“Longe de ter sido uma privilegiada, como era apresentada na época, Nadia foi uma vítima do regime.” Stejarel Olaru não faz esta afirmação de ânimo leve. Para escrever o livro Nadia si Securitate (Nadia e a Securitate), o historiador consultou milhares de relatórios da temida agência da polícia secreta romena, em que abundam as denúncias e as conversas telefónicas sobre a atleta que chamavam pelo nome de código “Corina”.
A jovem prodígio que, aos 14 anos, foi a primeira ginasta a obter a classificação máxima de 10, nos Jogos Olímpicos de Montreal de 1976, vivia muito longe do conto de fadas propagandeado pelo regime do ditador Nicolae Ceausescu. Os documentos, recentemente desclassificados, revelam a “relação abusiva” do treinador da seleção de ginástica romena, Bela Karolyi, para com Nadia Comăneci e as restantes atletas de elite.
“As miúdas eram agredidas com tanta força que sofriam hemorragias nasais”, lê-se num dos relatórios, de 1974, que relata “o terror e a brutalidade” impostos por Karolyi. A humilhação era também uma constante. Um antigo médico da seleção, entrevistado por Olaru para este livro agora lançado na Roménia, acusa o treinador de as tratar com frequência por “vacas” e “idiotas”.
Tudo isto era conhecido pela Securitate que não se limitava a ter agentes a vigiar Nadia em permanência. A polícia secreta recolhia igualmente informações junto de médicos, de responsáveis da federação de ginástica e de elementos da sua própria equipa. Um pianista e um coreógrafo foram duas das fontes privilegiadas da polícia secreta, explicou à AFP o historiador.
Não é a primeira vez que se ouve falar de abusos, físicos e psicológicos, por parte de Bela Karolyi e da sua mulher, Martha. Nadia, que tem hoje 59 anos e é cidadã americana, quase nunca se referiu ao assunto, mas foram muitas as atletas que, nas últimas décadas, denunciaram os maus tratos por parte do casal de treinadores. E não apenas romenas, como se vai ler.
Karolyi defendeu-se sempre das acusações com as medalhas obtidas pelas atletas. “As minhas ginastas são as mais bem preparadas do mundo, e elas ganham, é tudo o que conta”, dizia. “Por natureza, nunca estou satisfeito”, justificava-se. “Nunca é suficiente, nunca.”
Certo é que, apenas seis meses depois de Montreal, Nadia recusou continuar a ser treinada por ele. Bela Karolyi era o seu treinador e mentor desde os 6 anos.
Agora, com a publicação de Nadia si Securitate, fica-se a saber que a ginasta deu uma entrevista em 1977, em que reconhecia ser “insultada” constantemente pelo treinador e que chegara a ser esbofeteada por ter engordado 300 gramas. “Passaram-se demasiadas coisas […], não posso mais”, dizia nessa entrevista que não foi publicada. Acabou por ir parar aos arquivos da Securitate porque a casa de Nadia, em Onesti, estava sob escuta.
Em determinada altura, a polícia secreta também teve acesso ao seu diário pessoal, onde ela descrevia as agressões todas as ginastas sofriam quando cometiam um erro durante um exercício. E como treinavam até à exaustão e nem sempre eram observadas por médicos quando se lesionavam.
A mãe de Nadia, aliás, chegou a apresentar queixa na federação, tendo mesmo solicitado uma audiência com Ceausescu que foi anulada à última hora, sem qualquer justificação. O mesmo regime que promovia Comăneci como uma “heroína do trabalho socialista” fingia não saber o que se passava durante os seus treinos – “por puro calculismo político”, lamenta Olaru.
O próprio treinador era vigiado pela Securitate, conta o historiador. O facto de Bela Karolyi pertencer à minoria étnica magiar fazia com que a polícia secreta suspeitasse que levasse a cabo atividades hostis contra a Roménia.
Em 1981, Bela e Martha desertaram para os Estados Unidos, acabando por ser convidados a treinar as ginastas da seleção nacional. Durante décadas, foram reverenciados pelas medalhas que ajudaram a conquistar, mas, recentemente, o escândalo que levou à prisão do médico da Federação Americana de Ginástica, Larry Nassar, por abuso sexual de várias jovens atletas e pornografia infantil, não os poupou. Afinal, era no seu rancho, no Texas, que as atletas de elite estagiavam.
No início de 2018, após grande pressão da ginasta olímpica Simone Biles, o rancho deixou de ser o centro de treino da seleção de ginástica feminina dos Estados Unidos e um dos locais de eleição do comité olímpico americano. Até hoje, os dois treinadores negaram ter tido qualquer envolvimento no escândalo que deu origem a um documentário da Netflix, mas várias ginastas garantem que eram ambos abusivos e que fomentavam uma cultura de medo.
“Há uma sensação estranha assim que se põe os pés no Rancho Karolyi”, contava à CNN a ex-ginasta Mattie Larson, antes do seu encerramento. “É muito remoto e, em caso de emergência, o hospital mais próximo fica tão longe que só de helicóptero. Para lá chegar, é preciso guiar por uma estrada de terra, durante uma eternidade… Além disso, não há rede de telemóvel. O rancho está completamente isolado, e é de propósito. É assim que os Karolyi querem. O completo distanciamento do mundo exterior, além dos adultos negligentes, fez do rancho o ambiente perfeito para que os abusadores e os molestadores prosperassem.”
Nos Estados Unidos, onde Nadia se exilou em 1989, poucas semanas antes da revolução na Roménia, este novo livro foi recebido como a confirmação de que os métodos de Bela Karolyi já vinham de trás.
Quanto à ginasta, não deu, para já, nenhuma entrevista sobre o livro, mas disse à AFP que esteve em contacto com Olaru e respondeu a algumas das suas questões. O historiador vê-a como uma mulher “rebelde” e uma “lutadora” que foi capaz de recuperar das provações por que passou. “Ela fez o que tinha de fazer para cumprir as suas ambições.”