Em fins de novembro de 2019, foi notícia uma operação da GNR que, após dois meses de investigação, apreendeu 98 cães e 11 gatos, resgatados a uma mulher que os tinha amontoados na sua habitação, na Arruda dos Vinhos, distrito de Lisboa. “Os animais viviam em más condições higieno-sanitárias, sem qualquer tipo de assistência médico-veterinária, encontrando-se a superfície do alojamento coberta de dejetos”, descreveu a GNR, na ocasião, em comunicado.
Na mesma altura, a União Zoófila (UZ) anunciou nas redes sociais que os animais tinham ficado à sua responsabilidade, para “limpar-lhes feridas, tratá-los, desparasitá-los, vaciná-los, esterilizá-los e encaminhá-los para adoção”. Naquela comunicação, a UZ também pediu donativos para a compra, por exemplo, de desparasitantes internos e externos, vacinas, ração especial, medicação, casotas, camas confortáveis e mantas quentes.
Passado mais de um ano, verifica-se que três dos animais (dois cães e uma gata) não resistiram às doenças que traziam e morreram, e que os 96 canídeos e dez felinos sobreviventes ainda se encontram nas instalações da UZ, necessariamente em “boxes”. Isto porque a procuradora titular deste processo-crime, do Ministério Público de Vila Franca de Xira, não respondeu aos vários pedidos de autorização com vista ao encaminhamento dos animais para adoção.
“Apesar de devidamente cuidados, estes cães e gatos estão sujeitos ao stresse de um abrigo, e, quanto mais tempo passa, mais oportunidades perdem de serem adotados, até porque envelhecem”, dizem à VISÃO ativistas pelos direitos dos animais que conhecem este caso. Que também estranham as diferentes posições daquela magistratura perante as mesmas situações: por exemplo, no caso dos galgos subnutridos e doentes apreendidos, em fevereiro do ano passado, ao cavaleiro tauromáquico João Moura, o procurador titular do inquérito-crime, do Tribunal de Portalegre, viabilizou rapidamente a adoção dos 17 animais sobreviventes, logo que tiveram alta clínica, processo que se concretizou em apenas seis meses.
Mas, no caso da Arruda dos Vinhos, a procuradora do Tribunal de Vila Franca de Xira, além de não responder aos pedidos de encaminhamento dos 96 cães e dez gatos para adoção, promoveu a sua “perda” a “favor do Estado”. Fê-lo no passado dia 5 de janeiro, quando exarou o despacho de acusação contra A., 57 anos, a mulher que foi alvo da referida operação da GNR, de resgate dos 98 cães e 11 gatos que tinha amontoados em condições deploráveis na sua habitação.
“Estes cães e gatos estão sujeitos ao stresse de um abrigo, e, quanto mais tempo passa, mais oportunidades perdem de serem adotados, até porque envelhecem”, dizem ativistas pelos direitos dos animais
É certo que aquela magistrada (para lá de acusar A. de 109 crimes de maus-tratos a animais de companhia e de três crimes de maus-tratos a animais de companhia, “agravados pelo resultado” – ou seja, a morte de três deles) promoveu a “perda a favor do Estado” dos 96 cães e dez gatos em causa, “tendo em vista a sua adoção”. Mas não resolveu o problema – antes chutou a necessária autorização para o juiz ao qual o processo for atribuído.
E, no entanto, a procuradora em questão “tinha fundamentos para libertar os animais do processo e encaminhá-los para adoção”, diz uma jurista especializada nestes casos. Quando ocorreu a operação da GNR, a arguida declarou, como consta dos autos, não se opor ao encaminhamento, para adoção, dos animais que na altura lhe foram apreendidos. “Só com isso, o problema estava à partida resolvido”, acrescenta aquela jurista.
Mas o próprio Código de Processo Penal (CPP) sofreu alterações para “evitar uma permanência prolongada em canis e gatis” de animais resgatados de maus-tratos. O n.º 1 do artigo 186 do CPP, por exemplo, determina que “logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais (…) apreendidos são restituídos a quem (…) tenha sido nomeado seu fiel depositário”, no caso a UZ. “Quando deixa de se justificar a apreensão, tem de se dar um destino a esses animais, que é obviamente a adoção”, interpreta e esclarece a jurista contactada pela VISÃO.
É o que acontece com estes 96 cães e dez gatos. “Já não têm qualquer utilidade para a prova dos factos – os animais foram, entretanto, tratados e alimentados, e deixaram de estar na situação fragilizada em que se encontravam na altura da apreensão”, diz aquela jurista. “O necessário suporte documental de tudo o que ocorreu está já reunido nos autos do processo”, acrescenta.
A esperança da UZ e dos outros ativistas pelos direitos dos animais conhecedores deste caso reside agora no juiz ao qual o processo for entregue. Esperam que o magistrado rapidamente autorize o início das adoções dos 96 cães e dez gatos.
Se assim não for, os animais arriscam-se a ter de aguardar a conclusão do processo, significando isso mais um longo período de tempo, que irá das sessões de julgamento à sentença e a um eventual recurso – o que, insistem os ativistas, “diminui as hipóteses de adoção”. E reforçam: “É preciso que estes 96 cães e dez gatos tenham, quanto antes, um lar e uma família, porque se sabe que a permanência prolongada em abrigos, mesmo em boas condições, é um fator de enorme stresse e de tristeza para os animais.”