Até este 2020, o cenário era absolutamente inimaginável. Eis que, de repente, uma pandemia se abate sobre as nossas vidas e, num ápice, foi preciso trabalhar, educar, alimentar e ainda ajudar a fazer os trabalhos de casa nessa espécie de espaço de cowork familiar em que se converteram as salas de estar de uma boa parte dos portugueses. A vida dos pais foi mais difícil, a dos filhos também, a dos professores não foi melhor — e, sabe-se, que, pelo meio, houve muitos problemas.
Por exemplo, boa parte dos alunos do 1º ciclo (45%) e do pré-escolar (72%) não iniciou qualquer processo de ensino à distância, nas duas últimas semanas do segundo período, depois de as escolas terem fechado. E que a seguir às férias da Páscoa, durante o terceiro período, mais de metade dos professores (54,8%) continuava sem conseguir contactar os seus alunos. Nada que ainda assim abale a convicção de que crescemos todos muito, mais do que nunca, em tão pouco tempo. Essa a grande conclusão do estudo sobre o “O papel da escola e dos educadores”, desenvolvido pela Iniciativa Escola Amiga da Criança, em parceria com a Porto Business School da Universidade Católica do Porto e a Faculdade de Psicologia da Universidade Católica do Porto. Com mais de 23 mil participações, é apresentado esta quinta-feira, 8, no canal Youtube da LeYa Educação – e pretende dar-nos a perceção dos encarregados de educação sobre o papel da escola, do professor e do aluno, em tempos de Covid-19 e de ensino à distância.
Ali se avança ainda que os pais reconheceram que o esforço dos professores foi ajustado ao ensino em casa. Mas, ao mesmo tempo, depararam-se com o facto de os filhos terem grandes dificuldades de autonomia – o que os levou a envolverem-se mais no apoio ao estudo. Além disso, perante um Secundário absolutamente refém dos exames finais, são quase unânimes (86%): novas formas de acesso ao Superior, precisam-se.
Mais do que é humanamente possível
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Para mais explicações, dê-se então a palavra a Eduardo Sá, 58 anos, psicólogo, especialista em relações familiares, mentor da iniciativa Escola Amiga da Criança – e que, em anteriores entrevistas à VISÃO, já explicara porque as crianças inteligentes têm más notas ou porque o que se pediu aos pais, durante a quarentena, estava a ser humanamente impossível. Provocador q.b, também já por várias vezes lembrou que as mães podem arriscar e errar que, mesmo assim, nunca andarão longe da perfeição – e que, entre a escola e namorar, é muito mais importante namorar.
VISÃO: Não é fácil ser pai, nem professor, nem filho… Como avalia em temos gerais? Tendo em conta a pandemia, parece que até nos saímos bem…
Eduardo Sá: Saímo-nos muito para lá de relativamente bem. É que nós fomos atropelados pela realidade que se impôs e depois chamados para funções que, se nos dissessem que iam acontecer, não acreditaríamos. Foi uma grande mudança. O mais curioso é que foi preciso uma quarentena para que os pais e professores se sincronizassem de uma forma extraordinária. Nunca os professores estiveram tão bem cotados. Ser pais 24 horas por dia também deu noção aos pais de um conjunto de dificuldades dos filhos que não imaginavam. E isso fez com que houvesse uma revisão em alta do trabalho dos professores. Essa é, sem dúvida, a mudança mais significativa: a pandemia fez com que a missão dos professores passasse a ser mais valorizada. Esperemos que perdure.
Costuma dizer que os pais também crescem quando os filhos lhes põem problemas. Isso agora foi mais visível?
Os pais foram engolidos pelas condições que lhes estavam a ser exigidas. Tiveram de trabalhar muito mais do que normalmente. Foi tudo de uma exigência fora do normal.
Mas este momento também mostrou que os alunos não são assim tão autónomos como se pensava. Ficou surpreendido?
Não, nem com falta de autonomia dos filhos nem com o espanto dos pais com isso. Dizem sempre que os filhos são muito autónomos, mas depois acabam por reconhecer que isso é uma maneira de dizer. E acabam sempre por se envolver no estudo e, sobretudo, na questão dos resultados. Aliás, mesmo quando não concordam com este sistema centrado nos resultados, através de exames, acabam por entrar na onda. Mas se todos concordam que este formato tem pouco em consideração as aprendizagens, estranha-se é que não tenha pelo menos havido debate para o alterar.
Era o contexto ideal para se repensar na forma de acesso ao ensino superior?
Sem dúvida, sobretudo atentando a tudo o que foi feito. Diria que em modo alarme somos magníficos. Mudamos mais num mês do que as pequenas reformas trouxeram à escola em muitos anos. Se somos capazes disto, devíamos pegar no que fizemos e mudar a escola. Os alunos de hoje vivem no século XXI e a escola permanece no século XIX. E não é por haver quadros interativos e tablets que a escola é moderna. Há ainda muitas outras características que é importante explorar aliás foi por isso que se criou a Escola Amiga da Criança, para que se atentem numa série de outras questões muito importantes para o desenvolvimento saudável dos alunos.
Devíamos então refletir sobre a missão da escola e recusar de aceitar a ideia de que os exames trazem igualdade?
É que não é verdade. Sabemos que há resultados enviesados. Com a quarentena percebemos ainda que a escola não é um fator de democratização da sociedade. Compreendemos bem que temos uma escola de ricos e de pobres e esta não devia existir. É uma reflexão que podia bem avançar este ano letivo. A escola tem de deixar de ser uma linha de montagem e os alunos têm de poder ir atrás do que os apaixona, porque é assim que se vão destacar. Tem de se insistir nisto para os pais deixarem de ter medo. Não se pode aceitar que se escola uma área para o futuro aos 14 anos quando ainda se é tão novo e tudo muda tanto. Ou acabarão por ficar encurralados.
Diria que o balanço é positivo, mas, e repetiu-o várias vezes, as crianças precisavam voltar à vida. Como avalia o regresso às aulas?
É obviamente muito positivo, mas é preciso atentar no que se está a passar nos recreios. Devia ser declarado estado de catástrofe. Os miúdos trabalham ainda mais do que antes da quarentena e os pais encolheram-se e aceitaram condições que são inacreditáveis. Como ter crianças de dez anos a dizer que a escola não autoriza que levem uma bola, apenas telemóvel e depois passem os recreios na sala, cada um no seu ecrã. Isto também afeta o desenvolvimento educativo.
Diz-se ainda muito que as crianças de hoje não têm a vida de antigamente. É assim? E queremos isso?
Diria que as crianças são iguais. Quando os pais dizem que no tempo deles era de outra forma é porque têm remorsos, porque consideram que tiveram uma infância feliz e querem dar aos seus o que lhes deram a eles. Mas a verdade é que perdemos noção do tempo que não têm para ser crianças. Poucas, muito poucos, têm duas horas para brincar por dia. Os pais puseram as fichas todas na escola e na formação complementar. Há até quem tenha atividades ao sábado. E no domingo lá estão os pais outra vez a querer que estudem. E não pode ser.