“O verão passado foi caótico”, assegura Madalena Martins, 63 anos, residente em São Pedro de Penaferrim, e uma das promotoras do manifesto Salvar Sintra. O documento, lançado pelo movimento Q Sintra, (criado no final do ano passado por um grupo de cidadãos com o objetivo de alertar para os problemas da vila), considera estar em perigo a zona classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO. E identifica os principais fatores de risco.
“Aos fins-de-semana, ou sempre que há um maior afluxo de turistas, o trânsito é insuportável. Demora-se horas a fazer percursos que, em circunstâncias normais, demorariam minutos”, descreve Madalena Martins. “É triste ver esta degradação da nossa qualidade de vida”, lamenta a ex-consultora de comunicação.
O trânsito permanentemente congestionado e a pressão turística são dois dos problemas destacados pelo manifesto, que pode ser subscrito por todos aqueles que se revejam nas preocupações do movimento.
Cerca de 5 milhões de pessoas visitaram a vila em 2016, estima-se que no ano passado possam ter sido 6 milhões. O Palácio da Pena, o monumento campeão, recebeu 1,3 milhões de pessoas em 2016. Ao todo, nesse ano, a Parques de Sintra vendeu mais de 2,6 milhões de entradas para os seus vários parques e monumentos. Em 2017, as visitas voltaram a crescer e foram vendidos 3,2 milhões de bilhetes – cerca de 80% a estrangeiros.
A autarquia de Sintra reconhece os “enormes desafios que enfrenta com o grande aumento de turistas que se verificou em Portugal nos últimos anos”. À VISÃO, por escrito, o gabinete da presidência da Câmara Municipal diz encarar esta afluência de visitantes “com uma oportunidade para o futuro do município e não como uma catástrofe que se abateu sobre Sintra”.
Os subscritores do manifesto reconhecem a importância da atividade turística e, como explica Madalena Martins, não estão contra as pessoas que chegam de fora: “Elas também são vítimas desta desorganização.” Mas defendem que “a prioridade não pode ser dada aos turistas, em vez de aos residentes”.
Limitar pessoas e automóveis
O documento, disponível na página do movimento, defende a “restrição do número de visitas diárias”, mas a autarquia liderada por Basílio Horta (PS) esclarece que a limitação da entrada de turistas “não está em debate”. Em vez disso, “a estratégia passa pela promoção do alargamento dos pontos de visitação para além da área concentrada na vila”.
Relativamente ao trânsito, a Câmara Municipal reitera a intenção de proibir a circulação automóvel no centro histórico da vila até ao final deste ano. E aposta na criação de parques de estacionamento periféricos, o mais recente fica na Estefânia, em frente à estação de comboios, e tem cerca de 500 lugares gratuitos. Também será lançada uma rede de transportes elétricos, a MobiESintra, para levar os visitantes aos parques e monumentos, aliviando o tráfego.
O movimento Q Sintra considera que “a dissuasão de acesso ao centro não existe” e, mesmo com os novos parques, classifica o estacionamento de “escasso”. Alerta, ainda, para os problemas de segurança provocados pelo trânsito caótico, que “condiciona seriamente o acesso e mobilidade dos meios de socorro em caso de acidente grave”, lê-se no documento, que levanta preocupações em caso de incêndio, já que identifica “sinais de risco, negligência e desprezo” na gestão da floresta de Sintra.
A autarquia nega as acusações e coloca a proteção da serra “na linha da frente” das suas preocupações. Lembra a criação, no início do ano passado, de uma equipa de sapadores florestais. E, para resolver os problemas de acessibilidade em caso de incêndio, revela à VISÃO que haverá obras de beneficiação na estrada com ligação ao Convento dos Capuchos e à Peninha.
“Aberrações” urbanas
Entre as queixas deste grupo de residentes está, também, “a falta de planeamento e critério na gestão urbana”. Madalena Martins fala em “aberrações”, apesar de reconhecer a importância da recuperação dos edifícios ao abandono. Um dos projetos da discórdia é a construção de um hotel de 95 quartos na Casa da Gandarinha, que consideram “uma ofensa irreparável ao património de Sintra”, com a destruição de muros, grutas e árvores.
A autarquia esclarece que “não há nova construção na vila de Sintra”. O que existe, de acordo com a câmara, “são requalificações de imóveis abandonados e em ruínas há vários anos, os quais implicam, obrigatoriamente, a preservação das fachadas e o respeito pelos valores do Património da Humanidade”. Relativamente à Casa da Gandarinha, defendem o projeto, uma vez “que preserva a fachada do edifício, abandonado há várias décadas, e que estava em risco de queda para a via pública, colocando em risco a segurança das pessoas”.
Madalena Martins identifica, ainda, a desertificação da zona histórica como um dos fatores de descaracterização da vila: “As casas que vão ficando vazias estão a ser todas direcionadas para o turismo e, assim, o centro histórico deixa de ter vida própria”.
Também a “oferta cultural e comercial pouco qualificada” é alvo de críticas. A autarquia defende-se com o aumento dos espectadores do Centro Cultural Olga Cadaval, de 35 mil em 2014 para 73 mil em 2017, e com a abertura de dois museus no centro histórico nos últimos quatro anos.
Mas Madalena Martins lamenta que o comércio esteja totalmente voltado para o turismo, com lojas de recordações “que nada têm a ver com as tradições de Sintra”.
Às acusações de “progresso autofágico, mono-especializado num turismo sem futuro”, a autarquia responde que os dados apresentados no manifesto “são falsos tentando criar uma imagem da vila de Sintra que não corresponde à realidade”.
À VISÃO, a Câmara Municipal de Sintra revelou ainda não conhecer os autores do manifesto, mas o encontro deverá acontecer em breve, já que os membros do movimento Q Sintra planeiam estar presentes nas sessões públicas da autarquia e continuar a fazer-se ouvir.