Rui Nunes foi, ao lado de outros especialistas, uma das pessoas que colocou questões relativamente à proposta da Comissão Europeia para a criação do passaporte sanitário, um documento que comprova a vacinação contra a Covid-19 e, por isso, permite viagens entre países. Apesar de o passe verde ser opcional – e pensado, sobretudo, para ser usado no transporte aéreo – os especialistas afirmam que este documento levanta várias questões éticas e de proteção de privacidade.
“Não ponho em causa a importância do passe verde para relançar a economia e o turismo e restabelecer o tráfego áereo. Mas não deixa de ter problemas éticos, que devem ser prevenidos”, afirma o especialista, presidente da Associação Portuguesa de Bioética. Um deles, defende, tem a ver com a necessidade de se garantir, a par da vacinação, a testagem generalizada e a custo zero, no sentido de não descriminar ninguém.
“Uma coisa é a vacinação contra a febre amarela, ou seja, é um ato que depende de mim vacinar-me ou não contra esta febre. Relativamente à vacinação contra a Covid-19, não é escolha de ninguém, há um sistema de prioridades sociais definido pelo Estado, que permite que uns cidadãos sejam vacinados e outros não. Não podemos descriminar uns em prol de outros, não pode haver cidadãos de primeira e de segunda”, defende Rui Nunes.
O passaporte sanitário vai incluir informações pessoais como o nome e a data de nascimento do passageiro, assim como os dados referentes à vacina (a marca e a data de inoculação), o que levanta outras questões ao nível da privacidade. “Individualmente, esses dados não fazem muita diferença mas, como se percebe, são de enorme apetência quando se trata de centenas de milhões de pessoas, nomeadamente para as empresas tecnológicas e, portanto, é preciso certificar-se que estes dados pessoais e íntimos são tratados por entidades públicas que garantam a total privacidade desses mesmos dados, de acordo com o regulamento geral de proteção de dados da União Europeia”, afirma Rui Nunes.
Em declarações à SIC Notícias, Jorge Soares, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e presidente e Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, defendeu que esta polémica é “injustificada” e referiu não encontrar problemas de ética associados a este documento.
Contudo, de acordo com Rui Nunes, há ainda outra dimensão “especialmente problemática” no que diz respeito ao passaporte digital: se, por um lado, é reconhecida a legitimidade deste passe verde para o tráfego aéreo, o mesmo não acontece com a sua utilização em locais como supermercados, campos de futebol ou espaços para espetáculos culturais. “Temos de encontrar soluções criativas mas não descriminatórias e que não atentem contra os direitos de cidadania, que são a marca genética da Europa”, diz o especialista. “No caso português, onde nem sequer existem casos, pelo menos óbvios, de ideais anti-vacinação, não se deve restringir a liberdade de acesso das pessoas a determinados espaços por uma escolha que não é delas”, acrescenta.
Segundo o especialista, pode ainda estar a abrir-se a porta a outras intenções de controlo social no futuro, como o acesso a determinados espaços por reconhecimento facial ou o controlo do teletrabalho dos funcionários das empresas. “É preciso muita cautela e muita prudência” na realização desta medida, defende Rui Nunes.
À VISÃO, Manuela Niza Ribeiro, oficial de ligação na International Center for Migration Policy Development, afirma haver outro problema com este documento, referindo que “criar um “passaporte” deste tipo é, desde logo, limitar os movimentos de países mais pobres, aos quais as vacinas chegarão a conta-gotas, se é que chegam e impedi-los de imigrar”.