A música de intervenção que rebenta nos altifalantes instalados na Alameda Dom Afonso Henriques, em Lisboa, é interrompida pela voz do speaker: “Peço, por favor, para ficarem nos vossos lugares, terão outras oportunidades para conviverem”.
Este ano, o 1.º de Maio tem lugares marcados. Mais um cenário inédito em tempos de pandemia. O relvado em frente à Fonte Luminosa está dividido em 72 fileiras, a três metros de distância umas das outras, delimitadas por fitas de plástico brancas e vermelhas.
À distância, a Alameda parece repleta de pinos humanos, impecavelmente arrumados
Em cada uma dessas fileiras alinham-se cerca de 15 sindicalistas que mantêm, pelo menos, dois metros de distância lateral entre eles. Ao longe, a Alameda parece repleta de pinos humanos, impecavelmente arrumados. Só aparentemente solitários já que, de acordo com a resolução apresentada pela CGTP neste 1.º de Maio, “aqueles que estão hoje na rua representam todos os trabalhadores”. São cerca de mil aqueles que desafiam a Covid-19.
As bandeiras da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), e de muitos outros sindicatos, continuam a esvoaçar ao vento e também não faltam os habituais cartazes reivindicativos mas, em tempos de pandemia, a luta também se transferiu para outros adereços, como as máscaras de proteção.
“Precariedade” é a palavra que Isabel Pinto, 60 anos, tem estampada no rosto. “Venho sempre desde o 1.º de Maio de 1974”, anuncia, como quem puxa dos galões. “Este ano é muito diferente, mas a nossa determinação é igual”, defende a ativista do Sindicato dos Trabalhadores da Atividade Financeira (SINTAF).
Apesar das limitações deste ano – não há desfiles, nem manifestações, e os presentes rondam um milhar de pessoas – Isabel Pinto considera essencial sair à rua. “Temos de mostrar a nossa força numa altura em que as empresas estão a apanhar boleia da pandemia para retirarem direitos aos trabalhadores”, defende.
Ouve-se a senha do 25 de Abril nos altifalantes. A voz de Paulo de Carvalho a cantar E Depois do Adeus obriga a sindicalista a levantar a voz: “Está a criar-se uma pandemia social para a qual não sabemos se haverá vacina.”
Antigas e novas recordações históricas
Perto das três da tarde, o sol começa a queimar quem está ordeiramente distribuído pelo relvado. Este ano, só puderam participar nas celebrações da Intersindical convidados e pessoas que se inscreveram previamente. Desta vez, eram poucos os tradicionais autocarros com trabalhadores vindos de vários pontos do país, até porque estão proibidas as deslocações para fora dos concelhos de residência até domingo.
A solidariedade de Manuel Gomes também é dirigida à “seleção nacional” que, no seu entender, “são os profissionais de saúde que estão na linha da frente” a combater a
Covid-19.
Tendo em conta o calor que se faz sentir em Lisboa, Manuel Gomes, 63 anos, não tem dúvidas de que num 1º de Maio “normal” estaria a aproveitar o feriado na praia. “Este ano senti que era importante estar presente por uma questão de solidariedade”, diz, com a máscara oferecida pela CGTP a tapar-lhe o rosto, onde se lê a palavra layoff, com uma cruz vermelha por cima.
“Temos de alertar para a importância de defendermos os direitos dos mais desfavorecidos. Enquanto eu estou aqui, há pessoas que estão a passar fome”, garante.
A sua solidariedade também é dirigida à “seleção nacional” que, no seu entender, “são os profissionais de saúde que estão na linha da frente” a combater a Covid-19.
Mas também foi uma razão de ordem pessoal que o trouxe do Cacém até à Alameda. O mais novo de 15 irmãos, Manuel Gomes chegou a Lisboa vindo de Braga a 16 de março de 1974. Tinha 16 anos e era a primeira vez que andava de comboio.
Daí a menos de dois meses assistia ao mítico 1.º de Maio do ano da revolução. “Foi a coisa mais incrível que já vi na vida. Também foi para celebrar essa data que decidi vir”, confessa.
Na altura, assistiu a parte do desfile a partir do 8º andar do Hotel Tivoli, em plena Avenida da Liberdade, em Lisboa, onde ainda hoje trabalha como barman. “Faço 46 anos na mesma empresa”, anuncia, triunfante.
Talvez por ter um vínculo laboral tão antigo, os trabalhadores precários, onde se inclui um dos seus dois filhos, preocupam-no especialmente. “Todos merecemos um emprego certo que nos dê estabilidade para formarmos uma família”, declara. Além de fazer parta da Comissão de Trabalhadores da Minor Hotels, à qual pertence o Tivoli, é membro do Sindicato da Hotelaria do Sul, como denuncia o boné azul e branco.
Precariedade também é a palavra de ordem escolhida por Ana Gusmão, 34 anos, desempregada, ligada à área das artes e do espetáculo. “Não vim pela minha situação, mas pelos amigos que têm visto os seus direitos atacados com a desculpa da pandemia”, afirma. “Tenho um amigo que está em layoff, mas trabalha tantas ou mais horas do que antes. Simplesmente, está em casa, ou seja, ele não devia estar em layoff, mas em regime de teletrabalho a receber o ordenado por inteiro”, denuncia.
Um cartaz do Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos (CENA-STE) alerta para os problemas no setor: “Quarentena, mas não nos direitos”. É Rui Galveias, 49 anos, quem segura a mensagem escrita à mão num cartão. “A maioria destes trabalhadores está desprotegida. É terrível”. Por isso, considera que era fundamental vir para a rua. “Cancelados, mas nunca calados”, lê-se do outro lado do cartaz.
Sob o olhar de Arménio Carlos
Apesar de estar previsto para as três e meia da tarde, a secretária-geral da CGTP, Isabel Camarinha, começou o seu primeiro discurso do Dia do Trabalhador pouco depois das três.
Em primeiro lugar, saudou com “emoção e orgulho” os sindicalistas por estarem a respeitar todas as normas de distanciamento social. “Alguns queriam calar-nos, mas não nos calamos, cumprindo as regras de segurança individual e coletiva”, gritou no palco improvisado numa carrinha, decorada com os cartazes que celebram os 50 anos da Intersindical.
Fora do relvado, algumas dezenas de curiosos, distribuídos ao longo da Alameda, assistem às comemorações à distância. Os agentes da PSP vão sensibilizando as pessoas sempre que se aproximam demasiado umas das outras ou pedindo-lhes para se sentarem afastadas nos bancos. Muitas trazem máscaras.
Entre eles, discreto, está o antigo secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos, que, em fevereiro, terminou o mandato, ao fim de oito anos.
Vai distribuindo cumprimentos com o cotovelo e mantendo a distância de quem o cumprimenta, à medida que ouve atentamente o discurso da sua sucessora.
À VISÃO, no final da comunicação de Isabel Camarinha, quando ainda ecoam palavras de ordem, mostra como a veia de sindicalista continua ativa: “O Governo deve definir uma política de antivírus em relação aos despedimentos.”
Atualmente, mais de um milhão de trabalhadores estão em layoff e 377 mil ficaram no desemprego. Isabel Camarinha voltou a defender a “proibição dos despedimentos”, bem como o pagamento a 100% a todos os trabalhadores abrangidos pelo regime de layoff.
Arménio Carlos não tem dúvidas de que se a pobreza e a desigualdade social se agravarem surgirá uma “espiral de descontentamento”.
Questionado sobre a possibilidade de sair à rua para assinalar o Dia do Trabalhador ser visto como um comportamento leviano, o ex-líder sindical não tem dúvidas: “A imagem que fica é a de uma grande responsabilidade, que sempre tivemos. A salvaguarda da saúde de todos foi evidente”.
A ideia de um sindicalismo digital não é descartada, mas Arménio Carlos considera indispensável que os sindicatos estejam fisicamente onde estão trabalhadores. “É nos postos de trabalho que ocorre a intimidação”.
O teletrabalho também implica desafios acrescidos para o sindicalismo: “O trabalhador fica enfraquecido porque está isolado do coletivo e isso enfraquece a sua capacidade reivindicação”.
Mas o teletrabalho também implica desafios acrescidos para o sindicalismo: “O trabalhador fica enfraquecido porque está isolado do coletivo e isso enfraquece a sua capacidade reivindicação”.
À medida que a conversa decorre, o relvado vai ficando vazio. A desmobilização é rápida e ordeira. Auxília Cabral, 31 anos, prepara-se para regressar a casa de automóvel. Tornou-se delegada sindical este ano, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e foi a primeira vez que participou nas celebrações. É empregada de refeitório.
“Eles comem tudo eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada”, ouve-se nos altifalantes, que dão voz aos Vampiros de Zeca Afonso.
“Foi tudo muito bem organizado. Tudo muito calmo”, começa por dizer Auxília Cabral, máscara vermelha e óculos de sol no rosto. A caminho da Alameda desde a Póvoa de Santa Iria, em Loures, foi parada pela polícia. “Tinha uma declaração de circulação emitida pelo sindicato e deixaram-me passar”, conta, de sorriso escondido.
“Senti-me muito bem aqui. Senti-me segura porque toda a gente cumpriu a distância de segurança”, assegura. A seguir, já se sabe, a luta continua.