Há uma conta no Instagram que apetece ver todos os dias porque, para nosso gáudio, é mesmo quase todos os dias que ela ganha um desenho novo. E que no mínimo nos arranca um sorriso.
Hélder Teixeira Peleja ouve-nos dizer isto, cora (só não se nota muito porque usa barba) e pega logo numa caneta para explicar o processo criativo “muito simples” que está por detrás destas suas ilustrações.
“Olho para isto [a tampa da esferográfica da jornalista] e vejo o corpo de um pássaro. E isto [a chave da sua própria casa]… é uma locomotiva. Por norma tiro as medidas [a olho] do objeto. Posso fazer o contorno com um lápis e depois desenho o resto.” Ou, como esta tarde, desenha direto com uma caneta preta de bico fino.
Uns fósforos por usar, caricas, colheres, um preservativo cor-de-rosa, uma massinha farfalle, uma pilha, rolhas de cortiça, rodelas de laranja, um cravo vermelho, a tampa de uma lata, um alfinete de ama aberto, uma fatia de pera… Hoje, quase tudo o que passa pelos olhos deste alentejano que nasceu em Beja, há 39 anos, e cresceu nas Minas de S. Domingos, corre o risco de se transformar numa outra coisa. Ou mais exatamente, na parte de uma outra coisa maior.
“Hum…” Hélder goza com a “enorme pressão” de estar a ser fotografado enquanto desenha, mas acaba por sorrir ao ver o passarinho aparecer no papel. Não lhe falamos em Jacques Prévert, mas é no poema Para Fazer o Retrato de um Pássaro que pensamos quando o vemos concentrado a tentar fazer bem feito.
“Pinta primeiro uma gaiola/ com a porta aberta/ pinta a seguir/ qualquer coisa bonita/ qualquer coisa simples/ qualquer coisa bela/ qualquer coisa útil/ para o pássaro”, mandam os primeiros versos do francês (aqui numa tradução de Eugénio de Andrade). “Se o pássaro não cantar é mau sinal”, sabemos de cor e apostamos que este vai zarpar num instante da mesinha do café onde estamos no Barreiro e sobrevoar baixinho o rio Tejo, junto aos moinhos do Alburrica.
A influência do filho…
Hélder começou a fazer este tipo de “rabiscos”, como lhe chama, por causa de um festival relacionado com uma bebida. Foi há dois anos e nunca mais olhou para uma carica ou para uma anilha de lata da mesma maneira; ou para qualquer outro objeto, escreva-se. “Passamos a ver de outra forma, vai-se ganhando um hábito…”
Desde que começou a publicar os seus desenhos nas suas contas no Instagram e no Facebook, a grande motivação é mesmo fazer um por dia, sem descanso – e sem dificuldade, confessa. Além de ter uma esquerda rápida (sim, é canhoto), tem um emprego das nove às seis que lhe deixa algum tempo e a cabeça livre para “manter a criatividade ativa”.
O único problema é quando chega ao fim e a fotografia (sempre tirada com o telemóvel, para agilizar a partilha no Instagram e no Facebook) revela que o desenho não ficou como ele queria. Ainda não escrevemos que é muito crítico? Sim, é, e ainda mais do que modesto. Por isso, há muito papel a ir para o lixo, sem contemplações.
Ultimamente, a forma como o seu filho mais velho, Afonso, de 5 anos, vê as coisas também o tem ajudado na ilustração. E não estamos apenas a falar destes “rabiscos”. Hélder gasta uma boa parte do seu tempo livre a desenhar cartoons, a entarr em prémios (já ganhou alguns concursos) e a responder a encomendas para ilustrar livros infantis. O próximo, já no prelo, põe-no com a escritora Antonieta Ribeiro a contar a história de Acarus, o mau da fita.
Neto de mineiros, não consta que tenha tido alguém na família com jeitinho para o desenho. Em pequeno, lembra-se de gostar de desenhar a igreja da aldeia, mas também de copiar os livros do Lucky Luke. Filho único, entretinha-se a brincar com os amigos na rua e a jogar futebol, como defesa central porque foi sempre mais alto do que os outros miúdos (hoje mede 1,85m).
… e de Almada Negreiros
No 5.º e 6.º ano tinha aulas por cassetes, na escola, depois estudou até aos 18 anos em Mértola – fez o curso profissional de técnico de museografia arqueológica (por influência certa de Cláudio Torres, claro), mas foi “ao lado”, diz hoje. Logo que os pais deixaram, mudou-se para o Barreiro, onde tinha familiares. Ia à procura de outras opções. “Lá não havia nada para fazer, era um bocado limitado”, diz. “Aliás, ainda hoje é assim… Para ir ao cinema tínhamos de andar uma série de quilómetros, aqui andamos dez metros. Sempre achei que era pouco.”
Estudou, então, para vir a ser professor do Ensino Básico, na variante de Educação Visual e Tecnológica, e gastou vários anos a dar aulas em colégios privados. Pelo caminho, passou pelo Ar.Co, em Lisboa, onde aprendeu os segredos do cartoon e da ilustração infantil. E nunca tirou os olhos do trabalho de Almada Negreiros (“Também tento fazer: o máximo com uma linha só”) ou de André Carrilho (“Acompanho-o desde sempre, acho que ele vê as coisas de uma forma muito diferente”).
Agora, sente que está num momento de viragem. “Não perdi a esperança de fazer só isto.” Um “só” que já é tanto.