“Não tenham medo.” As palavras do sacerdote que encomenda o corpo de José Inácio Azevedo, 91 anos, ecoam no parque de estacionamento deserto do crematório de Alcabideche, no concelho de Cascais. Levam-nas o vento gelado de janeiro e o cansaço da espera de cinco dias entre o momento em que a pandemia levou a sua alma e esta manhã silenciosa em que, finalmente, a família conseguiu dizer o último adeus.
Junto da entrada para o crematório, João e Gisela Tomé, 62 e 60 anos, despedem-se do sogro e pai que descansa, enfim, numa urna onde o selo branco com as palavras “risco biológico” fala quase mais alto do que o crucifixo poisado sobre ela ou as coroas de flores enviadas pelos familiares que não puderam estar presentes.
É uma cerimónia feita de ausências. Faltam o toque, a família, os amigos, o tempo e o espaço para se morrer e para se deixar morrer. Faltam também poucos minutos para que a semana de espera acabe e poucos dias até à missa de sétimo dia, que quase coincidiu com a data da cremação.
Em tempos de pandemia, as lágrimas são enxugadas pelo algodão das máscaras e, neste caso, pela filha do casal, a única que pode ultrapassar os dois metros de distância, vazios de abraços, que separam a família das duas cuidadoras, que acompanharam José Inácio nos últimos três meses, também presentes na cerimónia. “Vi o meu pai há 15 dias, no hospital, e acabou por ser a despedida que se arrastou até hoje. Fizeram tudo o que podiam, mas há gente a mais e percebi que, com a idade que ele tinha, estava a ocupar uma cama”, afirma Gisela entre lágrimas, encontrando ainda força para elogiar o carinho com que enfermeiros e médicos a trataram durante as últimas semanas de vida do pai.
José Inácio Azevedo é apenas uma das 167 pessoas que perderam a vida para a Covid-19 no dia 17 de janeiro, e a sua família uma das muitas que, ultimamente, se tem visto obrigada a esperar vários dias até poder iniciar realmente o luto, atravessando o que Gisela apelida de “uma morte sem rosto”. O marido lamenta: “Isto nem é bem uma despedida, é cruel. Faz-me lembrar a Guerra Colonial, quando era miúdo, e não sabíamos sequer se os corpos nas urnas eram mesmo das pessoas da nossa família.” A guerra contra o vírus não se faz ao som de uma G3, mas do silêncio esmagador que enche o espaço entre a vida e a morte, separadas pelos altos muros de um cemitério completamente deserto.
Dias de muito trabalho
A alguns quilómetros de distância, na central logística da Servilusa, na Buraca, a batalha é bastante diferente, mais rumorosa e pautada pela azáfama de um batalhão que tenta gerir um volume de trabalho nunca antes experimentado.
No mês mais mortífero desde o início da pandemia, com o número diário de óbitos por Covid-19 a ultrapassar as duas centenas, muitas agências funerárias, cemitérios e crematórios viram-se obrigados a aumentar equipas e a alargar horários de funcionamento para conseguirem dar resposta. “Tivemos de refazer todas as nossas escalas e turnos, aumentar em 10% a equipa de operacionais, acrescentar 32 câmaras frigoríficas, em Lisboa, e 16, no Porto, e alargar o horário de funcionamento dos crematórios que, em vez de trabalharem das nove às seis, passaram a abrir às oito da manhã e a fechar à meia-noite”, revela Paulo Carreira, diretor geral das agências funerárias Servilusa, enquanto entra na central logística da Buraca.
Aqui, o dia começou ainda antes do nascer do Sol. É que a cremação de José Inácio não foi a primeira nem a última das oito que o crematório de Alcabideche, gerido pela Servilusa, fará ao longo do dia. Vestidos como astronautas, com um fato em TNT, óculos de plástico, dois pares de luvas e duas camadas de proteção nos pés, tudo isolado com fita-cola, os técnicos preparam-se para o dia que os espera.
“Todos os dias temos, pelo menos, quatro funerais Covid”, assegura Pedro que trabalha como assistente operacional na Servilusa e não se lembra de um ano com tanto trabalho. “Já antes do Natal começámos a sentir um grande fluxo, mas não tanto como agora, porque, infelizmente, só agora é que se estão a refletir os efeitos do Natal”, explica, revelando que, apesar de a maioria das pessoas morrer nos hospitais, também há quem morra nos lares ou mesmo em casa.
Enquanto ajuda o colega Nuno a isolar bem as luvas com fita-cola, Pedro ainda comenta: “Dependendo do fluxo de trabalho, podem existir dias em que temos o EPI máximo – usado para funerais Covid e remoções de corpos em hospitais – vestido o dia inteiro. Mas o mais cansativo não é ter de vestir e despir o fato, nem os horários de trabalho; é ver estas famílias que não conseguem dar um funeral digno aos seus entes queridos.”
À entrada da central, do lado direito, um ecrã de computador apresenta o plano do dia. A lista de tarefas está longe de ser curta e se Paulo Carreira assegura que, antes da pandemia, esta se resumia a quatro páginas, hoje tem mais do dobro. Dezoito funerais, dez remoções, cinco depósitos. As marcações enchem nove folhas de Excel que se sucedem ritmada e repetidamente no ecrã, quase como a subida exponencial do número de mortes, à qual nos habituámos a assistir. Não há nenhuma página sem referência à pandemia. Em seis das dez colunas, destinadas ao agendamento de remoções de corpos em hospitais, aparece a indicação: “Falecido com Covid-19, uniformizar com EPI completo, colocar a urna no piso -3 e descontaminar o exterior.”
A Pedro e Nuno, além da cremação de José Inácio, espera-os ainda, até ao final do dia, a remoção de um corpo do Hospital São Francisco Xavier e dois do Hospital de Cascais, todos vítimas da pandemia. “Só ontem contratámos mais de 40 funerais, 16 deles Covid, 14 dos quais em Lisboa, e anteontem foram 33 no total, sendo que 15 eram Covid”, comenta Paulo Carreira.
Mais câmaras frigoríficas
O problema dos atrasos nos funerais prende-se com vários fatores, cada um dos quais difícil de controlar. Se, por um lado, o número de mortes por Covid-19 tem vindo a aumentar desde o início do ano, tendo sido, na última semana, registado um número superior a 1 600 óbitos, por outro, Paulo Carreira assegura que cada vez mais morrem pessoas por doença não Covid-19, “sobretudo em casa”. Ao excesso de mortalidade geral, junta-se uma cadeia composta por vários elos, a qual pode ser difícil de controlar. “Primeiro, há a questão de o próprio hospital ter capacidade para gerir o seu processo logístico para libertar o falecido, depois a funerária tem de fazer o registo de óbito em articulação com a conservatória e, por fim, tem de haver disponibilidade do crematório e do cemitério, algo que, neste momento, pode demorar até cinco dias.”
Apesar de assegurar que os crematórios da região de Lisboa alargaram os horários, Carlos Almeida, presidente da Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL), refere que estes “não podem funcionar ininterruptamente” e que a média de sete cremações diárias que se está a fazer, neste momento, “é o limite”. Além disso, “nos meios rurais, onde existe um coveiro para três cemitérios, torna-se impossível ter cerimónias contemporâneas em locais diferentes”.
Por estas razões, o presidente da ANEL refere que “não há outra solução que não seja preservar os corpos”, algo que implicará um reforço na resposta ao nível de arcas frigoríficas, não só em hospitais como nas funerárias. Neste sentido, à semelhança do que havia feito em março, como forma de prevenção, a Servilusa aumentou a capacidade de câmaras frigoríficas, passando de 47 para 98 espaços (32 em Lisboa e 16 no Porto). “Ainda não ficámos com todos ocupados, mas, a este ritmo, vamos ficar”, assegura Paulo Carreira.
Muitos hospitais também já começaram a reforçar este tipo de resposta. É o caso do Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) que, no início do ano, ampliou a sua morgue, “com capacidade para 30 corpos”, através do aluguer de um segundo contentor frigorífico externo que veio juntar-se a um primeiro, requisitado na primeira vaga da pandemia. Uma vez que cada um destes contentores tem capacidade para “12 a 20 corpos”, o hospital assegurou à VISÃO que ainda não se encontrava num ponto em que necessitaria de recorrer às câmaras frigoríficas das empresas lutuosas, até porque, “se for necessário, em 48 horas é possível fazer chegar um novo contentor”.
Também o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, “como forma de prevenção”, acrescentou três câmaras de frio no Hospital Curry Cabral, abrindo 50 novas vagas que se juntaram às 48 já existentes na casa mortuária do Hospital de São José. Já o Beatriz Ângelo, em Loures, adquiriu, desde o início da pandemia, três contentores frigoríficos. O Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte instalou, no início da semana passada, dois contentores junto à casa mortuária do Hospital de Santa Maria; o Hospital de Cascais alargou a capacidade da casa mortuária, logo no início da pandemia, graças à aquisição de um contentor frigorífico em parceria com a Câmara Municipal de Cascais; e o Centro Hospitalar Barreiro Montijo adquiriu dois contentores frigoríficos “para assegurar o melhor acondicionamento dos corpos dos utentes falecidos, incrementando desta forma a capacidade de acolhimento de cadáveres na Casa Mortuária e acautelando eventuais necessidades futuras”.
Paulo Carreira acredita que muitas funerárias entrarão em rotura, “mas não em número suficiente para pôr em causa toda a cadeia”. Ainda assim, defende que os profissionais do setor deveriam ser considerados prioritários na vacinação contra a Covid-19, apontando para o facto de os profissionais do setor estarem constantemente em ambientes de risco, além de muitas funerárias serem pequenos negócios familiares que podem ter de fechar temporariamente, caso surja um surto nas equipas, deixando as pequenas localidades com menos oferta. “Neste sentido, propomos a vacinação prioritária, porque os funerais pertencem à cadeia sanitária do País e, por questões de Saúde Pública, não podem falhar.”
O fim dos velórios
Houve apenas algo capaz de imprimir uma sombra mais profunda no olhar de Gisela do que aquela que o peso da espera já havia conseguido. O facto de não ter podido velar José Inácio. “É impessoal, é frio, é horrível não ter sequer o direito de velar o meu pai.” A alguns metros de distância do sofá onde está sentada enquanto partilha estas palavras, uma única capela mortuária tem as portas abertas. As poucas pessoas reunidas no seu interior choram alguém que não morreu devido à pandemia e, por isso, pode ainda ter direito a uma breve vigília de duas horas antes do funeral.
“O velório não é um direito, mas uma necessidade que influi também na Saúde Pública. Para processarmos o luto, é muito importante a despedida”, comenta Paulo Carreira. Apesar de, nos funerais Covid, os velórios já não serem permitidos, a ANEL defende que estes deveriam terminar também para os funerais não Covid. “Por muito que custe aos portugueses, penso que devia ser suprimida a questão das vigílias ou dos velórios”, defende o presidente Carlos Almeida, comentando: “As pessoas acabam por ir entrando cinco a cinco dentro da sala, mas, no fim, estiveram no mesmo espaço mais de 30 pessoas.”
Também Paulo Carreira admite que “os velórios de 30 horas que se faziam são impensáveis, por causa dos aglomerados que podem causar”, mas sugere uma vigília, de duas ou de três horas, “estritamente com a família mais chegada para que esta possa fazer a sua homenagem e despedir-se, antes de partir diretamente para o crematório ou cemitério”.
Para Gisela e João Tomé, bastaria eles terem tido a “possibilidade de dar uma despedida com o merecimento a que qualquer ser humano que tenha de partir tem direito”. Resta-lhes levar consigo as palavras de despedida do sacerdote, no final da cerimónia. “Um bom ano, com paz e saúde.”