Lisboa vai receber a II Conferência dos Oceanos, no âmbito das Nações Unidas – a primeira aconteceu em Nova Iorque, em 2017 –, para debater formas de maximizar as possibilidades que um oceano saudável pode proporcionar-nos e de reduzir o impacto humano no oceano. Adaptando a frase de John F. Kennedy, não perguntemos só o que o mar pode fazer por nós, mas também o que nós podemos fazer pelo mar. A conferência, que contará com a presença de milhares de pessoas de dezenas de países, incluindo 20 a 25 Chefes de Estado, vai tentar chegar a acordo para proteger 30% dos oceanos até 2030, entre outros objetivos. Além dos (muitos) eventos paralelos da conferência, aqui ficam os sete grandes temas em debate “oficial” na Altice Arena, entre os dias 27 de junho e 1 de julho.
Resolver a poluição marinha
Num dos seus documentos de trabalho para a conferência, a ONU admite que a poluição causada pela atividade humana se encontra espalhada por todo o mundo, nos oceanos, desde a superfície às profundezas. Entre as maiores ameaças, destaca-se a poluição líquida e sólida transportada pelos rios, com os plásticos e microplásticos à cabeça, mas também a poluição com origem nas atividades marítimas, como descargas e derrames de petróleo, e material de pesca descartado (calcula-se que 46% da Grande Ilha de Plástico do Pacífico seja constituída por redes, linhas e cordas utilizadas na pesca). O desafio é encontrar mecanismos para reduzir a poluição, em todas as regiões do planeta e em todos os ciclos produtivos e de consumo, o que deve passar por soluções de financiamento e pela transposição para leis nacionais de instrumentos legais internacionais já em vigor.
Promover economias “azuis” sustentáveis
Cerca de 40% da população mundial (ou seja, 1,3 mil milhões de pessoas) que vive perto do litoral tem as suas vidas dependentes ou fortemente influenciadas pelo oceano. E essa dependência está a crescer: estima-se que a contribuição do mar para a economia global duplique, durante esta década, dos atuais 1,5 biliões de dólares para três biliões de dólares, em setores como turismo, pescas e aquacultura, energia e transporte marítimo. Em Lisboa, vai ser debatida a melhor forma de apoiar e dirigir esses investimentos, nomeadamente ao nível da identificação dos setores com maior potencial e da criação de bases legislativas e do financiamento, mas sobretudo no apoio aos países menos desenvolvidos para tirar mais riqueza económica do mar, de uma forma ambientalmente sustentável e baseada na ciência e na inovação.
Proteger os ecossistemas marinhos e costeiros
Estima-se que 63% do valor económico total da biosfera seja contributo dos ecossistemas marinhos – costeiros, na sua maioria. O turismo é uma fatia importante desse valor (em algumas ilhas-Estado, chega aos 40% do PIB); outra são as pescas (uma em cada dez pessoas vive da pesca e da aquacultura). Por outro lado, os oceanos desempenham um papel fundamental no clima do planeta, ao absorverem 90% do calor em excesso e um quarto das emissões de dióxido de carbono. Mas este valor económico e ecológico depende da saúde dos ecossistemas. A estratégia passa por melhorar o conhecimento, encontrar formas de financiamento e de cooperação entre Estados (o mar não tem fronteiras físicas: ações locais têm impactos globais) e correlacionar as atividades económicas, como o turismo e as pescas, com a proteção dos ecossistemas (ver entrevista).
Minimizar a acidificação, a desoxigenação e o aquecimento dos oceanos
Um dos impactos mais conhecidos e preocupantes das alterações climáticas é o aumento do nível médio do mar. Segundo as Nações Unidas, as águas subiram 4,5 milímetros por ano entre 2013 e 2021, em parte devido ao degelo, em parte devido à expansão térmica – quanto mais quente, mais espaço a água ocupa. Essa subida está a acelerar, porque também as águas estão a aquecer cada vez mais depressa. Menos conhecidas, mas não menos importantes são a desoxigenação e a acidificação do mar, com consequências potencialmente catastróficas para a vida marinha, com os corais à cabeça (há estudos a apontar para o desaparecimento dos recifes até 2100, devido a estes impactos). A solução para as alterações climáticas ultrapassa, claro, a Conferência dos Oceanos, que irá antes discutir modos de melhorar a ciência e o conhecimento sobre o mar, com o objetivo de dar informação mais precisa aos decisores políticos.
Garantir que as pescas são sustentáveis
Há cerca de 60 milhões de pescadores, distribuídos por 4,5 milhões de embarcações. Mas arriscamos a matar a galinha dos ovos de ouro: os stocks pesqueiros continuam em declínio (embora esse declínio esteja a ser mais lento). Atualmente, 34% desses stocks encontram-se a ser explorados em níveis considerados biologicamente insustentáveis. Porque é que isso acontece, quando há quotas pesqueiras bem definidas? Porque parte significativa das pescas não é reportada nem regulada. Na África Ocidental, essas pescas ilegais ascendem a 40% do total. Encontrar formas de combater este problema deverá ser o foco principal da conferência, tal como a eliminação de subsídios ao setor danosos para a vida marinha. Mas melhorar a sustentabilidade da aquacultura (que já produz metade do pescado consumido) estará também em cima da mesa.
Apostar na investigação
O investimento em ciência e tecnologia marinhas tem tido um crescimento exponencial, mas continua abaixo do necessário e muito desigual. A ONU calcula que o estudo dos oceanos receba menos de 2% dos orçamentos nacionais para investigação e adverte que a pandemia afetou a ciência e o investimento marinhos. Além disso, há uma sub-representação nesta área de mulheres, de jovens e de cientistas de países menos desenvolvidos. Um dos objetivos é encontrar ferramentas que permitam aumentar a investigação e a igualdade, através de parcerias entre empresas, governos, investigadores e filantropos.
Aplicar a lei para melhor conservar
A legislação internacional é crucial para assegurar a conservação dos ecossistemas marinhos. Partindo desta certeza, as Nações Unidas propõem-se, nesta conferência, a criar potenciais sinergias entre entidades e Estados para implementação das leis. A ciência será uma arma nesta meta, ajudando, por exemplo, a recolher informação para identificar lacunas na lei e na sua execução. A ONU pretende, ainda, encontrar formas de ajudar os países a partilharem tecnologia marinha, para melhorar as políticas nacionais.
Ruben Eiras
Secretário-geral do Fórum Oceano
Há um grande interesse na ‘economia azul’, e em Portugal como destino desse interesse
O secretário-geral do Fórum Oceano, parceiro da Conferência dos Oceanos, diz que a economia do mar está num momento explosivo – e garante que o desenvolvimento económico “azul” anda de mãos dadas com a proteção dos ecossistemas marinhos.
É possível conciliar o valor económico do oceano com a sua proteção?
É, mas não é fácil. Temos de olhar para o oceano como um território multidimensional. Na sua vertente ambiental, é o ar condicionado do planeta, o seu maior produtor de oxigénio, o maior sumidouro de carbono e alberga stocks de biomassa estratégicos para o equilíbrio da biodiversidade e para a subsistência da espécie humana. Dessa perspetiva, está a atravessar um momento de crise. Agora, tudo depende da postura. Podemos olhar para este momento e ver uma oportunidade. Mas isso obriga a mudar o modelo de desenvolvimento.
A História ensina-nos que o desenvolvimento económico é quase sempre feito à custa dos valores naturais. Qual é o incentivo das empresas para fazer diferente?
Hoje, os investidores querem ser remunerados não só pela dimensão do lucro efetivo, mas também pelo valor ambiental e social. Se analisarmos o que aconteceu durante a Covid, verificou-se um aumento da valorização de mercado dos negócios que levam em conta esses índices. Isto não foi porque o mundo da finança teve um assomo de coração e começou a investir no que lhe faz bem à consciência…
Então foi porquê?
É por causa do perfil de risco. Quando há uma empresa que leva a sério o risco ambiental das suas operações, vai ter um negócio mais bem gerido e com menor risco. Até pode ter uma menor taxa de crescimento anual, mas é muito mais regular e sustentável.
A economia azul advoga esse modelo?
Para ser azul, sim, os modelos de negócio têm de ser feitos de outra forma. Mas o que funciona em algumas partes do mundo pode não funcionar noutras.
Qual o caminho para, então, conciliar as políticas ambientais com o desenvolvimento económico?
Resolvendo problemas concretos com medidas concretas. Se adotarmos uma política de conservação no mar em que não há qualquer atividade económica nas áreas marinhas protegidas, sem providenciar uma alternativa às populações locais, o que acontece? Chega outro ciclo político, populista, anticonservacionista, as pessoas precisam de ganhar dinheiro, e lá se vai a área protegida. É o que está a acontecer em diversas nações do Pacífico, que começaram por fazer isso e agora estão a dar a empresas chinesas a concessão de pesca das suas áreas marinhas.
Ou seja, deve ser a própria atividade económica a sustentar a proteção das áreas marinhas?
Sim. E isso consegue-se através da tecnologia, com informação rigorosa sobre o que se passa na superfície, na coluna de água e no leito do mar. Vamos supor que há uma área marinha protegida que tem condições para receber uma aquacultura em offshore, em sistema multitrófico: pode até ser regenerativa do próprio ecossistema, se for com uma espécie de peixe autóctone e com uma alimentação sustentável, à base de algas ou proteína que mimetiza o que existe no ecossistema. Vai ser um produto mais caro? Sim, porque a qualidade é mais cara.
Os custos podem ser diluídos através de sinergias? Por exemplo, conciliando aquacultura e produção de energia?
Aí está: vamos para a conceção multiúsos de uma área marinha. É o que o mar pode oferecer-nos. Posso ter aquacultura na coluna de água e, à superfície, energia eólica. Para isso, é preciso ordenar o espaço marítimo, para definir as atividades que podem ser desenvolvidas em cada zona. Portugal foi um dos primeiros países da Europa a ter um plano de ordenamento do espaço marítimo.
Voltando à diluição de custos…
Por exemplo, os pescadores podem ganhar outras competências, com formação transversal, para se tornarem técnicos e fazerem a manutenção de equipamento no mar.
Isso poderá ajudar a tornar a produção de eletricidade no mar mais competitiva?
Sim. Aliás, na eólica offshore flutuante, a zona entre Viana do Castelo e Aveiro é de alta produtividade eólica e poderá, ainda esta década, conseguir fornecer hidrogénio verde produzido a partir de eletricidade marinha a um custo em paridade com a eólica onshore ou mesmo com a fotovoltaica.
O que espera que a Conferência dos Oceanos traga de concreto para este debate?
A grande diferença em relação à primeira, de 2017, é que vai trazer mais investidores do que nunca. Vai ser o primeiro momento pós-pandemia que junta, no mesmo sítio, grandes empresas, fundos de investimento e filantropos. Poderão nascer aqui iniciativas interessantes. Este pode ser o momento de inflexão da economia azul. É a partir desta diplomacia que se encontram compromissos e se começam a construir iniciativas concretas.
Qual o envolvimento do Fórum Oceano?
O Fórum Oceano, que é um dos dois portugueses stakeholders da conferência, a par da Fundação Oceano Azul, é responsável pela gestão de uma área de side events oficial, onde iremos ter 77 conferências sobre economia do mar. Há um grande interesse na economia azul, e em Portugal como destino desse interesse. Mas para Portugal ser destino desse investimento estruturante, tem de ter custos de contexto claros, do licenciamento e dos processos administrativos, e uma boa organização na construção de ecossistemas de inovação, para ser mais fácil um fundo de investimento encontrar os projetos empresariais para investir.