As Tapeçarias de Pastrana são formadas por quatro peças de grande dimensão, em lã e seda, representando a conquista das cidades marroquinas de Arzila e Tânger por D. Afonso V, em 1471. Saídas de Portugal durante o domínio filipino, foram descobertas em 1915 na Colegiada de Pastrana, em Espanha, por José de Figueiredo e Reinaldo dos Santos. Os dois voltaram a Pastrana em 1925, trazendo fotografias que atestavam o valor histórico e artístico das tapeçarias, mas também o mau estado de conservação.
Em Alfredo da Silva e a I República (ed. D. Quixote), o último livro da trilogia sobre o fundador da CUF, coordenado pelo historiador Miguel Figueira de Faria, revela-se um episódio, até agora inédito, sobre o empenho e os esforços do industrial em obter uma licença para fotografar as famosas tapeçarias, durante um dos seus períodos de exílio no país vizinho.
O lançamento do livro, que decorre hoje, quinta-feira, vai ser transmitido no site dedicado às comemorações dos 150 anos do nascimento de Alfredo da Silva. A VISÃO faz a pré-publicação, em exclusivo, do início do capítulo sobre a “reportagem fotográfica” das Tapeçarias de Pastrana.
Leia aqui a pré-publicação do início do capítulo X: Alfredo da Silva e as tapeçarias de Pastrana
Conhecemos a Alfredo da Silva um percurso marcado por reuniões de conselhos de administração ou assembleias gerais, com contactos com banqueiros, deputados, políticos, engenheiros e operários, criação de fábricas e negociações várias, numa grande moldura industrial, onde as vertentes química e naval assumem preponderância.
Ligar Alfredo da Silva a contextos artísticos parece, pois, um desafio deslocado. Quando Reynaldo dos Santos lhe agradece no prefácio de As Tapeçarias da Tomada de Arzila, é legítimo interpretar o agradecimento como pagamento de apoio moral, pois nenhuma relação se apresenta como óbvia. Porém, a acção de Alfredo da Silva foi determinante no processo de recolha fotográfica da “grande reportagem do século XVI”, como Miguel Ángel Aguillar chama aos panos de Pastrana.
Reynaldo dos Santos, à época «o cirurgião que mais contribuiu para o avanço da cirurgia vascular», praticava um vasto eclectismo de interesses, no qual a história e a crítica da arte sempre ocuparam um grande espaço, reconhecido aos mais altos níveis, nacional internacionalmente. A correspondência de Alfredo da Silva, na altura a viver em Madrid, evidencia uma relação de amizade mútua confirmada pelas palavras do médico: «Tenho o maior prazer em registar aqui a generosa e dedicada colaboração de um bom amigo do Museu e meu velho amigo, Sr. Alfredo da Silva, a cuja liberalidade devemos as fotografias — não fáceis de obter — que agora reproduzimos». Este relacionamento era também alicerçado no facto de serem ambos subscritores de acções da Companhia do Mercado Geral de Gados, que Reynaldo dos Santos recebeu, como único herdeiro de João Afonso de Carvalho, que lhe deixa as acções em Dezembro de 1906.
A dificuldade assim mencionada na obtenção das fotografias está detalhadamente descrita em correspondência que ilustra o raro processo de recolha das imagens, posteriormente publicadas por Reynaldo dos Santos em 1925, como atesta a assinatura do fotógrafo — Moreno — que Alfredo da Silva contratou em Madrid.
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A difícil autorização do arcebispo
A correspondência a que tivemos acesso está marcada pela perseverança em obter uma autorização do arcebispo para entrar na igreja e fotografar as tapeçarias. A primeira missiva data de 20 de Janeiro de 1924 e dá a entender claramente que o assunto vinha sendo discutido, denunciando outros esforços da parte de Alfredo da Silva, que desconhecemos, mas já alvo de menção na imprensa: «agradeço a referência que me fez no seu artigo de notícias», como escreve a Reynaldo dos Santos. É natural que assim fosse, pois era tema de elevado interesse para os protagonistas da descoberta das magistrais tapeçarias representando a tomada de Arzila, Reynaldo dos Santos e José de Figueiredo, em 1915, e tema amplamente noticiado em Portugal.
Parece-nos que os oito meses decorridos até à próxima carta olvidam outra correspondência, a que não tivemos acesso. A falta de resposta do arcebispo, a quem antecipadamente tinha sido endereçado o pedido, leva Alfredo da Silva a recorrer ao embaixador português em Madrid, Mello Barreto, cuja intervenção não acelera o processo, mas revela-se fundamental para obter a licença, o que só acontece em Dezembro, deixando um rasto de impotência na correspondência de Alfredo da Silva. A planear uma viagem a Bordéus, escreve a Reynaldo dizendo que, quando chegar, “não tendo aqui a licença vou eu próprio a Toledo falo ao San Roman e ao próprio Arcebispo e acaba-se esta conversa de parvos”.
A qualidade do fotógrafo que o vai acompanhar é uma preocupação. Procura o conselho avisado de um historiador de arte, Francisco Javier Sánchez Cantón, mais tarde director do Museu do Prado, que lhe indica um profissional ligado ao museu, e contrata Moreno, que se desloca a Pastrana por duas vezes.
Embora a ameaça de se deslocar pessoalmente para falar ao arcebispo não se tenha realizado, Alfredo da Silva não cruzou os braços e foi para Pastrana com o fotógrafo, mesmo sem autorização arcebispal. É com entusiasmo que relata a aventura a Reynaldo dos Santos:
“Tudo correu bem a princípio, pois o cura deu licença para entrar a máquina, mas como a luz era pouca, tudo levou imenso tempo e às 4h ainda se trabalhava (….) Apareceu então aquele padre ‘torto’ que vimos na praça (…) um irmão do cura a obrigar-nos a parar porque a aldeia estava excitada com [a] nossa permanência longa na igreja! Discussão sem fim e que saíssemos porque não tínhamos licença do Arcebispo e lá tinham estado outros da biblioteca de Madrid a tirar fotografias (não conseguiram fazê-lo por falta de luz e de a saberem fazer) mas com licença do Arcebispo.
Desenvolvi artes e cantigas para nos deixarem concluir, mas sob premissa de obter uma licença do Arcebispo para o cura não ter sensaboria por ter indevidamente dado a licença!”
Informa também que, desta vez, o mau tempo e a chuva intensa lhes foi favorável, «porque assim o povinho desapareceu da rua e não tivemos nenhuma manifestação».
Descreve as repetidas vezes que está com o fotógrafo, que a licença continua a tardar, mas descansa o amigo, referindo-se ao arcebispo: “Desse nos ocupamos. Sobretudo se temos de voltar lá, como receio, só com a licença do arcebispo em mão. Como se vê o caso não foi simples e não está concluído”.
Nas cartas dá conta da exigência do fotógrafo, para quem alguns dos clichés estão perdidos, e adianta que as fotografias “têm que se repetir e com reflector por causa dos pregos das tapeçarias que fazem sombras nas fotografias” e “a licença deve demorar uns 8 dias e mais o imprevisto”, acrescenta, cauteloso com falsas expectativas, mas firme nas suas intenções, e informando ter de ir a Bruxelas, adianta: “Isto porém não atrasa o nosso caso pois o fotógrafo logo que receba a permissão do arcebispo vai imediatamente ali sem esperar o meu regresso”.
É natural que Reynaldo dos Santos lhe peça as fotos que Alfredo da Silva lhe envia, mesmo com o exigente fotógrafo a não as considerar de qualidade. O arcebispo de Toledo continua sem dar notícias. No meio das suas peregrinações profissionais, informa ter de se deslocar a Sevilha, mas “sexta-feira estarei aqui de novo e se, como espero, tiver já então a licença imediatamente no 1.º dia bom, coisa que tem havido agora, farei expedir fotógrafo e todo o material necessário de projecção e reflexão de luz para se obterem fotografias capazes”.
Finalmente, a 4 de Dezembro de 1924, escreve entusiasmado: “acabo de falar com o Mello Barreto que me disse ter já a licença para o fotógrafo e que ma ia enviar, apresso-me, pois, a dar-lhe a interessante notícia. Hoje mesmo ficará a licença no fotógrafo”.
Verifica-se que Alfredo da Silva se rodeou das mais influentes pessoas para lograr êxito na sua missão, que, em última análise, constituiu uma empreitada de planeamento como as que estava habituado, desta feita com especialistas de diferentes áreas da sua zona de conforto como industrial: um embaixador, um historiador, futuro director do Museu do Prado, e Mariano Moreno, uma lenda da fotografia que se dedicou a imortalizar o património histórico e artístico em Espanha, com um particular interesse na iconoclastia.
As dificuldades causadas pela demora na obtenção da licença foram depois compensadas em carta dirigida a Reynaldo dos Santos, onde o cardeal arcebispo de Toledo, Enrique Reig y Casanova, lhe agradece o trabalho de investigação sobre as tapeçarias de Pastrana.
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