Bingo Allison tinha 29 anos quando se deparou pela primeira vez com o termo “genderqueer”. Ao ler que “género queer” é um sinónimo de identidade não binária, ou seja alguém que não se identifica como sendo do género masculino ou feminino, independentemente do género ou do sexo atribuído ao nascer, tudo se encaixou de repente na cabeça deste britânico.
Era não binário. Ele, um homem casado, pai de três filhos, que estava a meio da formação de sete anos para vir a ser padre da Igreja Anglicana, não se identificava como sendo do género masculino ou feminino – e existia um nome para isso.
Naquele dia, tudo se encaixou e, ao mesmo tempo, tudo se desmoronou.
Bingo crescera numa família muito religiosa e conservadora. Tão religiosa que ele era já a terceira geração de padres da família.
Os seus pontos de vista eram naturalmente muito tradicionais. Alguns poderiam até chamá-los de “fanáticos”, diz hoje, mas eram fruto de uma grande ignorância. Entre outras coisas, fora educado a pensar que ser gay não era pecado, mas que agir como um gay, sim, era pecaminoso.
“[Perceber que era não binário] foi quase como se fosse um outro planeta”, recordou recentemente, numa entrevista ao jornal Liverpool Echo. “Eu não conhecia nenhuma pessoa trans e penso que provavelmente conheci dois gays na minha vida. Tinha questionado a minha identidade algumas vezes antes, mas, porque me faltava o vocabulário para descrever a minha experiência, não chegava a lado nenhum. O facto de ter crescido numa forma conservadora de cristianismo significava que isso estava muito além da minha imaginação. Estava em negação, nomeadamente em relação à identidades de outras pessoas.”
Quando a sua própria identidade ficou clara, Bingo considerou colocá-la em espera. Queria terminar a sua formação religiosa, em Durham, e só então dizer ao mundo o que se passava consigo. “Mas foi muito mais difícil do que pensava ter feito o coming out para mim e depois continuar no armário”, analisa retrospetivamente.
Sabia também que o impacto na sua família nuclear iria ser grande, a começar pela sua mulher. “Foi difícil para a minha mulher perceber, obviamente. Uma pessoa casa-se com alguém que pensa ser heterossexual e, de repente, as coisas são mais complicadas.”
Quanto aos seus três filhos, o padre esclareceu que sempre teve conversas com eles sobre pessoas transgénero e travestis, por isso crê que a mudança não lhes terá custado tanto. “Foi muito importante eu assumir-me perante eles, e dar-lhes algum tempo para que me percebessem antes de eu me assumir ao resto das pessoas. Os meus filhos são pequenos e, quando somos pequenos, aceitamos a maioria das coisas e eles são adoráveis com isso.”
Na “viagem de auto-descoberta” que se seguiu, houve alguns momentos-chave, contou ao mesmo jornal. Um dia, por exemplo, alguém corrigiu-o quando se referiu ao casamento gay como uma “questão”, como se não estivesse a falar de um tema que envolve pessoas. “Desafiado”, acabaria por começar a pensar as coisas de uma maneira diferente.
Mas foi só quando escrevia um ensaio sobre como Deus criou a Terra e estava a ler a Bíblia que Bingo teve uma epifania. No Génesis 1:27, a frase “da masculinidade à feminilidade” foi o clique que faltava. Dava espaço para a interpretação de que Deus permite que “as pessoas podem transformar”, diz. Como que um aval de Deus.
“Estava ali sentado a meio da noite quando me apercebi de que talvez precisasse de virar a minha vida de pernas para o ar”, recorda. “Foi uma experiência espiritual profunda, senti que Deus estava a guiar-me para esta nova verdade sobre mim.”
Desde então, Bingo conheceu cristãos gays “surpreendentes e fiéis”, apercebendo-se de que queria distanciar-se da sua visão tradicional e conservadora da vida. “Tento envolver-me, não só no meu trabalho religioso mas também fora dele, com os grupos de jovens LGBT locais”, conta.
Em março de 2021, numa entrevista à Radio Merseyside, estação local da BBC que serve aquela região, Bingo afirmou que a Igreja da Inglaterra estava “aberta” para que ele se assumisse, mas acrescentou que era “difícil” para algumas pessoas com quem ele trabalhara entender tudo. “Para eles, era a primeira pessoa transgénero com quem tinham trabalhado de perto.”
Bingo foi ordenado em setembro de 2020. Originalmente de West Yorkshire, trabalha atualmente na paróquia West Derby Deanery, em Liverpool. E, sempre que é solicitado, vai a escolas para ajudar a normalizar a comunidade junto dos mais novos. “Quando estou a usar o meu colarinho, isso faz com que as crianças saibam que está tudo bem e que há um lugar na Igreja e no mundo exterior para pessoas como eu”, sublinha.
Como muitas pessoas não binárias, Bingo Allison usa o pronome “eles”. Sete anos depois de ter visto a sua vida aparentemente a desmoronar-se, sente que continua a ter lugar na Igreja – e mais do que nunca.
Acredita que a Diocese de Liverpool passou a apoiar mais e a capacitar as pessoas LGBTQIA+, o que as tem atraído para dentro da congregação. “Por fora, pode-se pensar ‘Oh, eles são uma igreja bastante tradicional, então podem ter visões tradicionais’, mas sempre fui tratado como pessoa e como padre”, nota.
Hoje, aos 36 anos, a sua exposição é real e constante, a começar pelas redes sociais onde já escreveu, mais do que o vez, que “Jesus adora sombras de olhos brilhantes”. Ainda assim, foi preciso dar uma entrevista ao programa de televisão This Morning, da ITV, na primeira semana do ano, para despertar as atenções dos media estrangeiros.
Quando um dos anfitriões do programa, Phillip Schofield, comentou que achava “encantador” o facto de dizer que tem a identidade masculina e a identidade feminina, argumentando que Deus criou a noite e o dia, mas também criou os tempos entre o amanhecer e o crepúsculo, o padre respondeu:
“A criação está cheia de variedade. É isso que aprendemos com a criação – Deus ama a variedade. Deus cria todos estes animais diferentes, ainda estamos a descobrir novos animais, e o facto de ainda estarmos a descobrir novas formas de compreender o género faz todo o sentido para um Deus que ama a variedade.”
No geral, esta sua entrevista foi recebida com interesse e curiosidade, mas claro que também gerou anti-corpos. De “padre woke” (woke é um termo usado para definir quem está “acordado” e alerta para as injustiças sociais) a “palhaço”, Bingo Allison tem ouvido um pouco de tudo. Mas nem por isso deixa de defender os seus pontos de vista.
Não binário e também autista e dispráxico (a dispraxia é uma disfunção neurológica que impede ou dificulta a realização de movimentos coordenados), Bingo aproveita as atenções, o seu “tempo de antena” para passar a mensagem.
“O cristianismo foi historicamente culpado de dar prioridade aos pontos de vista de homens ricos, brancos, heterossexuais, cisgéneros, capazes, neurotípicos”, disse durante uma palestra sobre como tornar as igrejas mais inclusivas, em 2019. “Os preconceitos que isto cria excluem qualquer pessoa que não se encaixe de se envolver plenamente com a Bíblia”, lembrou, “e muitas vezes levam a igreja a perder uma perspetiva vital em todo o tipo de narrativas bíblicas.”
Essa mesma palestra, que aconteceu no âmbito da celebração do orgulho gay, na catedral em Newcastle, daria azo a artigos inflamados como este em que se lembra que Bingo era um dos curas da chamada Ordem das Ovelhas Negras, com sede em Chesterfield, Derbyshire em Inglaterra, “uma ‘comunidade cristã’ bastante bizarra e liberal”. Bingo já então se maquilhava e usava o cabelo comprido – e assim continuará, why not?