A chuva deste primeiro dia de primavera era prenúncio de ainda menos gente nas ruas. Mas, a verdade é que entre os aguaceiros lá surgiam mais pessoas à porta da mercearia. Na Ruela & Alves, aberta há 24 anos em Linda-a-Velha, Nuno e Isabel não têm mãos a medir. Neste primeiro dia de recolhimento das bancas e a atender os clientes de dentro para fora, continuam a afinar os detalhes. Depois de ontem terem sido conhecidas as medidas específicas do estado de emergência, o casal engendrou um plano para manter a atividade, sempre em segurança: as bancas exteriores da fruta foram desmontadas e as caixas de plástico passaram para o interior da mercearia, mais perto dos legumes, do pão, dos queijos, da charcutaria e dos secos também. Por uma porta recebem, um a um, os pedidos dos clientes; aviam a encomenda lá dentro; fazem-lhe o saco e a conta, e numa segunda porta, mesmo ao lado, o cliente paga e recebe as compras. Contacto só na hora de pagar e, mesmo assim, pouco.
Nuno continua a abastecer-se também ele nos mesmos fornecedores de sempre, originários de Torres Vedras, Caldas da Rainha, Malveira. Hoje, por exemplo, só lhe falta vinagre. Mantém as entregas ao domicílio de grandes clientes habituais, por isso os dias têm sido longos – antes das dez da noite não está despachado.
À nossa frente, Ana Cravo, 45 anos, pergunta se há ananás, pede limões mais verdes e acrescenta um quilo de clementinas. Educadora de infância, agora em casa sem trabalhar, veio de Cascais até Linda-a-Velha, onde já costuma fazer compras, mas também porque perto de casa as filas são maiores. “Vou levar os básicos e para a semana volto”. Eu também preciso de legumes para fazer uma sopa e o José Carlos Carvalho leva um quilo de morangos (um miminho para a filha adolescente), queijo e grelos para o jantar.
“Não pode entrar amiga”, solta Isabel num enérgico aviso a quem tenta ir lá dentro. Teresa da Fonseca, 66 anos, só precisa de quatro cebolas e grelos. Antiga cliente e moradora no Alto de Algés tem comprado quase dia a dia, mas a partir de hoje diz querer ficar mais em casa. “Já sou de risco, quanto menos sair melhor”.
Para pôr ordem na clientela, Isabel grita: “Próximo!”. A mãe de Carlos Araújo tem 74 anos e mora ali perto. Já tinha feito a encomenda dos frescos por telefone, agora o filho, agente da Polícia Municipal, 56 anos, só tem de levantar o saco. O seu turno começa logo à noite e já sabe que entre as tarefas da patrulha de rua terá de tomar mais atenção se existem estabelecimentos abertos que tenham sido mandados fechar (como restaurantes, cafés e esplanadas, por exemplo). “Os mais jovens têm acatado muito bem as recomendações, mas as pessoas mais velhas continuam a ser um perigo na rua”.
Ao lado da mercearia, a padaria está a funcionar, mas a dona não está pelos ajustes e nem quer falar connosco, atirando: “Sou contra isto tudo. Os outros estão em casa e nós é que estamos a trabalhar”.
Ordenadas, com as devidas distâncias entre si, as pessoas oscilam entre os muito protegidos – com máscaras, luvas e há até quem leve um lenço de papel na mão só para marcar o código no multibanco – e os descontraídos, sem qualquer vestígio de preocupação com o contágio. O casal Fernanda Bernardo, 57 anos, e António Mota, 83 anos, preferem a mercearia por ter menos gente do que os supermercados, mas, como Fernanda não conduz, é António que também vem à rua, apesar de a sua idade já ser um fator de risco para contrair a covid-19. No saco vai fruta, legumes e peixe congelado da loja duas portas ao lado.
Com a hora de almoço próxima, descemos até Algés, à rua principal onde passa o elétrico 15. Na Zinia, o primeiro take-away do País, as regras de funcionamento também mudaram de ontem para hoje. As senhas estão na rua, onde as pessoas aguardam pela sua vez, recebendo indicações das funcionárias, apetrechadas com luvas, máscaras e desinfetante. Com uma quebra de cerca de 50% da faturação só no dia de ontem, e na tentativa de manter os 30 funcionários a todo o gás, Teresa Guimarães, 56 anos, conta agora com a ajuda do sobrinho para fazer também entregas ao domicílio num raio de dois quilómetros. Aos clientes basta telefonar (T. 21 411 2345, 10h-12h) a encomendar as refeições e esperar que lhes toquem à campainha (12h30-14h).
Na Zinia, março costumava ser mês de festa. No passado dia 1, comemoraram 58 anos de existência, desde que o pai de Teresa, uma pessoa muito viajada, decidiu abrir o take-away. “A cozinha era à vista das pessoas e foi algo que atraiu muita gente por ser diferente”, explica Teresa. Tal como hoje, em 1962 vendia para fora rissóis, croquetes, entre outros salgados e o bem afamado arroz à valenciana.
A partir de sábado, 21, terão sempre uma sopa fresca, croquetes, rissóis, pastéis de bacalhau, panados de frango, filetes de pescada, bolas de carne, arroz doce, farófias e três pratos que podem variar entre bacalhaus (com espinafres e cenoura, à Brás, com natas, espiritual ou com broa e coentros), strogonof de peru, arroz de pato, lasanha de carne e vegetariana, canelones de frango, almôndegas, rolo de carne, esparguete à bolonhesa. “Vamos preparar receitas que as pessoas possam levar já cozinhadas e depois possam aquecer no forno ou congelar”.
Enquanto esperamos para sermos atendidos, falamos com Cristina Agbaba, 52 anos, residente em França, mas com a mãe doente e internada com um vírus respiratório (que não é o novo coronavírus) viu-se obrigada a regressar a casa. “Aqui está mais calmo. Lá é a guerra com militares na rua, as pessoas a terem de preencher uma justificação escrita sobre o que andam a fazer fora de casa. Acho que as pessoas de mais idade não têm a noção do perigo”, lamenta a comerciante, que em França teve de fechar a sua pastelaria. À nossa frente, Luís Piteira, 33 anos, militar da GNR, mora nas imediações e foi buscar almoço para ele e para a mulher, pois os filhos de 4 e 10 anos estão no Alentejo, de onde é natural, com os seus pais. “Prefiro que estejam com os avós do que na escola”. Tal como Cristina, Luís também vai levar bacalhau à Gomes de Sá e ervilhas com ovos, mas o que queria mesmo era o arroz à valenciana. Nós pedimos panados de frango acabadinhos de fazer, pastéis de bacalhau, croquetes, souflé de peixe e bolachas de baunilha – miminhos para nós e para os nossos. Pelo meio, ainda aviámos uma receita com um medicamento numa farmácia junto à estação de comboios de Algés, sem fila de espera. Tudo calmo, entre um aguaceiro e outro, nesta manhã de primavera.