Freud explicava os sonhos como uma sucessão de imagens disfarçadas de desejos reprimidos, outros defendem que são réplicas de experiências reais que se misturam durante o sono e ajudam a consolidar a memória, e a hipótese de serem um meio para “domesticar” as nossas emoções é igualmente considerada. Por regra, no entanto, são vistos pela neurociência atual como um epifemómeno, algo inútil produzido pela atividade neural enquanto dormimos, sem propósito aparente.
Não é essa a visão do neurocientista Erik Hoel, da prestigiada Universidade Tufts, no estado norte-americano de Massachusetts, que avança com uma nova teoria sobre a função biológica dos sonhos, principalmente os mais bizarros. Diz ele que são uma forma de o cérebro nos preparar para acontecimentos inesperados.
“A vida pode ser entediante, às vezes. Os sonhos existem para impedir que a pessoa se ajuste demasiado ao modelo do mundo”, sustenta Erik Hoel. Nesta linha de raciocínio, quanto mais rotineiro é o dia a dia, o que muitas vezes coincide com a velhice, maior a tendência para a ocorrência de sonhos mais estranhos, precisamente para contrabalançar a diminuição dos estímulos durante o período em que permanecemos acordados.
A hipótese do cébero sobreajustado (overfitted brain hypothesis, no original, em inglês), como Hoel designa a sua teoria, divulgada na semana passada num artigo publicado no jornal científico Patterns, defende que a rotina diária provoca como que uma habituação excessiva ao que nos rodeia, forçando o corpo humano (e o de outros mamíferos) a atuar, através dos sonhos, de modo a lidarmos melhor com acontecimentos caóticos que podem surgir a qualquer momento.
No artigo agora publicado para sustentar a sua tese, Hoel compara esta função biológica dos sonhos ao fenómeno de sobreajuste das máquinas que ocorre nos processos de deep learning ligados à inteligência artificial, em que os cientistas introduzem variáveis inesperadas para criar problemas diferentes e testarem a capacidade de resposta e adaptação perante novos dados. Em vez de limitar a aprendizagem da máquina a um determinado padrão familiar, é preciso introduzir estímulos e desafios para ela não ficar fechada nesse conhecimento.
Hoel acredita que os sonhos têm o mesmo tipo de propósito no ser humano, ao funcionarem como esse elemento desestabilizador que instiga o cérebro a treinar-se para o imprevisível. “É a própria estranheza dos sonhos, diferente da experiência de quando estamos acordados, que lhes confere sua função biológica”, alega o neurocientista, contrariando assim a ideia prevalecente de que sonhar não passa de uma espécie de efeito secundário do sono sem qualquer função associada.