Liberdades individuais e saúde pública parecem travar um duelo que não é novo, apesar desta vez revestir-se de uma importância particular, dado que falamos de uma pandemia à escala mundial.
Nos estados Unidos da América, o movimento anti-vacinação cresce dentro das redes sociais, enquanto que, na Austrália, o primeiro ministro afirmou, esta terça feira, que esperava que a vacina contra a Covid-19 fosse tão obrigatória quanto possível.
Já em Portugal, António Costa, que no Conselho de Ministros desta quinta-feira aprovou um investimento de 20 milhões de euros em contratos de aquisição de vacinas contra a Covid-19, garante que confia “que a Direção-Geral da Saúde defina os critérios que devem obedecer à vacinação progressiva, universal e gratuita da população portuguesa”, deixando implícito que a vacina contra a Covid-19 não terá custos para os portugueses.
Ainda assim, permanece a dúvida quanto ao público-alvo e à obrigatoriedade em tomar a nova vacina. Em resposta por e-mail a DGS refere que, “neste momento, ainda é precoce falar sobre a vacina, uma vez que todos os aspetos relativos a esta estão, ainda, em análise. No devido tempo será feita a definição do público-alvo”.
“Essa discussão não é nova. Já a temos há muito tempo, em relação a outras vacinas”, comenta Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública. Segundo o médico, “as vacinas devem ser sempre recomendadas e inseridas em programas de vacinação que as disponibilizem gratuitamente à população, quando o custo-benefício da toma representa uma vantagem para as pessoas”.
Tanto o professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e membro da Comissão Técnica de Vacinação, Manuel Carmo Gomes, como Henrique Lopes, especialista em Saúde Pública e professor na Universidade Católica Portuguesa, explicam que a questão é complexa e que não se trata de obrigar alguém a tomar uma vacina, mas obrigar alguém a tomar uma vacina segura, que tenha sido testada e cujos efeitos secundários sejam comunicados de forma transparente. Além disso, ambos concordam que a maioria das vacinas, mesmo a da gripe que vem sendo aperfeiçoada há mais de 50 anos, não garante uma eficácia de 100 por cento.
Isto quer dizer que, para que a imunidade de grupo seja atingida, a percentagem de vacinados terá sempre de ser superior à percentagem apontada como necessária para atingir essa meta. “Esta doença teve uma transmissibilidade e impacto importantes e causou uma disrupção tremenda naquilo que é a economia mundial. Portanto, se encontrarmos medidas para mitigar esse impacto, terá de ser feita uma análise de custo-beneficio e perceber os custos de vacinar toda a gente versus os custos de não vacinar”, comenta Mexia.
“Aqui coloca-se a questão do eu pessoa versus eu elemento público”, refere Henrique Lopes. E acrescenta, “apesar de não concordar, é legítimo que alguém diga, eu não quero fazer isto. No entanto, até que ponto o resto da sociedade deve ter os filhos, irmãos ou pais expostos à vontade, muitas vezes não informada, de sujeitos que tomaram decisões com base em meias verdades?”.
Segundo o especialista, a posição mais sensata passaria por, “perante a ameaça que paira sobre a humanidade, e respeitando a opção de algumas pessoas não se quererem vacinar contra outras doenças, nesta situação em concreto a necessidade de ter a vacina deveria surgir como a necessidade de ter um passaporte ou um bilhete de identidade. Mesmo que a pessoa não os queria ter, tem de os tirar, precisa deles”.
Também Manuel Carmo Gomes considera que, “do ponto de vista epidemiológico e de saúde pública, faria todo o sentido uma medida como aquela proposta pelo primeiro ministro australiano. Mas a vida não se resume a epidemiologia e, quando falamos de vacinas, entramos em questões éticas e legais relativas à obrigatoriedade de as pessoas se vacinarem que podem ser complicadas e gerar uma discussão à parte”.
Já Ricardo Mexia defende que a vacina deve ser fortemente recomendada, mas não obrigatória, “tal como qualquer outra vacina.” O médico acredita que, talvez, alguns países acabem por exigir a vacina como requisito de entrada nos mesmos, tal como acontece atualmente com a vacina da febre amarela, necessária para entrar em determinados países do Mundo.
“As teorias da conspiração vão matar milhares de pessoas”
O principal argumento de quem rejeita as vacinas prende-se com o facto de receber um medicamento, apesar de ainda não estar doente. No entanto, no caso das vacinas contra a Covid-19, as vozes que se têm insurgido alegam que, através da vacina, serão introduzidos chips na corrente sanguínea dos pacientes, numa operação de espionagem sem precedentes. Quanto a isto, Henrique Lopes comenta, “as teorias da conspiração vão matar milhares de pessoas, é preciso ter noção disso”.
O especialista mostra-se ainda preocupado com as crianças filhas de quem rejeitará a toma da vacina. “Uma coisa é os pais recusarem para si, podemos discordar, mas não temos nada a ver com isso. Outra coisa são os filhos. Se souber que os pais não dão alimentos aos filhos, a CPCJ tem o direito e o dever de agir. Então e se se tratar da exposição a uma doença potencialmente danosa para o resto da vida ou até mortal?”.
Henrique Lopes não deixa de salvaguardar, no entanto, que “as crianças e qualquer outro indivíduo só deve ser vacinado na condição que, aquilo que seja a vacina esteja para além de qualquer dúvida, com todos os efeitos secundários e riscos descriminados de uma forma transparente”.
Os portugueses querem vacinar-se
Como frisaram anteriormente os espcialistas, para atingir imunidade de grupo através da vacina, é necessário que um número significativo de pessoas aceite ser vacinado. Um estudo publicado a 20 de junho no European Journal of Health Economics inquiriu uma amostra de 7.164 pessoas de sete países (Alemanha, Reino Unido, Dinamarca, Holanda, França, Itália, e Portugal) e 500 pessoas especificamente da região da italiana da Lombardia, a fim de perceber a vontade das mesmas em serem vacinadas.
No total, 73.9% dos 7664 participantes referiram que gostariam de ser vacinados, caso existisse uma vacina. 18.9% afirmou não ter a certeza e 7.2% revelou não querer tomar a vacina. Em Portugal, enquanto 75% da população inquirida queria ser vacinada, 21% não tinha a certeza e apenas 5% se recusaria a tomar a vacina.
As razões apontadas como fatores de desconfiança prendem-se substancialmente com o receio de efeitos secundários e a falta de segurança da vacina.