Já experimentaram de tudo um pouco: vigílias, manifestações, alianças e até criarem grupos secretos treinados, ao jeito de milícias, para provocar a perturbação da ordem pública (entre outras singularidades). De quando em vez, os movimentos negacionistas da Covid-19 mostram-se publicamente – como aconteceu nos ataques ao vice-almirante Gouveia e Melo e a Ferro Rodrigues –, embora, na esmagadora maioria das vezes, seja nas redes sociais que a militância antissistema e contracorrente continue a fazer escola.
Nada indica, para já, que o número de membros que compõem este nicho esteja a aumentar – o próprio sucesso do processo de vacinação, aliás, veio relativizar a existência destes movimentos em Portugal –, mas um fenómeno mais recente, ligado a esta realidade, tem permitido renovar algum entusiasmo entre as tropas. Animados por novas músicas, os principais movimentos negacionistas portugueses (e seus seguidores) encontraram a banda sonora para a sua “luta”, que partilham como autênticos hinos contra as medidas do Governo e da Direção-Geral de Saúde (DGS) para a prevenção da pandemia.
Seguindo uma tradição contestatária e provocatória, a cultura hip hop passou a ser usada neste campo. Rappers negacionistas lançaram, na última semana, temas que estão agora a servir de veículo para amplificar este discurso nas redes sociais, chegando a largos milhares de pessoas (das mais variadas faixas etárias). Com letras que incluem os chavões e as teorias da conspiração de sempre, artistas como Estraca ou Penhx recorrem a uma amálgama de palavras e frases cantadas, onde se incluem acusações a políticos, jornalistas ou médicos e enfermeiros, entre outros, e se fala de corrupção, pedofilia ou satanismo – uma retórica próxima da utilizada pelos norte-americanos QAnon.
O objetivo, neste caso, segue o guião qualquer seja a temática abordada numa canção de hip hop: passar a mensagem; denunciar; fazer política. Os riscos, esses, é que são novos: embalados pelo som, a mensagem (ou melhor, a desinformação) arrisca chegar a um leque muito mais alargado de pessoas.
Hip Hop negacionista: teorias da conspiração rimadas
Carlos Guedes, conhecido no mundo artístico como Estraca, nasceu e cresceu no Bairro da Cruz Vermelha, no Lumiar, Lisboa, onde desde muito cedo começou a rimar com os amigos. Há seis anos, começou a publicar vídeos no Youtube, e logo deu nas vistas. As suas músicas, fiéis à toada de denúncia social e política, foram somando milhões de visualizações, garantindo-lhe um lugar de destaque naquela plataforma. Do sucesso digital, Estraca passou para os palcos e, atualmente, não lhe faltam convites para concertos. Quando, nas suas letras, passou a incluir o que pensa sobre a pandemia, então, para si, as coisas só melhoraram. Com Governo e comunicação social sempre na mira, as opiniões polémicas valeram-lhe, nos últimos meses, atuações em Portugal e no estrangeiro, muitas delas inseridas em eventos organizados por movimentos antissistema e contracorrente.
O mais recente sucesso, Jornalixo, divulgado na passada quarta-feira, 1 de dezembro, transformou-se num sucesso imediato, ocupando lugar nas principais tendências musicais nacionais do Youtube. Visualizado e partilhado em massa no seio dos grupos negacionistas, a temática não foge ao habitual: Marcelo Rebelo de Sousa, Ferro Rodrigues, António Costa ou Eduardo Cabrita; comunicação social; corrupção e pedofilia; e ditadura sanitária – são elementos citados que cabem no mesmo saco durante 4.25 minutos. O refrão não engana: “Eu não sou cúmplice de um Governo assassino/ Que para instalar o medo, manipula a informação/ Eu não sou cúmplice de um Governo assassino/ Que nos rouba a liberdade pela falsa salvação/ Eu não sou cúmplice de um Governo assassino/ Que instalou fome e miséria na nossa população/ Eu não sou cúmplice deste povo amordaço/ Que em silêncio aceita tudo sem nenhuma reação”, diz Estraca, de expressão enfurecida, enquanto nos avisa que “não é cúmplice” de algo que não chega a identificar.
![](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2021/12/211206_18792_828859253830265_8657214062736037581_n.jpg)
Cláudio Fernandes, ou Penhx, no mundo do hip hop, é natural da Cidade da Praia, Cabo Verde, mas reside há algum tempo na região da Grande Lisboa. Este rapper afasta-se da tradição original deste estilo musical – criado pelas comunidades afro e latino-americanas do bairro de Bronx, em Nova Iorque, Estados Unidos da América –, optando por unir esta sonoridade com a das suas raízes cabo-verdianas. É, aliás, na língua crioula, que Penhx interpreta as suas canções.
Antes da Covid-19, a sua carreira não tinha expressão, mas a pandemia deu-lhe outro impulso. Confiando na palavra de Deus e na do ex-juiz negacionista Rui Fonseca e Castro – demitido, em outubro passado, da magistratura, por decisão do Conselho Superior da Magistratura (CSM) –, Penhx lançou, também no dia 1 de dezembro, o tema Fraudemia, baseado em teorias da conspiração que são comuns aos principais movimentos negacionistas da Covid-19 internacionais.
“A pandemia foi uma fraude que foi criada e os números de casos de morte foram todos inflacionados/ Quem te alimenta e te controla como gado/ Entre tachos e o Estado, a media foi comprada/Especialistas de verdade foram todos cancelados/Direitos fundamentais foram todos condicionados”, diz o rapper, enquanto aponta o dedo a um alegado plano “satanista” da “maçonaria” e da “elite ocultista”. O ex-juiz Rui Fonseca e Castro, transformado em líder e ídolo, abre e fecha o videoclip.
Autores de hino negacionista no Festival da Canção 2022
Porém, esta tendência recente não vem criar, propriamente, um novo espaço. No último ano, já os Kumpania Algazarra se tinham assumido como autores daquele que, por diversas vezes, foi considerado (e utilizado como) o hino dos negacionistas portugueses. Posicionada no universo do folk, com influências variadas e distantes – como as culturas cigana, árabe, latina, reggae ou balcânica –, a banda lançou uma versão de Danser Encore, criada no final de 2020, pelos franceses HK & Les Saltimbanks. Continuar a dançar passou a ser cantada, sem exceção, desde a Primavera anterior, em todas as manifestações negacionistas em Portugal, algumas vezes com atuações ao vivo.
![](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2021/12/211206_244505066_406885850809714_1885054463109194073_n.jpg)
A notoriedade já alcançada, após anos de carreira, e uma mão cheia de álbuns editados, não impediu os Kumpania Algazarra de também apostarem em mensagens próximas das teorias da conspiração: “Cada medida autoritária, finge dar a segurança/ abala a nossa confiança/ sempre com tanta insistência/ confinando a consciência”; “não nos vamos impressionar com as medidas do poder/ que vende medo em abundância/ vamos mantê-los à distância/ angústia ao ponto da indecência”; ou “Pela nossa saúde mental, social e ambiental/ com sorriso e inteligência/ vamos criar a resistência/ aos instrumentos da demência” são, apenas, alguns dos versos de Continuar a dançar.
Ainda assim, a banda tem-se dado bem a viver com a falta de liberdade que tanto lamenta – ainda muito recentemente, os Kumpania Algazarra foram anunciados como um dos 20 autores convidados da próxima edição do Festival da Canção 2022 da RTP.