Naquela tarde de domingo, dia de almoço de família em casa da nossa mãe, no bairro da Estrela, em Lisboa, saímos todos à rua para tirar fotografias com a neve a cair como cenário. Dezasseis anos depois, as imagens, de má qualidade e algumas até meio tremidas, ainda nos fazem sorrir.
Eram 3 da tarde de 29 de janeiro de 2006 e pouco depois na rádio dizia-se que os termómetros estavam nos 0,5° graus na capital quando começara a nevar.
Nós, em grande galhofa, alternávamos as poses para os telemóveis e os telefonemas – havia que avisar rapidamente quem pudesse ainda não ter dado pelo fenómeno meteorológico. E não nos calávamos. Nevava em Lisboa! Nevava no centro de Lisboa!
Claro que a senhora nossa mãe também não se calava, mas a repetir: “Isto não é nada, em 1954 é que nevou mesmo!” Meteu o nariz fora da porta e voltou para dentro, a abanar a cabeça. E não houve fotografia nossa, a provar naquela tarde que a neve tinha sido suficiente para se juntar em montinhos brancos, na berma dos passeios e nos vidros para-brisas dos carros, que a convencessem.
Só mais tarde, depois de ver muitas outras fotografias e vídeos a atestarem o nevão que caíra na capital, testemunhado por cidadãos e jornalistas, e rapidamente partilhado na internet e nos telejornais, é que xôdona Rosarinho aceitou a evidência. Mas ainda ontem à noite, ao telefone, dizia-me: “Aqui ao pé de casa nevou muito pouco há dezasseis anos; acho que só lá mais para Benfica e para Telheiras é que houve neve mais a sério.”
Um tabuleiro com neve em 1954
Cresci a ouvi-la contar como, no dia 2 de fevereiro de 1954, saiu à rua com um tabuleiro, encheu-o de neve e levou-o até ao quarto onde a irmã estava deitada a arder em febre. Ela tinha 13 anos e nunca vira nevar em Lisboa. A irmã, mais nova quatro anos, também não.
Foi uma questão de minutos até a neve derreter no tabuleiro, molhando cama e doente. A minha mãe seria duramente castigada pelo “disparate”, mas a verdade é que nunca mais se esqueceu de como naquele dia a neve cobriu o passeio e parte da Avenida 5 de Outubro mesmo defronte de casa dos seus avós, onde então estava a morar.
2 de fevereiro de 1954 ficaria para a história da minha família como “o dia em que nevou em Lisboa”. Quando voltou a nevar, quase cinquenta e dois anos depois, foi como se estivéssemos perante um sucedâneo de algo que tinha sido especial, não havia nada de novo verdadeiramente a assinalar.
As histórias das famílias e das pessoas são assim mesmo. Outras haverá para quem 29 de janeiro de 2006 foi inesquecível. Outras ainda recordarão os nevões de 1945, que foram caindo em Lisboa entre 12 e 17 de janeiro desse ano, como únicos.
Será tudo uma questão de memória, de associação de acontecimentos e, também, de transmissão oral. Doutra maneira, como se explicaria que, em 1954, tenha começado a nevar no dia 1 de fevereiro e entre os Ruella Ramos só se fale do dia seguinte?
‘Nem sempre é abril em Portugal’
Em janeiro de 2006, infelizmente já não existia o Diário de Lisboa (a nossa família deixara de o publicar no final de 1990). Mas no domingo, 1 de fevereiro de 1954, a manchete do vespertino só poderia ser, como foi: “Toda a Europa está sob uma intensa vaga de frio e, esta madrugada, nevou sobre Lisboa e arredores”.
Nessa manhã, as Penhas Douradas tinham registado a temperatura mais baixa do País – 10,5 abaixo de zero – enquanto a capital apenas sofrera a mínima de meio grau acima de zero, lê-se logo por baixo do título. Ao lado, uma fotografia mostrava “o manto de neve cobrindo a zona do Ramalhão” (em Sintra).
O artigo começava de uma maneira deliciosa aos olhos de hoje, sobretudo aos olhos de quem já viveu outros abris: “Nem sempre é Abril em Portugal…” (os meses começavam por maiúscula). O jornalista discorria ainda sobre “os rigores da invernia fustigante” e só depois avançava a notícia:
“Hoje, Lisboa, principalmente a parte nova da cidade, porventura mais exposta (Alvalade e Areeiro), acordou coberta de um manto de neve, espectáculo inusitado (que foi o principal tema das conversas da manhã) e que dava uma nova feição ao casario.”
Em Sintra, há dez anos que não caía um nevão tão intenso. Segundo informações do Serviço Meteorológico Nacional, a vaga de frio sentida no País tinha sido motivada por uma massa de ar frio, que viera da Europa Central através dos Alpes, do Sul da França e dos Pirenéus.
Na tarde seguinte, a primeira página do D.L. trazia uma fotografia da neve na serra de Monsanto, junto à capital (bem visível também neste vídeo), dando-se conta que nesse dia já nevara “intensamente” ao final da manhã. “O espectáculo é inédito e, por isso, durante a manhã, das 12h às 13h, os Lisboetas andaram com o nariz no ar e exclamações na boca: – Neve! Está a nevar!”.
Não nevava assim desde 12 de janeiro de 1945, e o nevão anterior a esse caíra em 1925. Nas páginas centrais, titulava-se: “Do Minho ao Algarve, o País está coberto de neve” e especificava-se: em 73 anos, segundo os registos do Serviço Meteorológico Nacional, era apenas a oitava vez que caía neve em Lisboa.
Lisboa ‘civilizada’ pela neve em 1945
A 12 de janeiro de 1945, o mesmo Diário de Lisboa dava conta de ter caído neve em Lisboa durante duas horas “como se estivéssemos na serra da Estrela”. O fenómeno “raro” aconteceu logo de manhã, com “grandes farrapos brancos” a revolutear no ar, oferecendo um espetáculo surpreendente. “Eram gritos de espanto e exclamações de surpresa por toda a parte: – Está a cair neve! Olha que bonito!”
Se, na véspera, a manchete tinha sido o problema “muito sério” do aquecimento nas casas portuguesas durante o inverno, com o arquiteto Pardal Monteiro a botar faladura, nesta primeira tarde de neve escrevia-se que as “criancinhas que iam para as escolas, onde não há sombra de aquecimento, tiritavam, enregeladas”. A maioria não tinha ido às aulas por causa do frio.
Nos dias seguintes, os jornalistas tiveram de fazer um esforço para manter o interesse dos leitores. A neve continuava a cair na capital, mas já não era uma novidade. No dia 14 de janeiro, um domingo, lemos, então, que naquela manhã tinham aparecido “desportistas munidos de skis!”. Na zona de Monsanto, “grupos de patinadores [sic] do ‘Ski’ Clube de Portugal, entre eles algumas senhoras, procuravam as zonas de neve mais consistente para as suas práticas desportivas”.
Na segunda-feira, 15, a neve em Lisboa dá lugar aos ataques na Alemanha e à incerteza política na Jugoslávia, mas, no dia seguinte, a manchete lembra que “a neve continua a cair em Lisboa. O repórter inicia assim o seu artigo: “Lisboa já é uma cidade civilizada: até tem neve” e, ao lado, duas fotografias – uma com os “maravilhosos jardins de Queluz” naquele dia brancos “no estilo de Versalhes”; outra com a imagem de uma avenida lisboeta e a legenda “A cidade branca”.
Vale a pena ler esse artigo da edição de 16 de janeiro, que traz descrições deliciosas e mais fotografias, como da Patriarcal que, não fosse sabermos que tinha caído neve na capital portuguesa, “dir-se-ia um jardim de Oslo”. Nessa manhã, o repórter terá passado pelo Liceu Camões, onde os alunos haviam tido a sua aula de trabalhos manuais ao ar livre, “modelando na neve um senhor grotesco e pantafaçudo”. No final, escreve, inflamado: “É caso para perguntar: Estamos no polo norte ou em Lisboa?”
A neve ainda cairia no dia 17, mas desse estertor alvo já os jornalistas do D.L. não dariam conta. A Europa estava em guerra, havia muito mais para reportar.
Setenta e sete anos e duas semanas depois, para este sábado, na capital, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera prevê um dia com o céu parcialmente nublado, temperaturas entre os 9 e os 18 graus, e zero precipitação. Ainda não é hoje (nem nos próximos dias…) que as minhas filhas adolescentes vão pela primeira vez ver nevar em Lisboa.