Não é necessário chegar ao fim das 154 páginas do despacho de acusação para alcançar a conclusão do Ministério Público. Logo de início, a procuradora Cristina Pires da 6ª secção do Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto fez questão de sintetizar o que está em causa: “Para além da notoriedade que procurava e publicitava nas redes sociais, César Boaventura, para conferir maior credibilidade à sua veste de empresário de futebol de sucesso, fabricou contratos de exploração de direitos de imagem, confissões de dívida e extratos bancários, documentos utilizados para convencer terceiros a entregarem-lhe as importâncias que o mesmo foi pedindo e que foram canalizadas para fins distintos ao que anunciava”.
O resumo inicial da magistrada traduziu-se, no final do documento, em número de crimes, com o empresário de jogadores de futebol César Boaventura a ser acusado de 10 (cinco de burla qualificada, três de falsificação de documentos, um de fraude fiscal qualificada e outro de branqueamento de capitais) num processo que envolve transferências de jogadores e muitos milhares de euros que circularam por várias contas bancárias, apesar de o empresário ter sido declarado insolvente pelo Tribunal de Famalicão em 30 de outubro de 2014. Entre os acusados, mas apenas pelo crime de branqueamento de capitais, estão empresários ligados à metalurgia e e com ligações próximas a Boaventura.
A acusação do Ministério Público acrescenta ainda que, para reforçar a credibilidade como empresário de sucesso, César Boaventura “divulgou ter ativos virtuais, utilizando para o efeito um ficheiro de vídeo manipulado, que exibia e enviava para terceiros (…), convencendo-os de que tinha uma carteira de critpomoedas em seu nome, com um saldo de 2,889 biliões de euros”.
Uma das vítimas das burlas de César Boaventura, identificadas pela Ministério Público, foi José Barros Lima, administrador da Texamérica, uma empresa ligado ao têxtil, que terá financiado em muitos milhares de euros o empresário de futebol, sempre com a promessa de retorno do dinheiro. Boaventura chegou a “exibir a José Barros Lima um extrato de uma conta de que afirmava ser titular e que tinha um saldo de 27 milhões de euros”, descreve o a procuradora do DIAP do Porto.
Noutra ocasião, continua o MP, César Boaventura fez saber ao empresário do têxtil ser detentor de uma conta bancária no Dubai com um saldo de 13 milhões. Tudo isto à medida que José Barros Lima lhe ia emprestando dinheiro, fosse para negócios com jogadores, como a transferência do guarda-redes Mika do Boavista para o Sunderland de Inglaterra, fosse para investir num clube de futebol da Moldávia, o Zimbru.
Uma das formas encontradas pelo arguido para se credibilizar junto dos seus alvos passava por afirmar ter uma “ligação privilegiada ao então presidente do SL Benfica, Luís Filipe Vieira, de quem afirmava ser amigo”. Vieira, aliás, foi ouvido como testemunha no processo. Em 2021, já em prisão domiciliária no âmbito da “Operação Malapata”, Boaventura revelou que o ex-presidente do Benfica o tinha aconselhado a não desenvolver atividade profissional no futebol. “É só vigaristas”, terá dito Luís Filipe Vieira.
A investigação da Polícia Judiciária do Porto e da Autoridade Tributária acabou por descobrir que o empresário colocou 300 mil euros nas mão de Boaventura para o tal investimento da Moldávia, sendo que o arguido lhe tinha dado como garantia o “facto” de possuir 30 milhões no estrangeiro, mas que “apenas 20% lhe pertenciam, já que o remanescente seria do anterior presidente do Benfica”, refere a acusação.
“César Boaventura assegurou que o anterior presidente do benfica, sabendo da existência de processos crimes em investigação, lhe tinha pedido para colocar nessa conta 22 milhões de euros, não podendo, pois, movimentar essa conta”, descreve o Ministério Público, considerando que este foi mais uma das artimanhas de Boaventura para conseguir obter fundos de José Barros Lima. No final, de acordo com o despacho, o empresário do têxtil “acabou por ficar sem as poupanças de uma vida e com várias dívidas por liquidar”.
César Boaventura é ainda acusado de falsificar um contrato de representação e cedência de direitos de imagem com o jogador do Benfica Gedson Fernandes, atualmente no Besiktas da Turquia, para, e uma vez mais, credibilizar a sua posição como empresário de sucesso. Desta vez junto de outro empresário de futebol, Ali Barat. Este fez transferências para Boaventura de cerca de 430 mil euros. Foi ouvido como testemunha.
Durante vários meses, César Boaventura foi colocado sob escuta e mantido debaixo de vigilância por parte da Polícia Judiciária do Porto. Numa das escutas, Boaventura surgiu a reservar um quarto de hotel, em Lisboa, em setembro de 2020, para o irmão do jogador uruguaio Edinson Cavani que, entre agosto e setembro, protagonizou uma pequena novela sobre uma eventual transferência para o Benfica.
Cópias dos conteúdos dos dois telemóveis de Boaventura foram, entretanto, remetidos para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), mais precisamente para o chamado processo dos emails (com o número 5340/17), que investiga suspeitas de corrupção e tráfico de influências no futebol.
Todas as movimentações de dinheiro de César Boaventura levaram a Autoridade Tributária a concluir que o arguido não declarou 1,2 milhões de euros de receita ao fisco. Para isso, Boaventura é suspeito de recorrer à emissão de faturas falsas e à circulação do dinheiro que obtinha através de várias contas bancárias de pessoas que lhe são próximas e que acabaram acusadas pelo crime de branqueamento de capitais, entre os quais Ramiro Viana, José Meia, Ilda Barbosa e Paulo Romeu.
Outro dos métodos detetados pela PJ do Porto para branquear dinheiro não declarado passava pelo jogo em casinos online, nos quais Boaventura depositava os fundos, jogava com uma pequena parte e levantava o restante.
Em prisão domiciliária desde dezembro de 2021, a procuradora do Ministério Público pediu ao juiz de instrução do Tribunal de Instrução Criminal do Porto que esta situação se mantenha, o que foi aceite pelo magistrado judicial. A procuradora alegou que, com a dedução da acusação, “encontra-se aumentado o perigo de fuga”.
Paulo Futre também foi ouvido como testemunha no processo