Quase cinco meses após o primeiro caso de Covid-19 ter sido reportado no nosso País, os portugueses já viveram três estados de emergência e um estado de calamidade, ao qual se seguiram três fases de desconfinamento. No entanto, a 3 de maio, o dia em que o País começou a desconfinar, houve uma inversão de papéis no que respeita a área geográfica com maior incidência de novos casos diários de Covid-19.
Se até maio o Norte do país havia sido a região mais afetada, o regresso progressivo à normalidade foi marcado pela declaração do Estado de Contingência na Área Metropolitana de Lisboa, a qual concentrava, até segunda feira, dia 27, 67% dos casos ativos e 119 dos 196 surtos ativos de Covid-19, registados em todo o país.
Os especialistas não concordam numa análise que divida o país em duas metades estanques, falando antes em dinâmicas epidemiológicas de surtos, que dependem das origens e intensidade dos mesmos, bem como das especificidades da população e contexto social onde estes acontecem.
“Não acho sequer inteligente comparar Lisboa e Porto como se fosse um concurso. Falamos de dinâmicas de contágio, não nos limitamos a números estáticos, mas à forma como estes surgem e se desenvolvem”, afirma Henrique Lopes, especialista em Saúde Pública e professor na Universidade Católica Portuguesa. “São dinâmicas diferentes em momentos diferentes. Ao longo de uma pandemia, as coisas não acontecem todas ao mesmo tempo por igual. Vão acontecendo um pouco como os fogos, agora há uma frente aqui, depois pode existir uma frente noutro lado”, explica o especialista.
Também Margarida Tavares, infecciologista do Hospital de São João, no Porto, comenta: “Acho que todo o País está a passar pelo mesmo. Provavelmente, algumas situações que estão a ser mais determinantes da doença e da transmissão são mais prevalentes em Lisboa.”
É preciso então perceber que características determinantes levaram o Norte do País a conseguir mitigar, em pouco mais de um mês, a maioria dos casos ativos de Covid-19, enquanto a Área Metropolitana de Lisboa tenta ainda apagar vários fogos. “Temos de pensar bem nas dinâmicas da própria epidemia. O Norte foi a região do País mais fustigada no início, ainda com serviços de saúde e as próprias instituições pouco preparadas para fazer face ao vírus”, explica André Peralta Santos, acrescentando que a resposta social e governamental de fechar o país, declarar o Estado de Emergência e reduzir a atividade económica e social ao mínimo ajudou muito a controlar a situação.
O especialista em saúde pública aponta ainda para o facto de a população do Norte do país, por ter sido inicialmente mais afetada pela epidemia, à data do início do desconfinamento tenha estado “mais sensibilizada para questões como o uso frequente da máscara ou uma maior disciplina naquilo que é a sua socialização”.
Doença de ricos …
As especificidades socioeconómicas dos primeiros infetados parecem ter ajudado no rápido controlo da situação. Importado de Itália, o novo coronavírus entrou na região Norte de Portugal, maioritariamente, através de indivíduos ligados à indústria do calçado e do têxtil, que se haviam deslocado a Itália para feiras de setor ou através de pessoas que passavam férias em estâncias de ski do mesmo país.
“A infeção instalou-se em locais com grande atividade fabril e industrial, registando um crescimento exponencial com cadeias de transmissão muito largas, mas muito bem localizadas”, afirma Margarida Tavares. “Fecha-se a fábrica, testa-se toda a gente e todos os que derem positivo terão as famílias testadas. Dá trabalho, mas não é dramático, a ação é linear. O inquérito epidemiológico é trabalhoso, mas é fazível”, comenta Henrique Lopes.
Desta forma, apesar da rápida progressão da infeção, a identificação das cadeias de contágio foi relativamente rápida e eficaz, e a maioria dos infetados foi capaz de cumprir as regras de isolamento impostas pelas autoridades de saúde, a fim de mitigar a situação existente. “Se tivermos uma família com elevada capacidade de diferenciação, que se calhar tem duas ou três casas de banho em casa, mesmo que a pessoa contraia a doença, é possível isolar-se e evitar um contágio descontrolado”, explica Henrique Lopes.
… que acaba por matar os pobres
No entanto, rapidamente, tal como no Brasil ou na África do Sul, as populações mais afetadas pelo novo coronavírus começaram a ser as mais desfavorecidas. “Nos surtos de Lisboa temos quatro, cinco ou seis homens a viver no mesmo quarto. Como é que uma pessoa dessas faz isolamento?”, pergunta Henrique Lopes. Um relatório publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a 17 de julho, revela que as 19 freguesias da Área Metropolitana de Lisboa em estado de calamidade apresentam, não só uma densidade populacional sete vezes superior à da restante Área Metropolitana da cidade, como um número médio de divisões por alojamento e área útil dos mesmos por habitante menor que na restante área metropolitana.
No caso de Lisboa a dinâmica epidemiológica define-se assim como dinâmica de epidemiologia de base social e abrange as populações de muito baixa diferenciação e proteção. “As infeções, no geral, transmitem-se e afetam, sobretudo, as pessoas mais desfavorecidas e vulneráveis da sociedade. Também no Porto, a maioria dos surtos que ainda vamos tendo estão concentrados em populações mais desfavorecidas e vulneráveis”, conta Margarida Tavares.
Apesar de o relatório divulgado pelo INE revelar que o território em estado de calamidade apresenta um mercado de habitação menos valorizado e um menor valor mediano do rendimento bruto declarado deduzido no IRS, em relação à restante Área Metropolitana de Lisboa, Henrique Lopes alerta “pobreza é muito mais do que não ter dinheiro, pobreza é não ter conhecimentos, casas com capacidade de isolamento ou educação” e afirma, “uma pessoa com menos recursos escolares, sem condições de habitabilidade ou conhecimentos terá mais doenças”.
Os migrantes
A grande propagação da epidemia entre as comunidades de migrantes da região de Lisboa é outra dinâmica epidemiológica que preocupa os especialistas. Com um fraco domínio da língua, a comunicação de medidas de prevenção torna-se complicada junto destas comunidades. Também a reconstituição de cadeias de contactos revela uma dificuldade acrescida, pois as redes de contactos destas pessoas estão mais dissimuladas, sem terem a proximidade geográfica a ditar o limite do contágio.
“Enquanto que, nas outras regiões do País, chega a equipa de saúde pública e faz o inquérito epidemiológico, identificando facilmente a família e contactos sociais mais próximos, nas periferias de Lisboa podemos ter um indivíduo a morar em Loures com familiares em Sintra, com os quais tem mais contactos do que com o vizinho de baixo”, explica Henrique Lopes.
Surtos como o da Avipronto, na zona da Azambuja, são o exemplo claro da precariedade a nível de vínculo laboral qualidade das habitações desta faixa da sociedade. “Não quer dizer que estes problemas não existam também no Norte, mas, de facto, as características destas populações propiciaram um elevado número de novos casos na zona de Lisboa e Vale do Tejo”, indica o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública Ricardo Mexia.
Se existe um ponto assente na opinião de todos os especialistas é que a organização e o investimento nas estruturas de saúde pública, a norte, são francamente superiores em relação à zona de Lisboa e Vale do Tejo. Segundo o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, “no Norte, as unidades de saúde publica têm mais recursos humanos e uma organização muito mais eficiente, o que acabou por ser importante neste contexto”.
Também André Peralta Santos afirma que o mais relevante é que “em Lisboa, a resposta de saúde publica a determinado ponto foi ineficaz”. Segundo o especialista, uma resposta mais decisiva por parte da saúde pública, no final de maio, teria conseguido controlar as cadeias de transmissão da capital com maior rapidez e diminuir o número de novos casos diários na região.
Já Henrique Lopes vai mais longe e considera que o problema da falta de investimento na saúde pública do Sul do País já conta, pelo menos, 20 anos. “Temos um défice de investimento em saúde e estrutura social na zona de Lisboa e Vale do Tejo, que é a pior de Portugal, a par do Algarve”. O especialista considera ainda que o sistema existente peca pelo excesso de burocracia e pela incapacidade em ser proativo e lidar com quadros epidemiológicos inesperados, afirmando “ao limitar-se a ser reativo é um sistema que corre atrás do prejuízo”.
Quanto ao futuro, André Peralta Santos alerta, “o governo parece estar a preparar bem as coisas no que respeita a compra de ventiladores, alargamento da vacinação conta a gripe e preparação das unidades de cuidados intensivos. Mas gostava de ver a mesma importância ser dada à resposta de saúde publica”.