Luísa Alves nunca esteve infetada com o novo coronavírus. A funcionária do supermercado dos Olivais, na zona oriental de Lisboa, foi a primeira dirigente sindical a denunciar a falta de condições para trabalhar em tempos de pandemia e as falhas dos planos de contingência das empresas e a quem, de seguida, foi instaurado um processo disciplinar que levou ao seu despedimento, em novembro. Mas, como Luísa recorreu da decisão, interpondo uma providência cautelar através do sindicato, para travar o despedimento, no próximo dia 13 de janeiro, verá iniciar-se o julgamento em tribunal do processo que a opõe à entidade patronal.
No início do verão passado, “perante as denúncias que lhe chegaram dos trabalhadores – numa altura em que algumas lojas de Lisboa chegaram a ter cerca de 30% dos seus trabalhadores infetados – Luísa Alves denunciou a situação ao sindicato e também publicamente”, esclarece Orlando Gonçalves, coordenador da direção regional de Lisboa do CESP – Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal.
Aos ouvidos de Luísa chegaram relatos de vários casos em que os supermercados não eram encerrados quando tinham conhecimento de alguém infetado e os trabalhadores eram ameaçados e coagidos a assinar um documento em como não relatariam o que se passava a nenhuma autoridade, Direção-Geral da Saúde (DGS) incluída.
Como nunca ninguém conseguiu mostrar o referido papel nem mesmo tirar-lhe uma fotografia, como explica Orlando, Luísa Alves foi alvo de um processo disciplinar. “Luísa falou como dirigente sindical e não como trabalhadora. Foi apenas porta-voz, por isso o processo deveria ser contra o sindicato. Estou confiante porque um trabalhador não pode ser despedido por estar a prestar depoimento por ser dirigente sindical”, acrescenta Orlando Gonçalves. Com cerca de uma dezena de casos de dirigentes e delgados sindicais com processos disciplinares por fazerem denúncias e exercerem a atividade sindical no seu local de trabalho, “as empresas têm aproveitado muito bem a pandemia para fazer uma grande pressão sobre a estrutura sindical”, acrescenta o coordenador da direção regional de Lisboa do CESP.
Quanto menos se souber, melhor
Em termos gerais, o CESP ouviu muitas queixas sobre o incumprimento das obrigações em termos de segurança dos trabalhadores, incluindo a existência de infetados com Covid-19 nos postos de trabalho, mas com o passar dos meses as empresas foram começando a aplicar as propostas e a reforçar a existência de álcool-gel, máscaras, acrílicos, distanciamento físico e limitação de clientes dentro das lojas. “São situações que, até meados do verão, recebemos várias denúncias anónimas, na ordem das dezenas. São situações que não conseguimos comprovar, mas quando queremos concretizar as pessoas recuam. Há pessoas que têm medo de ir trabalhar”, alerta Orlando Gonçalves.
Os patrões e as chefias “querem passar a ideia de que as lojas são imaculadas” e os funcionários só percebem que algo se passa quando desaparece uma mão cheia de trabalhadores (que foi mandada para casa) e aparecem outras caras novas. “Nunca percebemos como no centro de distribuição da Sonae na Azambuja houve 200 trabalhadores infetados e os armazéns nunca fecharam”, lembra o dirigente.
Sem referirem os nomes das cadeias de supermercados e resguardando sempre a identificação dos trabalhadores, são várias as histórias que os dirigentes sindicais continuam a escutar.
Num hipermercado da zona centro uma trabalhadora testou positivo à Covid-19. O seu chefe não deixou as trabalhadoras que com ela estiveram em contacto ligar para a DGS. Pagou do seu bolso os testes e, como duas outras colegas testaram também positivo, foram para casa com a recomendação de não ligarem para a DGS. O patrão evitou assim o fecho do hipermercado, mas ao não ligarem para as autoridades de saúde ficaram por testar filhos, maridos e outros familiares/pessoas com quem conviveram.
Ana Paula Cruz, operadora de supermercado e dirigente sindical no distrito de Santarém prevê que daqui para a frente a situação se complique. “Com a ideia de que há vacina vai começar a haver maior relaxamento das medidas de prevenção.”
Suspeitas não chegam
Durante a primeira vaga, num supermercado no distrito de Leiria, por causa de uma trabalhadora suspeita de estar infetada, cerca de cinco trabalhadores que tinham estado em contacto direto com ela foram mandados para casa. Neste caso a principal preocupação não era o facto de estarem ou não com Covid-19, mas saberem quem lhes pagava os dias ou justificava as faltas.
Mais recentemente, no outono, num hipermercado em Santarém houve dois casos suspeitos de infeção, a trabalharem na mesma secção, que foram para casa por prevenção, mas os restantes colegas ficaram a trabalhar até saberem se esses dois colegas testariam positivo, o que não veio a acontecer. Quem se manteve a trabalhar “ficou com o coração nas mãos com a possibilidade de transmissão à família”.
Também no distrito de Santarém, um casal, em que cada um trabalha num supermercado diferente, viu o filho pequeno vir da escola para casa para ficar em isolamento profilático. Quando os pais questionaram o delegado de saúde se também deveriam ficar isolados, este disse-lhes que “estavam a arranjar desculpas para não trabalharem”. O teste negativo da criança fez com que o desfecho do caso não fosse grave.
Uma trabalhadora de supermercado, doente de risco à espera de um transplante de rim, ouviu os recursos humanos da sua empresa dizer-lhe para pedir baixa médica à sua médica de família à revelia do profissional da medicina do trabalho que deu ordens para ficar em casa. Numa lógica de poupar algum dinheiro, passaria a ser a Segurança Social a pagar à funcionária, em vez de ser a empresa.
Em Alcobaça, num supermercado médio-grande, Ivo Santos dirigente sindical a coordenar a direção regional de Santarém e Leiria, teve conhecimento de outra situação. Em setembro, a um primeiro caso positivo seguiram-se outros e o receio de o vírus estar a espalhar-se na comunidade. Só após a intervenção do presidente da câmara e das autoridades de saúde e policiais fecharam o estabelecimento para desinfeção, obrigando a empresa a testar todos os funcionários, cerca de uma centena. Entre eles, mais um caso positivo de alguém que trabalhava na Cafetaria. Com todos os trabalhadores em isolamento profilático, o supermercado reabriu com pessoal vindo de outras lojas.
Estes exemplos do que se passa na grande distribuição colocam várias dúvidas a Ivo Santos: “Ou os trabalhadores são muito resistentes ou o vírus não lhes afeta. A grande distribuição nunca fechou, não é um pouco estranho? No entanto, estes casos parecem-me pontuais. As situações mais anómalas aconteceram no início da pandemia. No primeiro estado de emergência havia a tentação de contornar as regras.”
Mas, o que faz um dirigente sindical quando recebe uma denúncia deste género? Segundo explicação de Célia Lopes, dirigente sindical do CESP, comunicaria ao delegado de saúde da zona e ao Procurador-Geral da República, pois só este pode dar início a uma investigação. Assim que um funcionário testa positivo, os laboratórios clínicos públicos e privados têm de dar conhecimento à DGS e as pessoas são contactadas pelo médico, seja para emitir a baixa médica, seja para definir o tempo de isolamento e monitorizar a progressão da doença. Segue-se o rastreio dos contactos de risco, que mais ou menos moroso irá chegar aos colegas de trabalho.