Os relatos acumularam-se na última década, ainda a ideia de se ser ‘contaminado’ pelas características do dador soava a algo do reino da ficção científica. Há mesmo um estudo de 2011, liderado pelo psicólogo experimental Bruce Hood, que alimenta essa ideia, quando revela que há menos gente disponível a receber um coração de um assassino do que de um voluntário – e a explicação que apresentava era simples: as pessoas tinham receio de absorver informação que as transformasse num ser diferente. Mas, pouco depois se apontar este medo de um contágio moral, os casos de pessoas que tinham desenvolvido um gostinho especial por algo diferente do “norma”l tornaram-se mais comuns.
Em 2013, um artigo de Meredith Meyer, Sarah-Jane Leslie, Susan Gelman e Sarah Stilwell, publicado na revista Cognitive Science, aceitava que poderia haver alguma verdade na ideia de que um transplante leve o recetor a adquirir as características do dador. Havia o caso da britânica Claire Sylvia, que recebeu um coração e um pulmão em meados dos anos 1980. Desde então havia desenvolvido um gosto estranho por cerveja e pernas de frango. Convencida de que passara a partilhar a alma com o seu dador, não descansou enquanto não o encontrou. Sossegaria apenas na década seguinte, depois da leitura de um obituário de alguém que doara os órgãos que ela recebera – e cuja família lhe confirmara esse gosto por cerveja e frango.
No ano passado, foi anunciado aquele que seria “o primeiro caso de transmissão de cancro da mama como consequência de um transplante de órgãos de uma só paciente, afetando quatro recetores”, sublinhavam os responsáveis do trabalho, liderados por Frederike Bemelman, especialista em transplantes renais do centro médico da Universidade de Amesterdão. Ao que foi possível apurar, a dadora tinha micro-metástases em cada um dos órgãos que doara, e que não tinham sido identificadas.
Agora, conta o The Independent, há um outro alguém que reclama ter ficado com o ADN do seu dador. Foi mais ou menos três meses depois do transplante de medula óssea, que Chris Long, um americano de Nevada, instigado por um colega de escritório a fazer testes, descobriu que a sua informação genética passara a ser a daquele que ele acreditava ser o seu dador, um alemão com quem trocara umas mensagens. Quatro anos depois, acumulava-se mais evidência nesse sentido: amostras retiradas do lábio e interior da boca revelavam ADN seu e do seu dador. O mais surpreendente? Toda a informação genética contida no seu sémen pertencia ao dador.
Long passou a ser o que chamamos de quimera – o palavrão que, em biologia, identifica um organismo constituído por tecidos ou grupos celulares com origem genética distinta. Diz aquele jornal inglês que há muito que é consensual entre os médicos e os cientistas forenses que certos procedimentos transformam as pessoas, mas raramente foi estudado onde exatamente é que há sinais do ADN do dador. Nem mesmo para questões criminais, e isso, convenhamos, pode fazer toda a diferença.
Ora foi isso que começou por intrigar os colegas de Long, cujo caso foi apresentado numa conferência internacional de ciência forense em setembro. Porque ao recolherem-se evidências de ADN numa cena de crime o esperado é que cada vítima e cada criminoso deixem para trás apenas um único código de identificação, e não dois.
“Ficámos deveras chocados com o facto de Chris não ser mais o colega que conhecíamos”, disse mesmo Darby Stienmetz, o criminalista local, secundado por Brittney Chilton, da divisão de ciências forenses do condado. “Se outro paciente responder de forma semelhante a um transplante e essa pessoa cometer um crime, isso poderá enganar os investigadores”. E lembrava o caso que ocorrera no Alasca, em 2004, quando foi identificado um perfil extraído do sémen de um banco de dados de criminosos. Combinava na perfeição com um determinado suspeito. Problema: o homem estava preso no momento do ataque. Só depois souberam que recebera um transplante de medula – e que o dador era o irmão, posteriormente condenado.
Outro caso foi relatado por Abirami Chidambaram, em 2005, quando trabalhava no laboratório de crimes científicos, em Anchorage. O cenário envolvia uma série de investigadores que não acreditavam no relato de uma vítima de agressão sexual porque ela apenas referira um agressor – e a análise ao ADN demonstrava que seriam dois. Até que a polícia identificou um segundo perfil como o de um dador de medula óssea e o primeiro como o seu recetor.
Em 2008, um cenário semelhante foi registado na Coreia do Sul, quando o serviço forense local tentava identificar uma vítima de um acidente de trânsito. O sangue revelava que se tratava de alguém do sexo feminino. Mas o corpo parecia masculino – o que foi confirmado pelo ADN nos rins, mas não no baço ou no pulmão, que continha ADN de indivíduos dos dois sexos. Entretanto, apurou-se que a vítima recebera medula óssea da filha.
Agora, acumulam-se as questões para Chris Long, o tal funcionário do Nevada: e se ele tivesse um bebé, que informação genética recebe? Há quem defenda que as células sanguíneas de um dador não devem ser capazes de criar novos espermatozoides – como por exemplo Mehrdad Abedi, médico da Universidade da Califórnia em Davis, que tratou Long. Mas, tal como outros que analisaram este caso, concorda que se trata de um case study. E que é impossível dizer quantas pessoas respondem aos transplantes de medula da mesma maneira. Entretanto, Long, que já aceitou tornar-se cobaia de estudos a nível forense, só pensa em encontrar-se com o dador na sua próxima viagem à Alemanha e agradecer-lhe pessoalmente ter-lhe salvado a vida.