Bruno Nogueira festejou a 31 de janeiro, 37 anos de vida. Se lhe perguntam diretamente pela ocupação ainda tem dificuldade em disparar uma resposta rápida: “No início, sentia-me mais um stand up comedian, depois achei que era, sobretudo, ator. Há pouco tempo, sentia-me mais autor e até com pouca vontade de representar, agora… gosto de demasiadas coisas para dizer que sou só uma.”
Depois de dez anos sem enfrentar a difícil arte de subir a um palco, só com um microfone, para fazer rir as pessoas, Bruno Nogueira está de volta ao stand up comedy, olhos nos olhos com o público. O espetáculo chama-se Depois do Medo e tem esgotado salas, de norte a sul do País (rotina que deve continuar, com algumas pausas, até ao fim do ano).
O “medo” do título é o de Bruno neste regresso – até se pacificar pensando: “Pode não ser o teu melhor espetáculo de sempre, mas é o melhor que consegues fazer agora.” Os temas, como é típico deste género de espetáculo humorístico que chegou a Portugal para ficar, há cerca de uma década, são variados e, muitas vezes, provocadores: Bruno pode passar das rotinas da masturbação para as rezas da avó, sem sobressaltos, de um segundo para o outro.
Fazer stand up comedy é tramado, não é?
Sim, é. E estes dez anos em que estive afastado do stand up deveram-se muito a isso… Participar no Levanta-te e Ri [programa de televisão, gravado ao vivo e transmitido na SIC, entre 2003 e 2006] foi uma inconsciência: tinha feito uma vez stand up e, de repente, estava ali, em direto, para dois milhões de pessoas. Decidi parar e, agora, tinha aquela sensação de não saber se ainda conseguia andar de bicicleta. Esse medo afastou-me durante algum tempo… Mas eu gosto de me desafiar a fazer coisas diametralmente opostas àquilo que me é confortável. Há dez anos podia ter continuado a fazer stand up, mas parei… E, agora, este regresso era o que mais me desafiava, porque está distante do que tenho feito nos últimos tempos.
E estar sozinho num palco perante salas esgotadas, com pessoas que pagam bilhete para se rirem de 30 em 30 segundos, parece mesmo um grande desafio…
Isso é o que me assusta, sim, as expectativas das pessoas. E, nesta fase, não me posso afastar muito disso, porque não sou um anónimo, não estou a fazer aquilo pela primeira vez. Houve um período de testes de material. Queria testar com o público, mas sem anunciar um espetáculo para as pessoas não irem à espera de ver alguma coisa já acabada. Fiz isso numa salinha no [Cinema] São Jorge, que funcionou quase como um clube secreto, para 30 pessoas, com o Salvador [Martinha], o Eduardo [Madeira] e o [Luís] Franco-Bastos. Fazíamos um convite nas redes sociais e, como as pessoas se inscreviam muito rápido, apagávamo-lo logo a seguir… O mais tentador é repetir todas as noites aquilo que percebemos que funciona bem, para sairmos de lá com o ego inchado. Mas o meu desafio ali, e acho que o deles também, era fazer sempre coisas que não sabíamos se funcionavam. Houve noites trágicas… Mas se tivermos as coisas bem resolvidas com o nosso ego, sabendo que tudo aquilo é passageiro, isso é muito libertador. Em salas grandes, cheias, já não dá tanto para… brincar.
O espetáculo é muito parecido, de noite para noite, certo? Ou há mudanças?
É um bocadinho como o jazz. Mas há uma rede. Sei que há uma base que cumpre os mínimos olímpicos. Há uns momentos que podem variar, que dependem do que vi nessa semana nos programas da tarde, por exemplo… A partir de certa altura, desapareceu o medo e passei mesmo a ter vontade de ir, e agora só quero que chegue a próxima data rapidamente. Mas até lá… No primeiro espetáculo desta série, em Faro, estava de tal maneira ansioso que, quando acabou, quase desmaiei, tive de ir deitar-me logo, tinha zero energia…
Com os risos na sala, a perceção sobre a reação do público é muito imediata, não é? Os risos vão aumentando a confiança?
Há coisas que já sabes que, seguramente, vão fazer rir. Mas tens de fazer uma escolha, saber se queres ir por esse caminho ou não… E há vários tipos de risos, de gargalhadas.
Nota diferenças no público, desde os primeiros passos do stand up em Portugal, que há mais de dez anos era uma coisa um bocado exótica por cá?
Sim. No início, as pessoas achavam que isto era uma coisa mais grotesca e primária, em que a intervenção do público, a dizer umas coisas, era quase obrigatória. Ainda não se tinham estabelecido bem as regras. Depois desse boom da comédia, teve de haver um processo de educação, e digo isto sem nada de paternalismo, simplesmente porque não havia esse hábito de ver uma pessoa no palco só com um microfone… Muitas vezes, as pessoas vão ali como quem vai ver o trapezista que, a qualquer momento, pode cair. Há um lado perverso no público… Há várias razões para se ir a um espetáculo de comédia: uns até vão porque nunca gostaram daquela pessoa; outras vão porque tiveram uma semana complicada e pensam “estou a contar contigo para me fazeres rir…”.
No seu espetáculo, percebe-se que é uma pessoa muito observadora dos comportamentos dos outros. Quando era criança e adolescente era mais do género introvertido e observador ou era o extrovertido, sempre a fazer piadas em casa e na escola?
Era, e sou, muito observador, sim. A minha natureza, se eu não a forçar, é a do tipo que está num canto a observar, a ouvir e a falar muito pouco. Era assim que eu era na minha infância e adolescência em casa, daí o espanto dos meus pais quando eu comecei a querer fazer isto… A personalidade, que fui forçando para me poder enturmar com o resto do mundo, passava por usar o que eu via e ouvia em meu proveito. Portanto, não me é natural esta coisa de chegar a um palco, sozinho, e de falar para 700 ou mil pessoas – aliás, acho que não é natural para ninguém… No fundo, o que eu sou em palco é aquilo que gostava de ser. Aquilo não sou eu. Adorava ser aquele gajo com capacidade de responder sempre à primeira, de ter tudo bem apurado, com todo aquele à-vontade… Não sou aquela pessoa, mas adorava.
Portanto, há aí um lado tímido que deve tornar a experiência de stand up ainda mais aterradora.
Mas muitos dos que fazem comédia, ou outras artes performativas, são tímidos que fazem isso porque têm muito para dizer… Para mim, no caso da comédia, é uma coisa muito egoísta. O que me provoca sentir mil pessoas a rirem-se à minha frente é um doping que eu não consigo em mais lado nenhum.
Cria dependência?
Sinto bastante essa dependência. E o stand up vive disso… Há um lado puramente egoísta.
Curiosamente, não é muito incomum haver humoristas introvertidos…
Sim, é verdade. Julgo que tem que ver com esse lado observador… Para mim, é muito difícil aquele conceito social de ter de estar sempre a devolver frases para a outra pessoa. Idealmente, fico numa mesa só a ouvir; não tenho assim tanto interesse em participar. Muitas vezes, forço o meu interesse nas conversas, para não parecer um psicopata. Tens de fazer de conta de que és normal, não é?
No espetáculo fala do desconforto daqueles momentos em que anda na rua e em que muita gente faz questão de dizer-lhe piadas, esperando respostas divertidas da sua parte…
Não é que me incomode muito… Mas na vida não tenho a rapidez que tenho em palco. As pessoas estão certas, eu é que não estou à altura das expectativas delas. Elas estão à espera de que eu reaja como faria num programa ou em cena. São duas tomadas diferentes na minha vida, e a do dia a dia é claramente de baixa voltagem. Mas sou muito bem-educado com as pessoas, isso que fique claro [risos]. Fico muito comovido, até, quando elas vêm ter comigo na rua. Faz-me muita confusão os que dizem, “ai, já nem posso andar na rua!”. É como um técnico de esquentadores a queixar-se de que já não pode ver gás à frente… Não faz sentido uma pessoa queixar-se daquilo por que lutou.
Como lida, nessas situações, com piadas a que não acha graça nenhuma?
É horrível. É como, se fores músico, aparecer sempre alguém com uma guitarra a dizer “ouve lá esta música, que eu compus no meu quarto, quando estava deprimido”. Ou sou simpático e digo “está porreiro, continua…”, mesmo que esteja a mentir, ou tenho de fazer uma coisa que me dói mesmo: sorrir e fazer de conta que aquilo teve piada. Faço isso mais vezes do que gostaria. Queria atingir aquele patamar de um louco que não reage, que fica impávido como uma girafa… Mas não é assim que funciona.
No espetáculo Depois do Medo, não faz humor sobre a atualidade sociopolítica. É uma opção?
Sim. Hoje, há a moda de um lado quase moralista no stand up. Já vi isso ser muito bem feito, mas não é a minha disciplina. Não é isso que quero fazer em palco. Tenho vontade de fazê-lo no Tubo de Ensaio [rubrica radiofónica, na TSF, em parceria com João Quadros], e aí faço-o. No stand up, prefiro uma coisa mais crua, menos elaborada, sem ter, de todo, um lado de lição de moral.
Aliás, no seu espetáculo há mesmo um lado forte de provocação. O que nos leva a essa expressão tão repetida nos últimos anos: o politicamente correto ou incorreto…
Sim, isso entusiasma-me muito. É libertador. Provocação no sentido de já saber que aquilo irrita quem achou que podia definir até onde se pode ir na comédia… Tem que ver com outra expressão muito usada agora: “os limites do humor”. Como, no stand up, não estou ao abrigo de nenhuma empresa, nenhum canal, nenhuma companhia de teatro, ali sou eu e a minha opinião, a minha vontade. As pessoas têm o direito de não se identificar com ela… Às vezes, sinto “isto é a pior coisa que vos posso dizer neste momento”, e o que isso me provoca de felicidade, o desconforto que provoca, é muito superior à minha vontade de me calar!
Às vezes as pessoas não se riem porque acham que têm de se rir, mesmo que não estejam a achar, propriamente, piada?
Acho que não. O Seinfeld dizia que o público, em comédia, só nos faz um favor nos primeiros cinco minutos: batem palmas, riem, são simpáticos. Dão-te esses cinco minutos de borla. Mas no resto da hora e meia, já não funciona assim… Ninguém se ri por obrigação, ninguém ri sem vontade. O nosso corpo não faz isso. Hoje, criaram-se tantas barreiras, dizem-te tantas coisas que não deves fazer, até onde não podes ir… Não sinto que estou a ser rebelde por dar um pontapé nessas barreiras, porque não fui eu que as pus lá. Para mim, não estou a deitar abaixo barreira nenhuma. Às vezes, digo coisas para agitar, sim, para criar algum desconforto, uma espécie de bandarilha na altura certa… Parece que, agora, temos de explicar tudo o que dizemos em comédia – se aquilo é a nossa opinião, o que queremos dizer com aquilo. E isso não interessa para nada! Lembro-me muitas vezes que houve uma telenovela na TVI em que o Pedro Granger fazia de uma personagem que era homossexual, andava numa cadeira de rodas e morria com uma bomba logo no primeiro episódio! Imaginas esta cena num programa de comédia? As pessoas iam chacinar-te! Numa novela, como é ficção, é normal. Parece que as pessoas acham que a comédia é a pura verdade, e que temos de nos explicar… Há coisas muito idiotas que são ditas no registo de comédia? Claro que sim! Cabe ao público decidir que aquilo não lhe interessa nada. E há os limites legais: alguém pode sentir que foi insultado ou que houve incitamento ao ódio e pôr-te um processo em tribunal…
Já teve questões judiciais pelo seu trabalho de humorista?
Já, mas nunca deram em nada, lá está. Aconteceu na rádio, n’Os Contemporâneos…
Quem apresentou as queixas?
Uma foi o Carlos Castro, que agora se queixa um bocadinho menos… E houve políticos a ligarem para a TSF e a ameaçarem com processos, também. O “politicamente correto” na sua base tinha um princípio porreiro: defender os que não tinham voz e precisavam de ser defendidos. Hoje, foi deturpado e, às vezes, parece que significa “aquilo que não quero que tu digas sobre o meu universo”. Em última análise, toda a gente tem o seu pequeno lote de terreno em que não se deve tocar e, às tantas, não se pode falar sobre nada… Hoje, o “politicamente correto” ficou conotado com uma coisa opressora.
Uma nêspera, onde?
“Um grito de liberdade maravilhoso”, diz Bruno Nogueira
Além da digressão de Depois do Medo e da obrigação diária de Tubo de Ensaio na TSF, Bruno Nogueira tem mais com que se preocupar por estes dias. Na verdade, não há muito para ensaiar na preparação dos espetáculos Uma Nêspera no Cu: o Musical. “Isto só funciona se não soubermos os dilemas em que os outros pensaram…”. Os “outros” são Nuno Markl e Filipe Melo, e os “dilemas” são o ingrediente principal desta ideia meio tresloucada que vai, quase sempre, parar a lugares pouco recomendáveis… Começou como uma websérie e já passou pelos palcos, sempre com a mesma lógica: preferias “isto” ou “aquilo”? Bruno, Nuno e Filipe esforçam-se muito para que a resposta a esses dilemas seja bem, bem difícil, imaginando os mais loucos e horripilantes cenários. “As pessoas sabem que tudo o que for dito aqui não somos nós a falar; é tudo tão monstruoso que são obrigadas a desculparem-te… É um grito de liberdade maravilhoso!”, diz Bruno Nogueira. O espetáculo – desta vez em formato musical – sobe ao palco do Coliseu de Lisboa, já nos dias 5, 6, 8 e 9 de fevereiro e está no Coliseu do Porto de 15 a 17 – sempre com convidados, prometendo que todas as sessões serão diferentes. “Não sei porque é que estamos a fazer isto outra vez, nada o justificava, mas aparentemente as pessoas discordam”, diz Bruno, antecipando casas cheias.