Se o principal orgão do prazer é a cabeça, não é de estranhar que também passe por aí a maior parte das situações de bloqueio e, até, de aversão sexual. Quem passa por situações de abuso sexual – como os crimes de importunação, assédio, coação e violação – sabe, e sente na pele, como pode ser difícil, senão mesmo impossível, recuperar e seguir em frente na sua vida erótica. Foi a pensar nisso mesmo que Nienke Helder, uma designer holandesa com 26 anos, concebeu objetos sensoriais com a intenção de ajudar mulheres a ultrapassar as sequelas associadas a situações de abuso, como o bloqueio dos músculos pélvicos e respostas reflexas que precisam ser reabilitadas.
A razão que a levou a apostar na criação destes brinquedos partiu da sua própria experiência pessoal e o facto de não se rever nos tratamentos disponíveis, centrados quase exclusivamente na componente física, negligenciando os aspetos psicológicos. Decidiu por mãos à obra e desenvolver objetos com formas sugestivas e agradáveis ao toque, tendo por meta restaurar o prazer e o autoerotismo.
Libertar a mente
O conceito dá pelo nome de Sexual Healing (cura sexual), que facilmente se associa ao mega sucesso de Marvin Gaye em 1982. Nenhum, destes brinquedos tem por função penetrar, antes promover a consciência do corpo de forma subtil e progressiva, adaptável às necessidades da utilizadora. Sim, falamos no feminino, pois mesmo sem esquecer que o abuso sexual também toca aos homens, a esmagadora maioria das vítimas contabiliza-se no feminino.
A coleção, ou kit, inclui um espelho para observar a vulva, um dispositivo que vibra quando os músculos pélvicos estão demasiado contraídos, um sensor que acende se houver um aumento significativo da frequência respiratória e uma escova . A serem comercializados, estes produtos prometem conquistar muitas adeptas, tanto as que passaram por situações traumáticas (nem todas de abuso) como as outras. Basta que desejem aprender (ou reaprender) a conhecer melhor o seu corpo e ganhar consciência das emoções e pensamentos associados às suas respostas físicas. E para quê tudo isto? Para poderem sentir-se na posse de si e usufruir plenamente do seu direito ao prazer.
5 perguntas a Nienke Helder
Nascida em 1991, em Eindhoven, numa família ligada às áreas da saúde e da engenharia, estudou design e faz trabalhos em cerâmica. O seu projeto tem por meta criar soluções práticas, nas valências social e técnica. À conversa com a VISÃO, Nienke mostrou-se entusiasmada com os progressos feitos e partilhou detalhes sobre a forma como está a ser acolhida a sua iniciativa, dentro e fora de portas.
O que a motivou a desenvolver o projeto Sexual Healing?
Comecei o projeto na Academia de Design de Eindhoven e ainda estou a estudar e a aperfeiçoar os protótipos. Eu queria mudar a forma de abordar o problema [do trauma a nível sexual] de uma forma menos clínica, mais pessoal e com espaço para a experiência sexual do ponto de vista psicológico. Consultei vários profissionais de saúde, li livros e artigos sobre o assunto e entrevistei mulheres que tinham dificuldades sexuais ligadas a experiências traumáticas.
Quando comercializar o produto, será com fins lúdicos ou terapêuticos?
Trata-se de objetos sensoriais que são uma combinação entre brinquedos sexuais e de uso terapêutico, mas sem medicalizar o seu uso, até porque isso levaria a que fossem mais dispendiosos. O objetivo destes objetos é a auto exploração, mas também o restauro do sentimento de segurança e a redescoberta das sensações de prazer. É para uso pessoal mas também pode ser utilizado a dois.
Como é que estes objetos podem melhorar a vida íntima das mulheres?
A ideia facilitar a vida a quem passou por situações traumáticas: vítimas de abuso, mulheres com trabalho de parto complicado ou submetidas a uma cirurgia. As jovens que começam a usar tampões podem conhecerem melhor o seu corpo através do espelho. Sentir vibrações ou luzes que acendem sempre que os músculos ou a respiração se alteram é uma técnica de biofeedback que permite conhecer a relação entre o que se passa no plano físico e mental, que é onde se centra o problema.
Recebeu convites para fazer apresentações ou propostas de financiamento?
Já dei palestras a educadores sexuais, estudantes de medicina e ao público em geral. Acabei de chegar de Berkeley, na Califórnia, onde estive a trabalhar numa nova série de protótipos que vão depois ser testados. Recebi pequenos financiamentos governamentais e agora procuro investidores, embora acredite que posso fazê-lo com o que ganho enquanto ceramista.
Tem ideia de quando estarão disponíveis no mercado?
Ainda é cedo para dizer. Estou a trabalhar nos materiais, já que os objetos são feitos à base de silicone e plástico e a equacionar a possibilidade de serem biodegradáveis, mas não quero perder de vista o fator acessibilidade, ou seja, a prioridade é estarem disponíveis para a maior parte das mulheres, online ou de outra forma.
A ponta do iceberg
Em Portugal, os crimes contra a autodeterminação sexual não chegam, na sua maioria, a entrar nas estatísticas, não chegando a 1%. “A razão para que isso aconteça prende-se com a vergonha e as dificuldades associadas ao sistema, que não é amigável para as vítimas”, esclarece Daniel Cotrim, psicólogo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), referindo-se aos números do ano passado: 159 crimes de violação, 30 de assédio sexual, 81 de importunação sexual e 40 de coação sexual Mesmo depois dos movimentos internacionais de denúncia como o #Metoo, ainda há muita resistência em pedir ajuda, em denunciar e ter apoio efetivo.
Os telefonemas e mails que chegaram este ano à instituição são predominantemente pedidos de informação, que ainda é escassa. Tão escassa como as respostas da comunidade: “Os serviços da Justiça, Saúde e Polícia ainda não estão articulados e as pessoas acabam por se perder no meio do processo e, em alguns casos, achar que não vale a pena.” São os tempos de espera, o ter de reviver a situação de cada vez que tem de contar como foi. A complicar o cenário, “muitas queixas e denúncias só chegam a ser feitas meses depois e com marcas que ficam”. Na APAV, “procuramos informar e dar algum apoio emocional, para que não percam a vontade de continuar, lembrar que apesar de a situa ser má, há uma saída para ela”.
Permissão para descobrir
A perceção do que é traumático varia de pessoa para pessoa, consoante a sua história de vida e a sua personalidade. Dependendo da situação que esteve na origem do trauma, envolvendo, ou não, abuso sexual, é frequente que o retorno à vivência de uma sexualidade saudável passe por um acompanhamento médico e psicoterapêutico que facilite o empoderamento individual. E aqui, todas as ajudas contam. Os protótipos da jovem designer holandesa, por exemplo, podem assegurar a permissão para explorar, de novo, os caminhos do prazer, aos poucos, sem pressas, e de forma positiva, com o corpo e a mente a funcionar em conjunto e não cada um para seu lado. Pensando no projeto Sexual Healing, apetece trautear o refrão de Marvin Gaye: “Ajuda a libertar a minha mente. A cura sexual, amor, é boa para mim.”