A Geração Z é muito marcada pelas tendências que surgem nas redes sociais, mas principalmente pelo TikTok. Na plataforma, onde abundam vídeos sobre tudo e sobre nada, começou a surgir um conceito de auto-confiança: a “Síndrome da Rapariga Sortuda” ou “Lucky Girl Syndrome”.
Trata-se essencialmente na crença de que mantras afirmativos e uma mentalidade positiva na vida trazem recompensas para o dia-a-dia, um pouco como as já muito faladas lei da atração ou da manifestação. Os vídeos do TikTok marcados com a #LuckyGirlSyndrome já somam cerca de 150 milhões de visualizações, com muitos utilizadores a garantirem que esta técnica os fez ganhar dinheiro, entre outros acontecimentos felizes.
O recente aumento na popularidade da Lucky Girl Syndrome pode ser atribuído a Laura Galebe, uma criadora de coteúdo de 22 anos, que, em dezembro, publicou um TikTok sobre a sua vida “incrível”, com a legenda “Vamos falar sobre a síndrome da ‘rapariga sortuda’”.
@lauragalebe The secret is to assume and believe it before the concrete proof shows up. BE DELUSIONAL. #bedelusional #luckygirlsyndrome #affirmations #lawofassumption #manifestationtiktok #manifestingtok #lawofassumptiontok #manifestation ♬ original sound – Laura Galebe
Este vídeo originou toda uma corrente de outros vídeos, com outros utilizadores a partilharem como a mudança de pensamento lhes alterou para melhor a vida e passaram a ter “mais sorte”. Tal como aumentaram o número de vídeos a tentar validar cientificamente a teoria.
Um desses casos foi a Life Coach Rachelle Indra, que publicou um vídeo onde explicava a causa neurológica. No vídeo que tem mais de dois milhões de visualizações, a denominada profissional afirma que existe uma parte do nosso cérebro chamado Sistema de Ativação Reticular (SAR) que serve para “ordenar” e “filtrar” a informação que chega ao cérebro.
“Esse sistema começa a funcionar no segundo em que acordamos e pergunta no que é que tu te queres focar hoje, o que ambicionas no dia. E se tu acordas e pensas: ‘estou tão cansado, este dia vai ser mau’, bham, ele filtra toda a informação do teu cérebro para caminhos e eventos que realmente não prestam e promove o facto de estares cansado”, explica no vídeo.
“Mas se disseres algo positivo como ‘eu sou sortudo, eu estou em paz’, começas a procurar isso porque é o que tu disseste que era importante para ti. Apenas tem a certeza que dizes coisas positivas, e não dizes ‘eu não quero ser’, porque o cérebro não entende a negativa, só a positiva. E se fizeres isso dia após dia eventualmente tu não precisarás de o fazer porque o teu cérebro já sabe”, analisa. “É o Sistema de Ativação Reticular a funcionar”.
Mas será mesmo assim? A VISÃO conversou com Bruno Miranda, neurologista e investigador, que explica que o SAR trata-se “não apenas de um único local [o vídeo de certa forma coloca enfoco num local específico], mas sim um conjunto de vários núcleos neurológicos (chamada de formação reticular) que se localizam sobretudo numa zona do no nosso sistema nervoso central, chamada de tronco cerebral (e que de certa forma fica entre o nosso cérebro e a medula espinhal)”.
O que acontece é que “esses núcleos do SAR enviam as suas projeções para múltiplos locais no cérebro (locais esses responsáveis por variadas funções, desde aprendizagem, decisão, visão, audição, movimento…)”, explica Bruno.
Na prática, e segundo o especialista, o SAR tem como principais funções o controlo das transições de acordar/adormecer, a regulação do sistema de alerta ou atenção – potenciando a atenção seletiva e por isso ser interpretado pelo vídeo como o responsável por dirigir a nossa atenção – e pela regulação também de outras funções mais básicas do funcionamento do corpo como controlar frequência cardíaca, respiração, e também reflexos.
Mas isso significa que o SAR é efetivamente responsável pelos bons pensamentos? Depois de analisar o vídeo, o especialista acredita que “é misturar muitos temas e atribuir todo o peso neste SAR”. “Apesar de ser parte muito integrante da forma como pensamos e sentimos emoções, é apenas um “ajudante” do processo global. O cérebro funciona como um todo e em contacto com o restante corpo”. Bruno acrescenta que “há outros sistemas no nosso sistema nervoso responsáveis pela parte de motivação, tomada de decisão, aprendizagem e emoção, que também têm um papel determinante”.
As afirmações que dizemos a nós mesmos podem ser uma ferramenta útil para interpretar a vida “de uma forma mais positiva” e são úteis “para certas pessoas em certas situações”, disse Mark Manson, autor dos livros A Arte Subtil de Saber Dizer Que Se F*da ou Está tudo F*dido, ao Washington Post.
“Talvez isso faça as pessoas sentirem-se melhor hoje, mas a longo prazo não acho que esteja a fazer nenhum favor a ninguém”, analisa. Manson acredita que “há uma linha ténue entre usá-lo como uma ferramenta e adotá-lo como uma identidade ou uma crença fundamental, quase religiosa, de como o universo funciona.”