Um homem coberto de sangue, caído no chão da casa de banho de uma pequena pensão lisboeta. Uma mulher em pânico, a pedir socorro, que a ajudassem. O amante tinha apontado a pistola na direção do peito, mas o tiro saíra-lhe sem jeito. Se o objetivo era matar-se, falhara.
“Parece uma coisa inventada”, dirá Maria Teresa Horta sobre este incidente que acabou a virar-lhe a vida do avesso, mas aconteceu mesmo, confidenciou-lhe muitos anos mais tarde uma amiga da mãe, com pormenores.
“Toda a sua história da infância e da adolescência é um romance – aconteceu-lhe tudo”, nota a jornalista e escritora Patrícia Reis, autora da biografia A Desobediente (ed. Contraponto, €20,90), quase 400 páginas escritas ao fim de três anos de pesquisa e de dezenas de entrevistas com a biografada, familiares e amigos.
Naquele dia de outubro de 1946, Teresa tem 9 anos e não imagina o que se passa nos bastidores do casamento dos pais. Não sabe que a mãe se deixara seduzir por um romance intenso e que a sua decisão de terminar aquela relação adúltera iria provocar um ciclone capaz de derrubar a família.
Na pensão, alguém chama um táxi, que Carlota manda seguir para o Hospital de Santa Marta, onde o marido, médico, trabalha. Ironicamente, será ele a salvar o amante da mulher, escreve a biógrafa. “Nessa noite, Teresinha ouviu os pais discutirem. ‘Não vais ficar com as crianças!’, terá gritado Jorge Horta. À criança, a casa pareceu estremecer.”
Teresa vê a mãe fazer a mala, sem lhe dirigir um olhar, sem uma palavra, mas não prevê estar prestes a ser abandonada. Na manhã seguinte, Carlota leva-a ao Colégio Sagrado Coração de Maria e despede-se dela normalmente.
À tarde, é o pai que vai buscá-la, dizendo-lhe que a mãe se encontra doente e em casa de uns amigos. A miúda intui que essa não é a verdade quando ele insiste em retirar a sua fotografia da mesa de cabeceira.
Carlota tinha mesmo abandonado o marido e as três filhas, as duas mais novas, ‘Belinha’ e ‘Chilinha’, com apenas 5 e 4 anos. E esse abandono há de marcar Teresa, para sempre convencida de que a mãe nunca esteve interessada naquele que veio a ser o seu “primeiro padrasto fascista”, José Pinto de Aguiar, então diretor do Instituto Português de Assistência aos Inválidos.
“A minha mãe mudou as nossas vidas por causa deste absurdo-nada. Era uma expressão que ela usava: um absurdo-nada. Destruiu a minha vida”, dirá.
A sensação de ter sido abandonada nunca a larga. Décadas depois, calha encontrar uns amigos da família que lhe perguntam por todos e sai-se com um comentário desajustado, como se ainda fosse uma criança e os pais tivessem decidido separar-se pouco tempo antes.
“O retrato do abandono é escrito e reescrito em vários momentos da sua vida de escritora e poetisa”, lembra Patrícia Reis, avançando como exemplo o conto Eclipse, um dos mais de 30 do livro Meninas, publicado em dezembro de 2014. Nele, lê-se que, no dia em que a mãe de Laura sai de casa, deixando uma “marca leve do seu longo corpo de porcelana branca” no lençol de baixo da cama por fazer, “houve um ciclone que derrubou a vida de todos”.
Na verdade, a carência vinha de trás, confirma-se às primeiras páginas desta biografia, que se lê com prazer.
A biógrafa apanha-nos na curva logo com um episódio de quando Teresa tinha 4 anos, talvez um pouco mais, os suficientes para nunca mais se esquecer dele. É, afinal, um momento único na sua relação umbilical com a mãe, em que lhe pressente a maldade.
Num dia quente, estão as três filhas na penumbra, ao abrigo do calor, Carlota caminha em direção ao carrinho de “Chilinha”, ainda um bebé de meses, levanta-lhe a cabeça, retira a almofada minúscula e pousa-a sobre a sua cara. Cheirando o perigo, a filha mais velha levanta-se, rápida. “O que é que tu queres, Teresinha…?”, pergunta-lhe a mãe. E logo pega nela, as mãos debaixo das axilas, vai até à janela e pendura-a do lado de fora.
A avó sufragista
O episódio aparece plasmado no conto Abismo, embora sem os detalhes que ficamos agora a conhecer. Em 2014, já cá não estavam os pais, mas ainda assim Teresa deixava por contar que a mãe lhe disse “Sai da minha vida!” quando a pousou no chão, desistindo de a matar a ela, tal como desistira de matar a irmã.
Mais tarde, contará o que se passou à avó Camila, “uma mulher especial, feminista, uma alma capaz de guardar um segredo”, sublinha Patrícia Reis. Não lhe conta que a mãe queria matá-las, assim com todas as letras. Diz-lhe que Carlota “foi assaltada pelo susto da existência, pelo desvario”, que “cegou por instantes, queria tudo menos ser mãe”, escreve a biógrafa, e nós sabemos que está a citar Maria Teresa Horta já adulta.
Patrícia Reis conheceu a poetisa e escritora há mais de duas décadas, numa edição do Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. Foi um encontro fácil. “Entendemo-nos”, diz, apesar da diferença de idades. “Percebo o motim constante, o querer mais, o querer melhor”, justifica.
Nos últimos anos, Teresa confiou-lhe a vida, sabendo que a sua intimidade estaria a salvo, sobretudo a bolha do casamento de mais de meio século com o jornalista Luís de Barros (1941-2019), a paixão da sua vida. Gravaram quase 100 horas de entrevistas e falam-se ao telefone praticamente todos os dias.
Na manhã em que a entrevisto para estas páginas, somos interrompidas por um telefonema de Teresinha, que é como a biógrafa e amiga lhe chama. Patrícia Reis tinha passado lá por casa cedo, a entregar-lhe um exemplar da biografia, e ela vinha agradecer-lhe novamente o cuidado, desta vez com um poema acabado de escrever. “Mas é uma porcaria”, diz, do outro lado da linha, e as duas riem-se juntas.
“Hoje, fala-me cada vez mais na infância. É o seu território preferido, e conta as coisas sempre da mesma maneira”, confidencia a biógrafa. “Apesar de ser fundador nela, acho que regressa à infância porque é ali que percebe que a sua vida vai ser diferente da vida das outras meninas. Porque está nos anos 40, tem 9 anos e a sua mãe sai de casa e vai viver com outro homem.”
Três dias depois de Carlota deixar a casa de família, a avó Camila morre com um ataque de coração. É um segundo abandono, que lhe traz um trauma acrescido.
Naquela noite, Teresa não consegue dormir e Camila deita-se ao seu lado, na cama alentejana, pintada, igual às das outras duas netas mais novas. Quando a miúda acorda, sente que a mão da avó está gelada. Perdia, assim, a sua aliada lá em casa.
Camila era uma mulher à frente do seu tempo. Tinha sido a primeira rapariga a frequentar o liceu em Portugal. Enviuvara muito cedo, era Jorge ainda um menino de 4 anos. Começara, então, a fazer costura para fora, até uma amiga se lembrar de a propor para fazer traduções de francês, para o Diário de Lisboa.
Era essa a famosa avó que a levava a ouvir as sufragistas, as feministas da época, conta Teresa: “Lembro-me de o meu pai dizer: ‘Essas mulheres são doidas, agora querem votar para quê? Isto não é normal’. E a minha avó dizia: ‘Jorge, tornas a dizer isso, eu saio da mesa.’” À neta, Camila explicava que aquela luta era para mulheres como Teresa terem outra vida.
A avó paterna sabe-a inteligente. Ensinara-a a ler logo aos 4 anos, se bem que só umas palavras soltas, convencendo assim o filho a contratar uma professora particular.
Em 1942, aos 5 anos, já Teresa andava a ler As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis, quando pergunta à mãe se não existem mulheres escritoras, porque na biblioteca do pai só existe um único livro de poesia, Os Lusíadas, com uma letra elegante mas ininteligível. Ouve um “sim, claro!” e corre a pedir mais poemas à avó.
É, então, Camila quem lhe fala pela primeira vez da poetisa Leonor de Almeida Portugal de Lorena, marquesa de Alorna, uma sua antepassada do lado da mãe, que ela via num quadro exposto no palácio de Benfica, o conhecido Palácio Fronteira, onde tantas vezes brincava com os primos.
O processo das “Três Marias”
As autoras de Novas Cartas Portuguesas foram acusadas de escrever um livro “insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”. O julgamento seria suspenso pelo 25 de Abril
Quando Maria Velho da Costa a vê, com pontos na cabeça e cheia de nódoas negras no corpo, comenta: “Se uma mulher sozinha faz esta balbúrdia toda, esta confusão, o que aconteceria se fossem três mulheres? O que seria se fôssemos três a escrever um livro?”
Três dias antes, Maria Teresa Horta tinha sido espancada com violência na rua, ainda hoje pensa que por legionários ofendidos com o seu livro de poesia Minha Senhora de Mim, publicado em abril de 1971 e logo mandado apreender pela PIDE, por falar do corpo, do desejo e da sexualidade da mulher. “Isto é para aprenderes a não escrever como escreves”, disseram-lhe os dois homens, entre muitos murros e tabefes.
Maria Velho da Costa estava a pensar em Maria Isabel Barreno, que já as esperava no restaurante 13, no Bairro Alto, em Lisboa, onde almoçavam juntas todas as semanas. A escritora esquiva-se, porque começara finalmente a escrever um novo livro, A Morte da Mãe, mas na semana seguinte surpreende-as ao tirar da carteira o primeiro texto.
As três decidem, então, partir do universo das cinco cartas de amor de Mariana Alcoforado, uma jovem freira enclausurada no convento de Beja, dirigidas a um oficial francês e publicadas anonimamente por Claude Barbin, em 1669, misturando diários, poesia, ensaios, ficção. E assim começa o processo de escrita de Novas Cartas Portuguesas, a seis mãos, em máquinas de escrever com folhas de papel químico.
O processo obriga a longas sessões de escrita e reescrita, quase sempre em casa de Maria Teresa Horta, porque ela não tem com quem deixar o filho. O seu marido, quando chega mais cedo a casa, diz: “Ah, ainda estão aqui? Qual é o tabaco que querem que vos leve à prisão?” Luís de Barros sabe que o livro vai espelhar os receios, as denúncias, as críticas ao regime, além de expressar uma dimensão erótica, sexual, “que estava vedada às mulheres”, lembra Patrícia Reis.
Quando dão o livro por pronto, “ao fim de nove meses de gestação”, notará Maria Teresa Horta, mostram o manuscrito a três editores: Pedro Tamen (então na Moraes), Lyon de Castro (dono das Publicações Europa-América) e Natália Correia (que substituíra José Saramago na direção literária dos Estúdios Cor, propriedade de Romeu Melo).
A poetisa, que em 1970 fora condenada por ofensa ao “pudor geral”, por causa da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, diz-lhes “Eu quero” e, aos receios de Maria Teresa Horta, terá respondido: “Paciência, estamos no fascismo. Perder o emprego é o menos.”
O livro acaba por ser impresso quase às escondidas, porque a administração dos Estúdios Cor exigira alguns cortes e alterações que Natália Correia finge acatar. A editora nunca deixa as autoras reunirem com ninguém e, na tipografia, arranja um aliado que vai imprimindo tudo tal como havia sido escrito originalmente.
A obra é publicada em abril de 1972 e mandada apreender três dias depois. “Algumas passagens são francamente chocantes por imorais, constituindo uma ofensa aos costumes e à moral vigente no País”, lê-se num relatório da PIDE, datado de 26 de maio, que proíbe a sua circulação e determina o envio à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime.
Duas semanas antes, Fernando Assis Pacheco, na coluna “Prontuário das Letras”, no jornal República, assinalara a edição de Novas Cartas, “depois de várias negaças da concorrência”, preconizando: “Se nenhum preconceito se intrometer com a circulação, poderá vir a tratar-se de um êxito livreiro de tomo.”
O jornalista e poeta (e senhor meu pai) aconselhava “a ler, reler, meditar ‘et pour cause’” e chamava-lhe “um ato de extrema coragem no país das Pimpinelas, de bolso”. Sabendo, claro, da apreensão de grande parte dos dois mil exemplares impressos, terminava escrevendo: “E as Pimpinelas e outros intrometeram-se, o preconceito vingou.”
O processo avança, com o regime a tentar não politizar a acusação. Chamadas à Judiciária, as autoras são encaminhadas para uma sala onde está um grupo de prostitutas, a aguardar interrogatório, e informadas de que vão ser ouvidas por um inspetor com ligação aos “costumes”.
Desde o início, as “Três Marias”, como se tornam rapidamente conhecidas, recusam revelar a autoria individual dos textos. Maria Teresa Horta é especialmente pressionada a admitir que escreveu “as partes piores”. O inspetor chega mesmo a dizer-lhe: “Nós sabemos que foi a senhora – deixamos as outras em paz. Não está a ser amiga das suas amigas.”
No Tribunal da Boa-Hora, Natália Correia chama a si a responsabilidade da publicação do livro, afirmando inclusive ter enganado os donos da editora, mas o juiz lembra que o processo é contra quem o escreveu. Muitos escritores portugueses começam a manifestar-se e a voluntariar-se para serem testemunhas abonatórias.
Estamos em 1973, em plena Primavera Marcelista, mas os ventos de mudança afinal sopram fracos, sabe-se dentro e fora do País. Num artigo sobre os desenvolvimentos dos movimentos feministas, a revista norte-americana TIME refere que os intelectuais portugueses protestaram contra a proibição dos livros e conta que, numa manifestação frente ao consulado de Portugal em Boston, uma mulher disse: “Vocês estão a meter-se na vida das Três Marias, e é por isso que estamos todos aqui.”
Pouco depois, Maria Teresa Horta escreve à escritora feminista francesa Christiane Rochefort, que batalha pela tradução de Novas Cartas. Uma onda de solidariedade varre, então, a Europa e os Estados Unidos da América.
A 1 de março de 1974, Maria Lamas, já com 80 anos, faz questão de testemunhar no tribunal. Maria Teresa Horta comove-se com o apoio da escritora e jornalista, grande defensora dos direitos das mulheres, que privara com a sua avó paterna, Camila.
O que se passa na Boa-Hora mostra que o regime está a cair de podre. Os incidentes e adiamentos são tantos que o julgamento acaba suspenso, pelo 25 de Abril.
Já adulta, Maria Teresa Horta há de dedicar uma dúzia de anos ao romance As Luzes de Leonor – A marquesa de Alorna, uma sedutora de anjos, poetas e heróis, publicado em 2011. Leonor deixara milhares de escritos, um tesouro que estava guardado na cave do palácio. A escritora irá ficcionar parte da vida desta sua “avó poetisa”, como lhe chama, misturando-a com a sua própria; por isso, escreve insistentemente sobre os olhos azul-cobalto, como os seus, quando Leonor os tinha castanhos.
Carlota estava ligada à Casa de Alorna e Fronteira. Era filha ilegítima de Carlos Maria Mascarenhas e neta do 9º marquês da Fronteira, 10º conde da Torre, representante do título do conde de Coculim, 7º marquês de Alorna, 11º conde de Assumar. Maria Teresa Horta costuma contar de memória a história de amor dos seus pais, tantas vezes a ouviu repetir: “O meu avô materno conheceu a minha avó numa casa onde as mulheres iam para fazer abortos. Parece coisa de filme, mas foi assim. A minha avó Ilda estava ali, era uma mulher de má vida. Morena, com uns olhos verdes muito belos. Apaixonaram-se.”
Carlos passa, então, a dividir-se entre a casa do seu pai e a casa de Ilda, com quem terá três filhos, João, Carlos e Carlota. Quando a filha mais nova está com 3 anos, não se sabe se por pressão familiar se por ter-se esfumado a paixão, Carlos abandona Ilda e casa-se com uma prima, Lucília. Os filhos bastardos vão morar com eles, convencidos de que a mãe morrera.
Teresa nunca ouvirá a mãe falar sobre a sua infância. Saberá que foi enviada para fora, para estudar num colégio interno, e que só descobre que Ilda está, afinal, viva quando ela própria já é uma mulher casada e mãe de filhas. Nessa altura, as duas reencontraram-se, sob o olhar de Teresa. “Apaixonaram-se uma pela outra. Foi muito bonito de ver”, contou à biógrafa.
Ao longo da vida, a escritora irá admitir que sempre sentiu um amor fatal pela mãe, amor que cedo se transforma em proteção. “Teresa defendeu-a sempre, era um amor incondicional”, diz Patrícia Reis, lembrando um episódio que ilustra bem essa cumplicidade. Aconteceu pouco depois de o avô Carlos Mascarenhas convencer Jorge Horta de que um homem sozinho não podia criar três meninas tão pequenas. Os quatro foram então morar com ele, a mulher e os filhos, irmãos de Carlota, na Quinta da Granja, uma grande casa apalaçada em A-dos-Cãos, fora de portas, já em Loures.
Teresa passa a frequentar uma escola só com rapazes, onde faz o exame da 3ª e da 4ª classes. Passeia-se pela quinta, ganha um amigo, o cavalo Malhadinhas, mas não são tempos felizes. Faz-lhe falta a avó Camila para lhe explicar as coisas de todos os dias – porque o avô Carlos entra mudo e sai calado – e até a companhia do pai – que gasta a maior parte do tempo em Lisboa, no Hospital de Santa Marta, e repete muitas vezes “esta menina é estranha”.
Mas sofre sobretudo com a ausência da mãe, cujo nome nem sequer se pode pronunciar. As pessoas à volta dos Mascarenhas comentavam o adultério de Carlota e terão dito ao próprio Carlos: “Essa sua filha é uma maluca.”
Um dia, a filha de uma das criadas, da sua idade, vem entregar-lhe uma carta que traz escrito no remetente “Carlota de Mascarenhas”, e Teresa fica em choque. “Tu já és grande, diz às tuas irmãs o quanto gosto delas. Já estou em tribunal a lutar por vocês, para que venham viver comigo”, lê, antes de correr a enterrá-la no jardim.
Os papéis de ‘Che’
Quando, mais tarde, lhe perguntam pela carta, a menina mantém-se firme. “Qual carta?”, questiona. “Saiu a correr e foi desenterrá-la”, escreve Patrícia Reis, a quem a escritora contou: “Rasguei a carta e comi-a. Engoli a minha mãe.”
As saudades da mãe são tantas que Teresa imagina-a em cada canto da quinta do avô. Até que, um ano e meio depois de sair de casa, Carlota consegue finalmente que o tribunal decrete o seu direito a estar com as filhas. As quatro passam a encontrar-se durante uma hora e meia, aos sábados, no palacete de uns tios Mascarenhas.
Teresa diz que começou a ser feminista por causa da luta da mãe, que via chegar muitas vezes num estado lastimável. “As mulheres pagavam caro a liberdade, foi a conclusão da menina.”
Quando ambos os pais voltam a casar, Carlota com José Pinto de Aguiar e Jorge com uma aluna da Faculdade de Medicina, Maria Eugénia Nunes, a futura escritora tem 12 anos e é considerada uma adolescente difícil. Tão difícil que o pai decide que o melhor será ela passar a viver a tempo inteiro com a mãe.
É uma segunda rejeição, um segundo abandono, que lhe deixa uma cicatriz para a vida. “Deixei de saber quem era. Pensei que era o fim da minha vida”, recorda.
Não foi, como se viu. O novo marido de Carlota tinha fotografias de Salazar pela casa, uma arca cheia de volumes de índole fascista e, ao lado dela, uma espécie de boneco, uma caricatura de Estaline, sempre virado para a parede, de castigo. Teresa dirá que foi um bom padrasto.
Nessa altura, frequenta o Liceu Filipa de Lencastre, onde começa a sua atividade política “por um absoluto acaso”, conta Patrícia Reis: “A Teresa estava a sair do Filipa quando um rapaz, que parecia o Che Guevara, lindíssimo, lhe dá uns papéis clandestinos, por causa de uma manifestação do 1º de Maio. Os papéis não eram para ela, eram para uma colega, mas ela distribuiu-os todos, nas caixas de correio ali à volta.”
Um mês depois, uma colega mais velha questiona-a, discretamente, pelo encontro com o tal rapaz e pelo paradeiro de “uns papéis”. E, ao saber que foi tudo distribuído, pergunta-lhe se quer continuar.
Teresa não hesita na resposta e começa a participar na luta pela liberdade. “A fazer aquilo que considero que tenho de fazer, doa a quem doer e doa-me a mim também”, dirá numa entrevista à revista Notícias Magazine, por ocasião da publicação de Meninas.
Para Jorge Horta filho, irmão de Teresa (do lado do pai, ela tem cinco meios-irmãos: Rosário, Jorge, Rui, Miguel e José Augusto), a sua paixão pela liberdade talvez se deva à conjugação da irreverência da mãe com a exigência extrema do pai. “A Teresa teve a sorte de ter uma mãe extraordinária, mas difícil, e um pai igualmente difícil: isso é o que cria os génios”, disse à biógrafa. “Há um terreno que pode estar preparado, abonado, e depois acontecem estas misturas e aparecem coisas como a Teresa.”
A própria diz que a primeira coisa que a define é ser lutadora pela liberdade, e que é aí que se insere o feminismo. E, ainda, ou acima de tudo, que a sua grande qualidade, desde pequenina, é ser desobediente. “Quando me proíbem, incandesço. É qualquer coisa que só sei explicar assim, porque é de tal maneira luzente dentro de mim. Se me dão uma ordem, tenho muita dificuldade em não fazer exatamente o contrário, ainda hoje, com esta idade”, avisou, na referida entrevista à Notícias Magazine. “Há outras maneiras de eu fazer o que as pessoas querem, mas nunca mandando-me fazer. Aí, incandesço e é terrível, porque de vez em quando custa-me caro.”
Foi o que lhe aconteceu em 1971, ao publicar o livro de poesia erótica Minha Senhora de Mim. A obra seria imediatamente apreendida pela PIDE e ela, espancada na rua, por dois homens, que lhe disseram: “É para aprenderes a não escrever como escreves.”
Se ela parou? Não, não parou, pelo contrário.
Pouco depois, estava a escrever Novas Cartas Portuguesas, com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa (ver caixa O processo das “Três Marias”). As outras duas escritoras também tinham publicado obras em que desafiavam os papéis sociais atribuídos às mulheres durante a ditadura, mas nenhuma passara antes pela experiência de escrever a seis mãos.
Para Teresa, a estreia foi um susto e logo um prazer. Seja poesia ou ficção, habituou-se a escrever à mão e só depois passa à máquina, e conforme o faz altera coisas. É um exercício solitário, foi sempre, a não ser durante a escrita de Novas Cartas, em que os textos de cada uma eram lidos em voz alta e debatidos. Uma comunhão que nunca tivera.
Essa altura foi, para ela, “uma bolha de encontro e de sentido de pertença, uma união inesperada que valorizou toda a vida”, sublinha a biógrafa, a quem a escritora disse que quando as três discutiam era como se fossem outras mulheres a nascer: “Era um estilhaçar de qualquer coisa e o começar de outra. Nove meses estivemos naquilo. Uma gestação.”
Entre a prosa e a poesia
São mais de 30 títulos publicados, numa vida literária que começou em 1960, com o livro de poesia Espelho Inicial
Minha Senhora de Mim (1971)
O seu nono livro de poesia foi publicado em abril e apreendido pela PIDE em junho. Snu Abecassis, a então proprietária da Dom Quixote, foi advertida de que a editora seria encerrada caso voltasse a publicar alguma obra de Maria Teresa Horta.
Poesia Reunida (2009)
Um volume de 850 páginas, que colige toda a sua obra poética e inclui o livro Feiticeiras, nunca editado em Portugal (uma cantata, musicada por António Chagas Rosa). Para Maria Teresa Horta, é um testemunho da sua vida para os outros.
As Luzes de Leonor (2011)
Um romance sobre a marquesa de Alorna, a “avó poetisa” que Maria Teresa Horta acompanha durante o chamado “século das luzes”. Uma e outra confundem-se aqui e ali, até quando a escritora repete que Leonor tinha olhos azuis.
Meninas (2014)
Mais de três dezenas de contos que nos trazem uma impressionante galeria de “meninas”, que são muitas delas a própria Maria Teresa Horta. Só foi capaz de os escrever após a morte dos pais, porque estava fora de questão magoá-los.
Mais de 50 anos depois, Teresa olha para a escrita de Novas Cartas como a maior e mais feliz aventura literária da sua vida. “Nós respeitávamos a liberdade de cada uma”, recordou recentemente, numa das muitas conversas que manteve com Patrícia Reis. “Foi uma construção incrível. Há textos ali maravilhosos. Uma coisa fora do vulgar.”
Naquele início dos anos 70, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa trabalham juntas no Instituto Nacional de Investigação Industrial. Teresa tem um emprego em que pode escrever todos os dias: é jornalista no jornal A Capital.
Começara na profissão aos 19 anos, estava ainda na Faculdade de Letras, no curso de Histórico-Filosóficas. “Um dia, fui à Baixa e fui direitinha ao República, onde expliquei que queria ser jornalista e perguntei se não me podiam ensinar”, contou numa entrevista recente à VISÃO História. “Eles ainda me perguntaram: ‘Então, e o seu pai não se importa?’ Ao que eu repliquei: ‘Não, ele vai ficar muito satisfeito.’”
Claro que Jorge Horta se importava (“Ele dizia que eu era doida, que não regulava bem da cabeça”), mas Teresa já estava emancipada e fora da sua alçada, casada com Raul Boaventura, um rapaz de esquerda, que tinha conhecido num cineclube.
Aprende a tarimba no República, onde ouve que deve atentar à pontuação. “Tal como estão, os seus textos são como uma mulher muito bem vestida, sem sapatos”, compara um sénior. Dali, segue para o Diário de Lisboa e só depois para A Capital.
‘Vê bem a fama que tu tens’
O jornalista Appio Sottomayor, que era responsável pela secção internacional deste último vespertino, lembra-se das discussões aguerridas entre as três amigas, durante a escrita de Novas Cartas. “Até se insultavam, mas acabava sempre tudo bem; iam almoçar muito animadas.”
No currículo, a sua camarada de redação trazia já nove livros de poesia publicados e a fama de escrever livremente sobre o corpo e a sexualidade da mulher. Sim, a fama, lembra a sua biógrafa, porque “Lisboa era uma cidade portátil, mínima”, onde todos se conheciam.
David Mourão-Ferreira, mais velho dez anos do que Teresa, cruzava-se todos os anos com Jorge Horta na praia do Vau, no Algarve. Um dia, ter-lhe-á dito: “Você é pai da Maria Teresa Horta, quem havia de dizer!” Jorge Horta comentou com a filha, zangado: “Vê bem a fama que tu tens.”
Por essa altura, Jorge Horta era já um médico reputado, vencedor de inúmeros prémios, bastonário da Ordem dos Médicos, “uma sumidade”, lembra Patrícia Reis. Antes da publicação do seu primeiro livro, Espelho Inicial, em 1960, dissera-lhe que era bom que tivesse em conta o apelido que usava. E durante o processo das “Três Marias”, deu-lhe a entender que era um desgosto todo o escândalo que ela provocava com o seu comportamento.
“Estamos a falar de uma miúda que, aos 15 anos, ao jantar, disse ‘Nunca mais vou à missa’”, conta a biógrafa. “Mas as pessoas acham que o pai tirava prazer do despique com ela, e que acabou por apreciar isso.”
Teresa casara, entretanto, com Luís de Barros, “um homem de uma beleza incrível e cuja presença a esmagou” mal o conheceu, tinha ela 25 anos e ele 21. Os dois são pais de Luís Jorge, um filho muito desejado e amado, que se lembra de uma mãe sempre presente. “Fez tudo o que as mães tradicionais faziam: ir à escola, às reuniões de turma, ver trabalhos de casa, cuidar de mim, tudo”, ouviu Patrícia Reis.
Teresa leva tão a sério o seu papel de mãe que começa a fazer psicanálise durante a adolescência do filho, porque sente que lhe responde como se também ela fosse ainda adolescente.
O 25 de Abril de 74 apanha-a com quase 37 anos (nasceu a 20 de maio de 1937). Não é nenhuma miúda e sabe o que falta fazer no País, nomeadamente em prol das mulheres. Em 1978, sentirá que ainda há um processo revolucionário em curso quando aceita ser chefe de redação da nova revista Mulheres, propriedade da editora Caminho, então do Partido Comunista, do qual foi militante durante 14 anos.
“É uma mulher com um sentido de paridade único”, sublinha a biógrafa. “Na pandemia, a sua maior preocupação eram as mulheres que estavam em casa a apanhar pancada dos maridos, as miúdas a serem maltratadas pelos pais. Nunca deixou de estar preocupada com o mundo, de ser jornalista.”
Também nunca deixou de ser sozinha, tal como sempre se sentiu desde pequena, acredita Patrícia Reis. Como aquele momento em que a mãe saiu porta fora, deixando-a – que ela irá corrigir no conto Lápis-lazúli, fazendo com que a leve consigo, presa na anca, ao colo, pela mão. Finalmente, “a mãe fantasiada não a abandonava”.
No final, é sempre salva pela poesia. Teresa encontra nas palavras uma forma de sobreviver e de se esconder.
Patrícia Reis
“A Teresa não encaixa, não é sossegada, não é servil”
Dezenas de conversas, mais de 100 horas de gravações e quase três anos depois, a escritora dá-nos a conhecer a mulher para lá da obra
Como foi fazer esta biografia?
Foi a coisa mais difícil que fiz na vida, pela responsabilidade, pela personalidade da Teresa e pela sua história. Mas foi também maravilhoso, porque ela é uma contadora de histórias, tem um grande sentido de humor, que é salvador, e ao mesmo tempo é a Teresinha que a mãe abandonou e o pai acha estranha. Não posso ser imparcial, gosto dela, devo-lhe muito como mulher e como jornalista.
Já era uma ativista do feminismo antes do 25 de Abril.
E foi prejudicada por isso, até na sua carreira literária. Teve a coragem de expressar a sua opinião, independentemente da crítica da Academia e até dos pares. O filho diz, com razão, que até 2000, altura em que a Ana Luísa Amaral começa a trabalhar Novas Cartas Portuguesas, ela era considerada uma chata. Nunca foi uma mulher consensual, porque nunca se calou. Começou por ser estudada pela Academia Brasileira, o que é ridículo; por outro lado, o Fernando Pessoa também.
Acha que gostou de ser biografada?
Divide-se entre mereço e não mereço. Também sou assim, a síndrome do impostor abunda entre as mulheres. Ela merece tudo, mas é opinativa e combativa, e alimenta-se do conflito, dá-lhe gás. No outro dia, disse-me: “A Agustina dizia-me: ‘Aprende, Teresa, aprende!’, mas eu, se calhar, ainda não aprendi.”
Conhecem-se há mais de 20 anos. Teve surpresas?
A maior, para mim, foi quando, um dia, ao fim de dois anos, me disse: “Se calhar, é melhor não fazermos isto.” A Teresa estava sozinha em pandemia, com demasiado tempo para pensar, e pensou que podia melindrar A ou B. Mas o meu filho Henrique, que andava a passar as gravações, sempre disse: “Vai mudar de ideias.” Se um rapaz com 24 anos se interessa pela Teresa, é sinal de que a sua obra é um tecido vivo, vai ficar. O que esta mulher fez é um percurso pioneiro, original.
Basta lê-la para percebê-la?
A biografia está toda na sua obra. A importância da paridade do desejo, a carência e a relação com os pais, a convicção de que é diferente, a herança sufragista da avó, a ideia da morte, que surge muito cedo, quando a mãe a pendura na janela, por uma perninha… As Luzes de Leonor é a história da marquesa de Alorna, mas também é a história dela. Tudo é ela.
Porquê o título “A desobediente”?
Ela não cumpre com a norma, não encaixa, não é sossegada, não é servil. Existem três mulheres na sociedade portuguesa: Eva, a demoníaca e manipuladora; Maria, a servil, bondosa, silenciosa; e Madalena, a puta. E ela era suposto ser uma Maria, calada, sabendo o seu lugar.