,5%
Percentagem de solteiros
39,4% são casados ou vivem em união de facto
3 552
Formação superior
67,3% dos jornalistas têm curso superior (licenciatura ou mestrado)
68,6%
Ligação profissional
3 623 (68,6%) trabalham por conta de outreme 1 078 em regime livre
2 057
Órgãosde informação
2 057 (39%) estão na imprensa escrita, 973 (18,4%) na televisão e 500 (9,4%) na rádio
€903 a €2 051
Rendimento
A Projeção Salarial de Referência, inscrita no Contrato Coletivo de Trabalho dos Jornalistas, varia entre €903 brutos para entrada na profissão e €2 051 para quem tem 40-42 anos de trabalho