Há vinte anos que é embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas. Há 14 que conduz as reportagens da série Príncipes do Nada. Há sete lançou a Associação Corações com Coroa. Hoje, fomos encontrá-la na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a promover a conferência “Violência e discriminação: Ouvir para agir”, e ao longo da entrevista, fez sempre questão de reafirmar: “É preciso ouvir todos, mas continuam a ser as mulheres as mais afetadas na violência, na discriminação, no acesso à educação, a cargos laborais…”
Os números deste dia estão aí: 32 mortes só este ano, e a contagem ainda não acabou. Porque é preciso ouvir para agir?
Acredito que é o mais eficiente para contrariar os números. Se não tivermos a empatia e proximidade com as histórias é mais difícil para qualquer pessoa, até mesmo para os decisores políticos, senti-la como se fosse consigo. Digo que é preciso ouvir ou dificilmente sentimos a necessidade de sermos cidadãos proativos, e sem paternalismos. Os números são importantes, mas não deixam de ser abstrações. Considero ainda que é importante que este dia, embora seja focado nas questões das mulheres, nos possa também levar a falar de outras violências. Mas têm de se dizer que elas são, de facto, as as maiores vítimas de tudo: discriminação, violência, não acesso a cuidados de saúde…É ainda preciso dizer que há muitas diferenças entre os países desenvolvidos e os que estão em desenvolvimento, mas há ainda pontos de encontro em que já não deveria ser assim. Há um mês voltei da Grécia, onde estive a preparar reportagens sobre os refugiados e o que vi não é aceitável em qualquer lugar do mundo, quanto mais na Europa. E não é só culpa da Grécia. Vi gente a dormir com ratazanas. É desumano. A violência é transversal e existe em todos os contextos – mas as mulheres são as maiores vítimas: violência, abuso sexual, exploração laboral…E muito enquanto arma de troca.
Ainda somos muito tolerantes com as violências que nos rodeiam?
Sim, ainda somos. Tenho feito muitas palestras em escolas, mais de 80 nos últimos tempos (além do projeto de teatro promovido pela Corações com Coroa, na área da prevenção da violência no namoro.) E o que vejo é que este comportamento violento e manipulador está por todo o lado, em escolas públicas e em colégios privados. Devagarinho, depois de me ouvirem, muitos começam a descontrair e começam a pôr o dedo no ar e confirmam: ‘sim, aqui na escola também há, sim, eu vi’ …
E como é que se explica que os mais novos também o façam?
É ignorância. Eles não sabem: há uma falta de consciência absoluta do que cada ato quer dizer, do significado do que é ou não tolerável, do que é uma violação dos direitos humanos. Não sabem o que é controlo e manipulação. Ficam ali reféns do amor e da paixão, e acabam a achar que faz parte da relação. Confundem o ciúme exacerbado com amor. Há as redes sociais e os telemóveis, e não sou proibicionista, é uma revolução que está aí e temos de aprender a lidar com ela. Mas há factos que impressionam. Numa dessas conferências, foram vários os braços que se levantaram depois de lhes perguntar: “quem é que pediu namoro por whatsapp?” E é preciso dizer que não pode ser assim, que é preciso comunicar nos olhos. É preciso dizer-lhes isto.
Há quem aponte o dedo às palavras que usamos, muitas vezes sem pensar. É também preciso repensar o discurso?
É preciso, sim. No caso, dos professores, que têm imenso conhecimento, mas julgo que poderiam ajustar-se mais à linguagem dos miúdos, e assim estabelecerem um canal de comunicação para mais facilmente chegar a eles. Não se pode aceitar o que às vezes se diz, tantas vezes, muitas vezes sem pensar. Sabemos que têm matéria para dar e muita burocracia. Mas é preciso que renovem a linguagem. Houve alunos que demonstraram essa vontade de falar com alguém enquanto estão na escola, mas que não o fazem porque não se sentem à vontade para falar com os adultos.
Que mais se pode fazer para prevenir?
Quero acreditar que promover encontros como este é uma forma de o fazer. Depois, acho mesmo que a imprensa tem um papel essencial. O ónus não devia ser só nas vítimas. É preciso desconstruir e ir além disso, para não acentuar essa vitimização. Tem de ser sempre um trabalho conjunto de todos – daí termos criado os prémios para a comunicação e para o jornalismo, para podermos destacar o que foi bem feito, para mostrar os bons exemplos. Para não soar tudo a voyerismo…
Isso vai de alguma forma ao encontro da crítica que se faz sempre às medidas mais extremadas, que prejudicam as vítimas…
Sim, são elas que têm de sair de casa, que levam os filhos para viver escondidas em abrigos…
Podemos considerar que a justiça não tem feito o seu papel?
Não posso falar em geral, mas todos conhecemos casos vergonhosos. Daí também ter imensa pena porque convidei a ministra da Justiça para cá estar e ela primeiro confirmou e depois cancelou. Depois, convidei a ministra da do Trabalho e da Solidariedade Social – e ela confirmou e depois, no próprio dia cancelou… É preciso que se diga isto. Quando se diz que “todos devemos meter a colher” é preciso, então, dar o exemplo.
Também não pode haver muita conversa e pouca ação…
Exato. E nós queremos incluir todos. As vítimas, e os seus testemunhos, os especialistas. Sempre tivemos – e sempre convidámos – alguém do governo para cá estar, porque achamos que é um elemento fundamental. É esse conjunto de esforços que acredito pode fazer a diferença. São precisas todas as sinergias.
Além do discurso, há ainda casos em que a cultura ou a tradição são invocadas para justificar a violência…
Qualquer cultura deve ser respeitada desde que não atropele os direitos humanos. Isso é básico – portanto, obviamente que a Mutilação Genital Feminina não o pode invocar, não é aceitável. Em muitos locais, mesmo na Guiné Bissau, já foi possível erradicar. Estive lá a apresentar um projeto formal, em que várias organizações assinaram documento oficial, assumindo que não há nada sobre isso no Corão. Claro que isto também aconteceu porque trabalhámos com os líderes religiosos, e isso de envolver todos os agentes no contexto, lá está!, fez toda a diferença.
Queria só voltar à questão das palavras e à sua interpretação. Agora, por exemplo, temos esta palavra nova que é o femicídio, que designa o homicídio por uma questão de género… Ainda faz sentido dizer que se é feminista?
Não me imagino a não ser feminista. Tal como não imagino o meu pai a não ser feminista ou o meu marido a não ser feminista. Às vezes, ouve-se um discurso até muito parecido com o meu, mas em que, a dado momento, esse alguém faz questão de frisar “eu não sou feminista, mas acho que…”. Como se fosse sei lá o quê. Vamos lá ao dicionário. No fundo, é dizer que somos contra a desigualdade, mais do que só contra a violência. Que somos desiguais na violência – as mulheres sofrem mais e em maior número. Somos desiguais no acesso à educação, a cargos de poder e em termos de trabalho. Somos desiguais na discriminação. Não percebo bem quando ou em que circunstância é que alguém se sente mal a dizer que é feminista. Em muitos lugares, ainda morrem mulheres durante o parto porque não há luz, soro ou linha para coser. Ou quando são vítimas de violações, como acontece com as refugiadas, depois de tudo o que passam. Cada um tem de dar o exemplo e fazer a sua parte. E ser feminista faz parte. Será que algum rapaz gostava de ver a mãe a ser agredida? Ou a filha? Ou a irmã? Se somos todos contra a desigualdade, somos todos feministas.
Aproveite a campanha Ler e Viver e receba o valor gasto na assinatura em experiências à escolha
![banner novo visão](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2019/10/15549551banner-novo-vis%C3%A3o.jpeg)