Depois de descobrir que tinha sido plagiada por uma marca chinesa, a ilustradora portuguesa Lara Luís, de 34 anos, começou, com a ajuda do seu advogado, Jorge Silva Martins, a tentar entrar em contacto com o departamento de copyright da Shein. Depois de muitas tentativas, conseguiram marcar uma conversa via zoom. “Íamos preparados para essa reunião, tínhamos algumas ideias para apresentar mas queríamos ver o que eles diziam primeiro”, conta à VISÃO a ilustradora.
A marca chinesa, um dos maiores e-commerces do mundo, concordou imediatamente que tinha havido violação da propriedade intelectual da artista portuguesa – vendeu t-shirts com uma ilustração conhecida de Lara Luís, criada em 2016 – e propôs uma indemnização de um valor que tanto a artista como o seu advogado consideraram inaceitável. “A forma como eles procederam para colmatar essa violação foi pagar o que venderam do produto. Apresentaram-nos uma folha de excel, com dados que podem ser verdadeiros ou não, do número de t-shirts que tinham alegadamente vendido até à data”, explica Lara Luís.
O critério da marca, fundada em 2008 por Chris Xu, para resolver este tipo de situações tem a ver com o profit, que pode ser o lucro, ou seja, o valor que foi vendido deduzido do custo de produção, ou o income, ou seja, o que entrou nas contas da empresa como resultado da venda dos produtos. De acordo com a artista e o seu advogado, isso não foi esclarecido pela marca e não se teve em conta todos os outros tipos de danos provocados pelo plágio, incluindo os morais e patrimoniais. “A imagem da Lara, que está agora representada em vários sites e é vendida em diferentes produtos, deixa de ter qualquer valor comercial para ela”, esclarece o advogado da artista.
A proposta não foi aceite e dois representantes da Shein reuniram durante dois minutos, antes de comunicarem uma segunda oferta . “Triplicaram a proposta inicial, mas ainda assim foi muito baixa”, diz Jorge Silva Martins. A marca pediu, então, que a artista fizesse uma proposta e, na última sexta-feira, foi enviada a contraproposta à Shein, com um novo valor. “Esta proposta tem valores significativamente diferentes dos valores que eles propuseram”, acrescenta. “Nós fizemos a desagregação dos valores por prejuízos, ou seja, explicámos de forma escrutinada porque é que estamos a pedir aquele valor, e baseámo-nos em decisões de tribunais portugueses e europeus para aquele tipo de violações”, diz Silva Martins.
Esta quarta-feira, a Shein respondeu, por e-mail, à contraproposta realizada pela artista, apresentando uma nova contraproposta, mas ainda não há acordo entre as duas partes, sendo que as conversações continuam.
Processos judiciais com grandes marcas
Apesar de o tribunal ser um destino que Lara Luís quer evitar, pela demora destes processos e pelo gasto financeiro que acarreta, essa possibilidade não está totalmente afastada . “Depende muito do feedback que recebermos da Shein, mas se tivermos de ir para tribunal, vamos”, esclarece o advogado da criadora.
A Shein, uma das maiores marcas de fast fashion do mundo, está a enfrentar vários processos judiciais nos EUA, sendo acusada, de acordo com o Financial Times, de violação de marca registada “deliberada e calculada” de direitos de propriedade intelectual, também por grandes marcas como a AirWair, que criou a Dr. Martens, e a Levi Strauss & Co. A primeira acusou a Shein de querer vender falsificações da marca e de publicar fotografias do calçado original da Dr. Martens no seu site. Já a Levi’s acusou a empresa de ter copiado o formato do próprio símbolo da marca americana. Em fevereiro, a Forbes noticiou que os EUA constituem o maior mercado da Shein.
“Mas é importante dizer que isto não é uma luta contra uma marca chinesa. A Lara está preocupada com os direitos dela, independentemente de quem está do outro lado. Podia ser uma marca portuguesa ou americana, é indiferente”, esclarece Jorge Silva Martins. “Não queremos lançar uma espécie de boicote público à marca, queremos agregar mais pessoas, artistas e marcas e pensar no que podemos fazer enquanto comunidade para ajudar nestes casos de violação de propriedade intelectual, que são diários. Este tema não deve interessar apenas a criadores isolados ou pequenos”, explica o advogado.
Há um pacote legislativo a nível europeu de proteção do consumidor, com uma legislação forte que o protege, e existe atualmente uma diretiva de direitos de autor aprovada pela União Europeia que está a ser transposta para Portugal. Também a Convenção de Berna é um instrumento internacional que regula o tema da propriedade intelectual e que foi subscrita pela maioria dos países em todo o mundo, o que significa que um criador português tem os mesmos direitos em quase todos os países a nível mundial. As discrepâncias podem acontecer, ainda assim, devido à forma como a empresa que lesa um artista calcula os prejuízos que provoca.
“Estamos muito pouco educados relativamente aos nossos direitos”
Depois de o gato que diz “You work, I watch and judge” ficar conhecido por todo o País por estar a ser vendido em t-shirts e outro tipo de produtos em sites internacionais sem o consentimento de Lara Luís – a artista encontrou o seu desenho em cerca de 15 lojas online diferentes -, vários criadores contactaram a jovem com histórias semelhantes.
“A Ali Express é a empresa que junta mais casos de pessoal criativo lesado, porque toda a gente consegue vender lá e não há grandes critérios de venda. E a minha t-shirt também está lá”, conta Lara Luís. Cria-se uma rede com um fim muito difícil de prever e onde a tarefa de encontrar o seu início se torna hercúlea. “A Shein tem um peso e influência muito grandes e é onde muita gente vai buscar inspiração, por isso acreditamos que possa ter começado na Shein”, explica a artista.
“Há centenas de pessoas como a Lara que viram os seus trabalhos a serem plagiados e que não têm meios, mas não só financeiros: não sabem qual é o caminho e estratégia que podem seguir. Os seus trabalhos estão a ser utilizados na internet de uma forma completamente descontrolada e é tão esmagador que, muitas vezes, não se faz nada”, explica Silva Martins.
De acordo com a artista, existe falta de informação sobre este tema nos cursos superiores e há, posteriormente, uma grande dificuldade em lidar com casos de plágio, de forma geral. “Estamos muito pouco educados relativamente aos nossos direitos. Inicialmente, eu achava que não podia fazer nada e não tinha meios financeiros para o fazer”, conta Lara Luís, que defende a criação de um sistema de educação que prepare os artistas para se defenderem quando o seu trabalho sofrer qualquer tipo de violação, principalmente de marcas de fast fashion como a Shein, que baseiam a sua forma de negócio na gestão de risco. “Muitas plataformas assumem o risco de violação de propriedade intelectual de artistas porque muitas vezes não têm reações dos criadores, não acontece nada. E compensa-lhes”, refere Silva Martins. A Shein consegue obter, anualmente, uma receita que ronda os 8 mil milhões de euros.
O objetivo da artista, que, com a sua história, abriu portas a uma discussão necessária, é tornar esta luta global, juntar ao seu caso outros casos de artistas que foram plagiados e não conseguiram lutar pelos seus direitos. Para isso, decidiu que vai reverter o resultado do acordo com a Shein num fundo de apoio aos criadores portugueses, que beneficie a comunidade e garanta que o trabalho dos artistas é conhecido lá fora, não porque alguém o roubou mas porque houve mesmo a oportunidade de o mostrarem. “Já estamos em contacto com algumas pessoas e vamos fazer isto acontecer”, diz a artista.
“É muito importante que os temas relacionados com o comércio eletrónico ganhem cada vez mais visibilidade e deve valorizar-se cada vez mais um lado que tem sido negligenciado”, acrescenta Jorge Silva Martins.