“Quem é amigo, quem é?” Dito assim a alguém, diante de uns tantos outros, o comentário é uma faca de dois gumes. Amigo é aquele que, discretamente, nos diz que temos um bocado de comida nos dentes, um “macaco” no nariz ou algo que nos comprometa em público. Já o aminimigo aparenta à nossa frente uma coisa e nas costas comporta-se de outra, chegando mesmo – em função do seu caráter e das circunstâncias facilitadores, por exemplo, em ambientes altamente competitivos – atraiçoar-nos pelas costas se os ganhos pessoais forem suficientemente tentadores. Vem isto a propósito da mais recente “excitação” associada ao post divulgado pela galáctica Taylor Swift no Instagram: a foto de um bolo de aniversário feito por ela, em jeito de celebração das 26 primaveras de Selena Gomez. Detalhe relevante: a jovem vive nos antípodas da benemérita. Esta ação teve uma intenção e é disso que importa falar. “Quem é amiga, quem é?” Vamos passar a afirmar ao mundo o quão espetaculares somos, por cada “boa ação” ou “gesto incondicional” que fazemos? É nisto que reside o paradoxo. E, até – sendo radicalmente frontal – a vergonha. Há quatro décadas, os avós e pais portugueses não se inibiam de ameaçar com “pimenta na língua” aos pequenos por atos reprováveis ou menos aceitáveis socialmente.
As reações dos fãs que seguem as duas jovens estrelas do showbiz têm pouco ou nenhum interesse (ou cotação de mercado) quanto as intenções e emoções das envolvidas no que, por estes dias, teve direito a ser notícia. Entre surpresas, agradecimentos, deceções e sabores amargos, fica no ar a suspeita de algo que soa falso, mascarado. É por isso que o chavão “o que conta é a intenção” se afigura tantas vezes problemático e enervante para conhecidos, amigos e familiares. Se a intenção é cultivar a Persona, como parece acontecer no universo de facebookers, youtubers, instagramers e podcasters, o que se ganha, de facto, com isso?
O culto da Persona(lidade)
Com a mediatização dos contactos sociais e os “quadros de honra” do século XXI que são os rankings de partilhas, likes e número de seguidores, é agora a vez de se falar dos amigos performativos: eles fazem tudo para exibir “cenas fixes”, encenam estados glamorosos, divertidos e publicam conteúdos com impacto nos media sociais com uma frequência assinalável de modo a angariar, direta ou indiretamente, simpatizantes e admiradores. Uma coisa meio narcisista, como se diz por aí, e muitas vezes conotada com a geração “eu eu e mais eu”, expressão que chegou a ter honras de capa da TIME, num artigo sobre millennials.
A designação de Persona, termo usado no teatro, na psicologia e igualmente o título de um filme sueco dos anos 1960 escrito e realizado por Ingmar Bergman, sobre as máscaras que usamos no quotidiano e que acabam por se confundir com a realidade interna: a identidade, o “verdadeiro eu”. Afinal, todos temos um lado colorido que exibimos nas interações sociais, online e offline, vulgarmente designada por “a melhor versão de nós mesmos”. Os media sociais amplificam essa faceta de “fazedores”, de “artistas performativos”, que pode não ter necessariamente uma leitura analítica e simplesmente valer por si. Agir desta ou daquela maneira como uma forma de se apresentar ao mundo, “tal como se é” ou “como se fosse” (quem ainda não ouviu comentários, em tom desdenhoso, “aquele ali é um “wanna be”, ou seja, aspirante a dar de si uma imagem profissional, social ou individual superior à que tem).
Fazer algo “como se” tivesse outra titularidade ou estatuto tem sido, de resto, uma das técnicas aplicadas em ações de formação para desenvolver competências e singrar na área comercial e pressupõe que, pela força da repetição e do hábito, uma pessoa pode tornar-se, ou converter-se, naquilo que delineou ou projetou para si.
A arte de parecer e de ser
Uma variação destas manobras é, ou pode ser em alguns casos – nem sempre é fácil destrinçar quais – pode encontrar-se nas missivas de aniversariantes que anunciam a angariação de fundos para uma causa ou associação. A surpresa pode ser recebida de várias maneiras, algumas por excesso e outras por defeito, sendo previsíveis cenários como estes:
1 – Quem estava a pensar oferecer uma prenda do agrado de quem celebra mais um ano de vida – e, idealmente, de bons e inesquecíveis momentos de convivência e partilha – vê-se na situação de pensar quanto vai investir em donativos para uma entidade ou causa com a qual até nem se identifica apenas para não ficar mal vista aos olhos do generoso e abnegado aniversariante.
2 – Os adeptos de festas surpresa e de prendas conjuntas são bem capazes de desistir da ideia, já que, face à dificuldade em congregar vontades e disponibilidades, e já que o visado expressa a sua intenção aos olhos e ecrãs de todos. Contudo, a ligeira sensação de desconforto pode levar o organizador do costume a procrastinar quanto à mobilização para a iniciativa e acabar por se “esquecer” de fazer a transação, apesar dos apoios e gostos na página (antigamente seria no papel) e ter de lidar com esse embaraço caso chegue a haver encontro presencial nessa data.
3 – Os dissidentes fingem que não viram ou, numa versão ativista, dizem que não concordam ou não é das suas preferências ou não lhes deu jeito porque não ligam a essas coisas, tal como apagam despudoradamente e sem sombra de culpa as mensagens e mails em cadeia que lhes chegam, sendo mesmo uma sorte que não insultem o emissor por ousar dizer-lhes o que fazer em nome seja daquilo que for.
4 – Os tradicionalistas farão ponto de honra em fazer da maneira que sempre fizeram. Se a tradição e os seus valores forem no sentido de dar prenda, com ou sem valor simbólico, assim farão, à vista de todos e sem se pronunciarem nos media sociais, pois então. Por fim, e em tempos de comunicação à distância,“fica sempre bem” que o melhor presente seja mesmo… a presença, em carne e osso, sem embrulhos nem ações caritativas, por mais bem intencionadas que sejam.
O que é performativo – performance, desempenho, rendimento e afins – pode ser genuinamente bom, mas está longe de ser tão simples como parece. Num território ambíguo e com múltiplas leituras como é o das amizades, há que, sem limitar a liberdade de expressão, ponderar antes de entrar em cena e anunciar em público o que se fez em abono de alguma coisa ou alguém, sobretudo e em matérias tão sensíveis (e privadas) como a dos afetos.